Gajos Porreiros

Muitas pessoas que conheço, no género adequado a esta circunstância, são gajos porreiros. Sem grande esforço, dizendo-o (foi isto que impôs o Linguistic Turn da segunda metade do xx) e parecendo-o (é impossível parecer um gajo porreiro e não o ser, uma autêntica revolução ontológica e moral).

Numa época enredada em profundas dúvidas, com uma probabilidade elevada de passarmos os últimos 10 anos de vida a babar-nos e a tomar um cocktail de moléculas medicinais, óptimo para o aumento da esperança de vida sem qualquer esperança de felicidade, nada melhor do que uma epidemia de gajos porreiros. Massificação de pessoas sem arestas, deslizando irresistivelmente entre posições controversas, submissas, cheias, até rebentar, de senso comum, assoberbadas de inteligência circunstancial (resumida nos “cada um é que sabe de si” e “em Roma sê romano”), vagamente humanistas, vagamente ecologistas, vagamente de direita ou de esquerda, com gostos concêntricos, sorriso fácil, “amigas do seu amigo”, especialistas no dois-em-um da palmadinha/facadinha nas costas, prontas para a cervejinha e blindadas a qualquer erudição que não se verta imediatamente no mundinho onde vivem... Embora a esta capacidade de se moldar, qual gelatina humana, não corresponda um bom relativismo. Paradoxalmente, os gajos porreiros desenham um mundo aperspectívico, têm convicções duras, por detrás da tolerância de fachada, vivem fechados nos seus pontos de vista, que consideram, na estreiteza do horizonte de expectativas individualista, os melhores do mundo.

Dir-me-ão, assim “como quem não quer a coisa”, que apesar de tudo tiveram a força demiúrgica para se criariam a si próprios. Pois bem, pura mentira, é impossível um gajo porreiro ter tido a força e a destreza decisórias de se fazer a si mesmo. Eles, todos, são produto dos meios de comunicação de massa modernos e pós-modernos (os primeiros acreditavam no Progresso, substituto de Deus; os segundos viraram-se para a polifonia discursiva, o conflito de interpretações, a fragmentação das perspectivas, numa palavra valorativa: caíram no raio-de-mundo-patchwork), do Facebook à televisão, dos jornais aos blogs, da rádio ao Spotify..., os média reorganizaram a “realidade como realidade na nossa cabeça”, isto é, definiram as linhas de realidade que pode ser observada, sem risadas ou dúvidas sistemáticas, como real, depois puseram isso na nossa cabecinha para modelar e fazer emergir o gajo porreiro que há em nós (Foucault falava do nazi que se esconde em cada íntimo).

Por isso, os porreiraços apenas precisam de parecer, parecer que toleram, trabalham, ajudam, compreendem, amam, agem, combatem... para o ser. Talvez a grande novidade na ontologia do porreirismo seja a de que a representação (estar no “lugar de” e “fingir que”) é o ser. O “Mascara-te de porreiro, diz que és porreiro e serás porreiro!” tornar-se-á o princípio de doutrinamento ao porreirismo dos escassos resistentes. Onde toda a cultura acima do “imediatamente agradável” se reduzirá a pó; as controvérsias serão aplanadas em consensos claros e simples, bons para todos os contendores; os discursos revolucionários baixarão o tom e serão reciclados para as Marchas Populares; a angústia da influência dará lugar a milhares de Reforços Positivos derramados sobre todos os que se aventurem, por exemplo, na escrita de um best seller; e quando se pisarem algumas normas, bastará uma pequena multa e algumas palmadas no rabo; a entreajuda, no amor e na crítica, parecerá tão autêntica que ninguém terá a coragem de a questionar; mas acima de tudo, todos recitarão o credo no homem porreiro (substituto, até ao certo ponto, do Übermensch), uma lengalenga sem referente, tanto mais que, como nos ensinou o mestre supremo da ironia Oscar Wilde (que reprovaria no exame para gajo porreiro): “Quem diz a verdade, mais cedo ou mais tarde, é apanhado em flagrante.” E quem quer ser apanhado em flagrante, ah, quem quer?

