O "E ENTÃO?!" CONTRA A SIMPLIFICAÇÃO
/Ontem a minha filha Maria achou bastante irrelevante uma conversa sobre a metafísica do universo estar por trás das nossas concepções morais. Disse-me algumas vezes, “e então?” “E então?!, respondi-lhe, Então essa é uma condição da humanidade, seríamos totalmente outros sem a espiritualidade polarizada entre o bem e o mal.” Sim, mas senti logo que a minha objecção era infinitamente mais fraca do que a sua. No “E então?” dela estavam contidos todos os princípios críticos do iluminismo, a inelutável investigação racional sobre as condições de possibilidade da verdade, por um lado, e a avaliação intransigente da utilidade, por outro.[1]
Esta aparente puerilidade, combate fingido entre gerações, mostrou-me como talvez o mundo adulto, por trás de uma certa sofisticação semântica, seja bem mais simples do que o dos adolescentes. O “E então?” esmaga toda a sobranceria, pedanteria discursiva com que nos escondemos e simplificamos a vida. Por vezes sem o sabermos, somos simplificadores sistemáticos, repartindo os horizontes de sentido entre amigos e inimigos, bem/mal, verdade/mentira, gosto/não gosto, metafísica/materialismo… Procuramos escapar à fatalidade das ligações múltiplas reduzindo confrangedoramente a complexidade da vida.
Surpreendentemente, escondemos muito disso na palavra “objectividade”, os negadores da complexidade são os primeiros representantes, às vezes com medalhas e tudo, da objectividade. Paradoxalmente, ela faz-se quase sempre acompanhar, na ciência como na filosofia, de demiurgos secretos que comandam o destino na penumbra. As leis que definem demonstrações, os postulados que sustentam teorias, a lógica que testa a coerência argumentativa…, são outras formas de apelarmos à Coisa que nos esconsos do Universo conduz o movimento da matéria e do espírito.
Ao pé disto, pelo menos nesta noite de insónias (é decisivo sabermos a que horas se escreveu), acho mais sensato pensar em Nietzsche como agente secreto da minha biografia (Baudelaire escolhia o poeta). Desenganem-se, saltar assim de um só golpe da teoria do conhecimento para a da produção textual tem a sua razão, objectiva, de ser.
[1] Atenda-se a que o “E então?” não é uma indiferença laxistas em relação ao que se discute, não é o je-m’en-foutisme francês (traduzido, sem contexto, por “estou-a-lixarme”, mais o “ismo”), niilismo popular dos preguiçosos ou irrevogáveis desiludidos. O “E então?” é afirmativo, questiona, obriga a esclarecer, explicar, justificar... É neste sentido que o uso aqui.