Entre a Tragédia e a Desgraça

Cada época precisa de um desafio à altura da sua ambição [creio que já usei esta expressão, haverá a modalidade de auto-plágio?], mas também da sua ignorância e das suas crenças [isto é novo para mim, mas pode ser um plágio involuntário]. Parece que vivemos num tempo onde os desafios são bastante rasteiros, talvez por isso tenhamos trocado a tragédia pela desgraça (não é somente uma questão terminológica). E a vulgaridade dos desafios (que são os que colocamos a nós próprios, não os incomensuráveis que nos cercam e vão destruindo o planeta, há um cerco ambiental de que somos autores e vítimas) é acompanhada por uma ignorância de especialistas ou de alienados e crenças que nunca ultrapassam o horizonte da salvação individual (podia traduzir-se por “se eu não rezar por mim, quem rezará?”).

Em oposição, regressemos à Grécia Clássica, inundada de mitos trágicos. Mas para desenrolar uma linha genealógica, não nos esqueçamos que entre a tragédia grega e a filosofia moderna há um fio condutor feito de teorias e ferramentas de julgamento, montagem e sagração dos tribunais. Logo na origem, Grécia apolínea/dionisíaca, a tragidicidade estava menos na acção do que no julgamento, a tragédia grega cria, antes de mais, um tribunal. Se virmos bem, Édipo não age calculadamente e livremente, é um joguete nas mãos dos deuses, ele não age premeditadamente, mata o pai e casa com a mãe dentro do mais inocente equívoco. O castigo que recebe é totalmente imerecido (mesmo numa cultura sem medo do acaso), e é esta injustiça, tomada nos termos humanos, que torna o Édipo Rei trágico. De igual modo, Antígona não pratica o mal, mais, quando infringe as leis da cidade e enterra o irmão Polinice, está no campo do bem, seguindo leis bem superiores às humanas. Mas o castigo que recebe, funcionando em cascata, é terrivelmente cruel. E é, novamente, a partir de um castigo injusto que se origina o trágico.

O Cristianismo absorveu muito bem a crueldade da punição absurda, sobretudo para testar o grau de fidelidade do povo a Deus. À medida que se sofisticou, preparou o advento da Santa Inquisição, onde sofrimento e morte eram apresentados, vejam bem, como formas de salvação. Talvez contra isto (quero acreditar que sim), Kant criou um fantástico tribunal subjectivo que procurou julgar num registo exclusivamente racional, não mais haveria castigos injustos, tudo resultaria de exactos cálculos racionais. Mas porventura a grande rotura com a tradição judaico-cristã tenha sido desenvolvida por Espinosa (panteísmo), Nietzsche (amoralismo) e Artaud (estética da crueldade). Pelo contrário, Hegel, não consegue no Fausto (I e II) desligar-se da dialética pecado/redenção, deixando a ideia que um julgamento justo está para lá das posses humanas. Talvez por isso, Nietzsche tenha descoberto no fundo opaco da nossa consciência moral, produto de uma longa filogenia, a ideia de que tínhamos uma dívida infinita para com Deus, uma dívida impagável. Daí o “minha culpa, minha tão grande culpa” e as condições insondáveis do Juízo Final.

Bom, apressemo-nos. Hoje já não temos nem o trágico puro da idade de ouro grega nem os castigos infernais seguidos de redenções miraculosas do cristianismo. O trágico já não existe, por mais dor e sofrimento que haja, ficamos com a desgraça. E isto tem que ver com o culto da vitimização, do enxotar constante da culpa para outrem (com os deuses gregos ou o cristão isso era impossível). Somos a época da reclamação, poucas vezes bem orientada, e da vitimização, por adoração podre de nós próprios. Não que deseje uma regressão às encenações que reduziam os direitos individuais a cascas de tremoços. Mas, devíamos olhar com mais frontalidade e exatidão racional para os acontecimentos que não gostam de nos fazer a vontade. Creio que nos faria muito bem, mas isso já não me diz respeito, detesto todo o tipo de proselitismos. 

25 de Abril, Indigência Reflexiva e Rendimento de Existência

Como é natural, muito se tem falado do 25 de Abril de 1974, discursos cheios de uma nostalgia amplificada pela actual crise social, económica e ambiental. Os historiadores profissionais sabem bem que ainda não estamos suficientemente distantes para interpretar com objectividade esse acontecimento, as releituras assentam sobretudo na selectividade e exacerbação emocional (a velha “idade de ouro”, o “antigamente é que era bom”), e um pouco de um cálculo político, que ele há gajos para tudo, e a vidinha está difícil.

Eu era muito novo para guardar memórias da data (a recordação emotiva vive de intensidades mais do que de evidências), não consigo limpar a opacidade do que recupero. Mas não esqueço a festa (é provavelmente isso que melhor distingue as ontologias das revoluções de esquerda das de direita, nestas uma seriedade de chumbo, tenebrosa e mortífera captura as comunidades), a ideia de que finalmente se podia “dizer tudo” e, vivendo em Bragança, ser possível emigrar à vontade. Havia poucos cravos, a Primavera é mais tardia em Trás-os-Montes, mas as bocas e os corações riam, pelo fim de qualquer coisa mas principalmente pela esperança que brotava de uma demiurgia acima da realidade, de um futuro que parecia conter, sem discriminações ou entraves, todos os possíveis (embora o “fascismo nunca mais”).

É por isto que não tenho o direito integral, mais fisiológico do que moral, de me apropriar do 25 de Abril, limito-me, sem pressupostos de menoridade, a seguir o que outros mais velhos dizem, pensam e sentem sobre essa festa. Mas não se passa o mesmo quanto aos futuros que podem ser projectados, também a partir dele: aí tenho direitos e deveres, tantos como os demais. Se alguns podem ser guardiões especiais do passado, concedo-o, o mesmo não se passa em relação ao futuro, que, este sim, a todos pertence. E é sobre o futuro que quero aqui deixar um horizonte de possibilidade, seguindo de perto Christian Arnsperger e o que diz no artigo “Revenu d’existence et promotion de la sociodiversité”.

Este economista alemão radicado na Bélgica, pensador inteligente sobre o pós-capitalismo (não, não se trata de voltar à velha dicotomia esquerda/direita, mas de governementalidade na idade de uma profunda crise ambiental, onde muitas coisas têm de mudar, não ao ritmo de slogans mas de uma existência mais frugal e muito menos antropocêntrica), alimenta a sua proposta de um “rendimento de existência” tendencialmente universal ligado ao incremento da diversidade social através da ideia de que não há qualquer determinismo sócio-económico, e por isso é possível criar “através da decisão colectiva um sistema no qual a pobreza de alguns não seja a contrapartida sistemática da opulência de outros.” Para o alcançar, devem desenvolver-se outras vias existenciais, sem buscar mais uma vez a famigerada, e perigosa diga-se, essência (da vida humana), mas experimentar formas de viver em liberdade, porque quer os actuais "ricos" quer os "pobres", por razões diferentes no entanto, vivem alienados, em indigência reflexiva; e os problemas ambientais graves a isso nos obrigam. Estas experimentações, ainda que vividas na primeira pessoa, necessitam de uma “colectividade de experimentação”, tudo em Arnsperger se distancia de neo-individulismos. Actualmente, vivemos “num capitalismo caracterizado […] por um produtivismo e consumismo focados na clara valorização maximalista dos capitais.” Isto e os constrangimentos suplementares ligados às dívidas soberanas e aos imperativos de crescimento restringem quase totalmente a experimentação colectiva. A força do capitalismo é tal que todas as perspectivas, que não passam disso mesmo, presas aos défices e à forma de os superar, parecem condições sistémicas auto-realizadoras (maneira de pensamento e acção únicas). Ajudadas, diz Arnsperger por uma “indigência reflexiva”, carência crítica partilhada pelos materialmente ricos e pobres. A luta contra a pobreza material se não for acompanhada de uma luta contra a “indigência reflexiva” pode, aliás, reforçá-la. A “lógica da monocultura” capitalista não permite “experimentações existenciais” excêntricas, inovadoras. Na verdade, a liberdade das democracias avançadas deve não apenas permitir exprimirmo-nos sem o espectro da censura, mas também conduzir a reais possibilidades de organizar a vida económica e social de outra forma, em colectividade.

Ora, é aqui que entra o “revenu d’existence” (rendimento de existência), com ele pretende-se tornar os rendimentos mais igualitários e dar aos pobres materiais as condições de sobrevivência para que possam realmente questionar o modo de vida dominante e substituí-lo por outro, “fazer a experiência vivida de uma outra existência.” Arnsperger justifica a bondade desta proposta por analogia com o universo ecológico: “tal como a biodiversidade é crucial para a manutenção de um sistema ecológico são, a sociodiversidade é essencial para a manutenção de um sistema económico e político são.” O rendimento de existência permitiria a todos, mesmo aos desempregados voluntários, experimentarem novas formas de vida. Mas para criar este rendimento e para abrir a sociedade à experimentação e à mudança é necessário repartir equitativamente o produto gerado por uma comunidade. E é aqui que surgem as resistência mais fortes, à esquerda e à direita do campo político: como se pode dar o mesmo a quem não quer trabalhar e a quem o faz diligentemente? Sobretudo, depois de se abrir o mundo à livre concorrência, quando o trabalho é cada vez mais extenuante, tornando os trabalhadores hipercríticos em relação ao dolce fare niente.

Arnsperger traz um novo argumento que, mitigando e transformando o statu quo moral e económico, torna mais plausível esta distribuição igualitária. Temos vindo a esgotar rapidamente os recursos naturais mais baratos e importantes (para o nosso estilo de vida), sobretudo os combustíveis fósseis, e ao mesmo tempo provocamos um aquecimento global difícil de controlar. Isso projecta-nos para a necessidade de uma frugalidade a que não estávamos habituados. Portanto, vamos entrar num decrescimento económico involuntário (imposto pela rarefacção das energias fósseis e por disrupções naturais) a nossa e as próximas gerações têm a necessidade de desenvolver “modos de vida frugais”. É, pois, necessário exercer a nossa liberdade para procurar formas de vida distantes da opulência capitalista, esta será, diz Arnsperger, a “grande tarefa cultural das próximas décadas.” E quem pode experimentar estes novos ways of life serão os materialmente mais pobres (mas não totalmente desprovidos, se houver rendimento de existência), os que quiseram ou tiveram de viver à margem da festa capitalista.

Assim, a constituição de novos comunitarismos engtrelaça a) reformas educativas radicais que permitam lutar contra a indigência reflexiva; e b) um rendimento de existência permitindo ao máximo de cidadãos de se desconectarem realmente e por bastante tempo dos sistemas sócio-económicos que julgam insustentáveis. As duas medidas só funcionam em conjunto: uma força e inovação reflexiva sem condições materiais mínimas geraria uma revolta aguda e estéril; um rendimento sem reflexão criaria um “sub-proletariado pauperizado e frustrado” por viver nas margens do poder, sem real influência nas linhas de desenvolvimento económicas e sociais. Trata-se, pois, “de ao mesmo tempo lutar dentro do capitalismo contra uma pobreza material que não cessa, nem cessará, de se engendrar. Mas também, e sobretudo, de lutar para que a diversificação das experimentações sócio-económicas aconteçam apoiadas num rendimento de existência, acompanhadas pelo acesso à saúde e a uma reforma.”

Angústia da exactidão

Próxima das neuroses obsessivas, de que todos os génios produtivos sofrem (em graus e intensidades diferentes), a angústia da exactidão alimenta-se de uma profunda paixão pela ordem (feita exclusivamente de leis cósmicas, bem para lá da condição humana), jogo de escrúpulos irrazoáveis, mania de auto-correcção permanente. Creio que todos os grandes criadores, quer se exponham na música, na literatura, na filosofia, na pintura, na dança, ou noutro qualquer exercício de pensamento lógico-criativo (onde se situam também os cientistas inovadores) foram, de uma ou de outra forma, obsessivos e tendencialmente compulsivos. Quando, por exemplo, Lobo Antunes diz que não pode viver sem escrever, mas que demora mais tempo, muito mais, a corrigir do que a criar a primeira versão, vive, à sua medida, na angústia da exactidão.

Mas a patologia é apenas uma possibilidade, embora a mais extrema. Noutros termos, a neurose obsessiva não é necessariamente o culminar de um processo, onde aconteceria a exaustão de um indivíduo. Na verdade, é o produto da obsessão que vai ditar em que campo ela se inscreve, a obsessão é um pharmakon (remédio e veneno). Se a linha de fuga for a física quântica ou um tratado de filosofia medieval, uma sinfonia completa ou uma instalação minimalista plena de mundo, um romance polifónico de 400 páginas..., isto é, se o produto dessa dedicação integral, dessa fidelidade sem fissuras for uma obra que encerra riqueza suficiente para conjurar a extrema focalização do sujeito num processo criativo, então a patologia habitual dos obsessivos – destruidora de afectos, de ligações emotivas e racionais, da lucidez poética inventiva – não emergirá, ou melhor, dificilmente emergirá. Nos génios (chamemos-lhe assim para facilitar) a produção de obras é a cura homeopática dos impulsos obsessivos negativos.

Noutros registos de vida, menos intensivos, sem a força ou a sorte para fazer nascer algo de extraordinário, também existe esta angústia que ensombra com dúvidas (anti-cartesianas) as coisas que vamos fazendo: aquela vírgula mal colocada que potencia insónias; o conceito que escapou à censura lógica e agora corrompe a felicidade que pensávamos retirar do ensaio publicado; a metáfora gasta, vulgarizada que dissemos nunca mais usar mas que se introduziu furtivamente no poema, impossível de rasurar porque outras exactidões seriam destruídas; um personagem, a quem demos a honra de conduzir a história, incapaz de encaixar na narrativa sem minar o equilíbrio perspectivista; uma nota deslocada, dissonante na partitura, que recusa silenciar-se e corrompe a arquitectura melódica; ou o facto, esse velho evangelho da objectividade, cortado pelo relativismo de uma análise incoerente.

Mas também aqui o resultado feliz, num belo produto, das preocupações exageradas transforma o que destrói no que salva e faz crescer, conduz a uma plenitude que jamais será alcançada através dos gestos codificados da vidinha.

II

Há umas semanas lia uma pequena entrevista de Jorge Silva Melo a propósito de O Regresso a Casa de Harol Pinter para o D. Maria II. Aí pronunciava um magnífico elogio aos seus actores, apelidando-os de “actores exactos” (João Perry, Rúben Gomes, Maria João Pinho, Elmano Sancho, João Pedro Mamede e Jorge Silva Melo). Mas aqui percebe-se que não se trata da “angústia da exactidão”, antes do perfeito domínio de uma arte onde se improvisa pelo menos tanto quanto se representa (repetir um modelo, voltar a apresentá-lo). É a exactidão da criação, como quando Gilles Deleuze no diz que o sentido de um acontecimento não o precede, ele surge à medida que o próprio acontecimento se desenrola. Por isso, este pensador francês prefere ao termo “exacto” o de “anexacto”, um outro tipo de rigor: do estilo e do gosto mais do que da adequação entre o empírico e o ideal, o modelo e a cópia. Também Ludwig Wittgenstein quis nas Investigações Filosóficas, com o conceito de “jogos de linguagem”, mostrar que “o significado de uma palavra está no seu uso”. Neste sentido, a verdade de algo resulta do seu funcionamento dentro de um determinado jogo de linguagem (Mendel não podia estar certo mesmo estando-o, porque o jogo de linguagem dominante da sua época não podia aceitar a sua linguagem quase privada sobre a hereditariedade. Que hoje, num volte-face de thriller, é a que domina). Foucault falará ainda mais claramente em “jogos de verdade”, relativizando com isso a exactidão, visto que a verdade é relativa ao que uma época/cultura considera como verdadeiro. Mas talvez seja mais clara ainda a afirmação de Jean-Luc Godard (brilhante Pierrot le fou), cito de memória: “não tenhais ideias justas, mas somente uma ideia”. Como se desconfiasse, até politicamente, da exactidão das ideias, instrumento várias vezes utilizado ao longo da história para impor a servidão, a quem percorreu a via-sacra para as encontrar e a quem as recebe e se vê obrigado a abdicar da liberdade de as recusar, porque, finalmente, sempre são “ideias exactas”.

Tenhamos, pois, uma ideia, anexacta ou rebelde, excêntrica em relação ao nosso verdadeiro, aos jogos de linguagem da opinião, mais ou menos erudita, deixemo-la emergir evitando as angústias estéreis. É que talvez toda a metafísica do mundo se esgote quando acolhemos o sol sentados numa esplanada à beira-mar.

Voo MH370

Escrevo sobre o desaparecimento do voo do Boeing 777 MH370 da Malaysia Airlines, começando por pedir desculpas, principalmente aos que sofrem pela putativa morte (passagem incompleta, sem luto) de familiares ou amigos, estejam seguros de que não se trata de um capricho crítico. Assumo também que não tenho informação privilegiada sobre o acontecimento, baseio-me na leitura matinal de alguns jornais do velho e novo continentes democráticos (nisto sou hegeliano: ver os jornais ao início do dia é a minha “oração matinal”. Embora haja milhares de quiosques digitais que disponibilizam notícias; bem  longe, pois, da antiga solenidade calma de um exemplar coerentemente preso a uma linha editorial, impresso em grandes folhas de papel, difíceis de dobrar para os neófitos, sujando as mãos de tinta... perdoem-me esta pequena nostalgia do analógico).

Devo também dizer que o acontecimento tem simultaneamente traços de tragédia e de fait divers. É trágico porque um castigo desproporcionado caiu como um raio maligno sobre os passageiros, familiares e amigos desse voo. É um fait divers porque absorve um conjunto de desejos, de medos, de mistérios que o senso comum projecta insistentemente sobre ele, tecendo conversas de café e aberturas vampirescas de telejornais. Além disso, numa espécie de terceiro excluído, deixou de ser possível fazer com ele uma notícia relativamente objectiva porque a sua actualidade/realidade resulta mais das projecções dos espectadores do que de uma consistência ontológica interna (a especulação mitológica sobrepôs-se às hipóteses factuáveis). Isto advém, bem entendido, do campo misterioso que o envolve (indelével mesmo quando, caso aconteça, se ilumine racionalmente).

Como adquiriu o voo MH370 estatuto de fait divers globalizado? O desaparecimento deste Boeing já não é um simples facto a quem faltam causas, mas um discurso infinito sobre causas possíveis, a maioria exaustivamente trabalhadas pela imaginação. Discurso alimentado por duas fontes: a) no paradoxal apagão de um objecto tão grande e tão conectado numa época onde tudo parece ser rastreado por tecnologias digitais de posicionamento; b) no fascinante incómodo pensar a forma como os passageiros viveram os minutos da queda até ao esmagamento (partindo do princípio que isso sucedeu). Um mergulho deste tipo permite viver o impensável: a previsão real, próxima, da morte. Pode até fazer-se um countdown com uma margem de erro inferior a um minuto.

Dentro destes dois territórios de sentido, ou de falta dele, situam-se outras perplexidades que adensam o enigma. A possibilidade de terem sido os pilotos a perpetrar o acidente – guardiões, comandantes quase omniscientes e omnipotentes – traz para o acontecimento uma linha de irracionalidade insustentável. Além disso, seria afinal a maldade humana e não um qualquer castigo icariano a causar o desastre. Há também as enigmáticas últimas palavras de um dos pilotos, desejando “boa noite”. Numa época em que nada parece poder escapar às tecnologias de geolocalização, este “boa noite”, indício suspeito de que se acredita na bondade da noite, das trevas, parece abrir para certas sagas trágicas.

Desaparecer dos radares, sem deixar rasto, um avião quase do tamanho de um campo de futebol, de todos os radares que saturam os comprimentos de onda comunicativos do mundo reagindo à mais pequena movimentação, constrói por si só um novo mito. E é a partir dos mitos que os paralogismos das teorias da conspiração, da fé mais desgarrada, da política demagógica dos semi-deuses totalitários, mas também da humanidade comum cansada de explicações, complexas mas irredutíveis, da ciência, se alimentam. Este mito, que ganhará força à medida que se prolongar o desaparecimento, veio resgatar parte do mundo de uma lógica causal que tem tanto de precisa quanto de fastidiosa, por vezes, muitas vezes, devido, paradoxalmente, à sua incapacidade de fazer sentido para uma grande parte da população.

Contra este desenvolvimento do mito, para conjurar o inexplicável, a fragilidade do humano e da sua tecnologia, atente-se na vontade de encontrar fragmentos tangíveis do acidente, para que se explique finalmente segundo as leis da física ou da psicologia o que parece inexplicável (também pelos familiares, mas isso é residual). Além disso, nesta época filotecnológica é preciso desfazer a possibilidade de algo tão grande passar por incógnito, escapar à vigilância das máquinas mais sofisticadas de sempre na coscuvilhice do planeta. Felizmente, diz alguém ao meu lado, que ainda há o “inconsciente”. Agora quase sem a Psicanálise para o monitorizar, para o bem e para o mal, parece termos regressado ao que o poeta romântico Eichendorff dizia: “Mas tu, livra-te de acordar o animal selvagem que dorme no teu peito, não se vá evadir de súbito e desfazer-te a ti próprio.” (Schloss Dürande).