Entre a Tragédia e a Desgraça

Cada época precisa de um desafio à altura da sua ambição [creio que já usei esta expressão, haverá a modalidade de auto-plágio?], mas também da sua ignorância e das suas crenças [isto é novo para mim, mas pode ser um plágio involuntário]. Parece que vivemos num tempo onde os desafios são bastante rasteiros, talvez por isso tenhamos trocado a tragédia pela desgraça (não é somente uma questão terminológica). E a vulgaridade dos desafios (que são os que colocamos a nós próprios, não os incomensuráveis que nos cercam e vão destruindo o planeta, há um cerco ambiental de que somos autores e vítimas) é acompanhada por uma ignorância de especialistas ou de alienados e crenças que nunca ultrapassam o horizonte da salvação individual (podia traduzir-se por “se eu não rezar por mim, quem rezará?”).

Em oposição, regressemos à Grécia Clássica, inundada de mitos trágicos. Mas para desenrolar uma linha genealógica, não nos esqueçamos que entre a tragédia grega e a filosofia moderna há um fio condutor feito de teorias e ferramentas de julgamento, montagem e sagração dos tribunais. Logo na origem, Grécia apolínea/dionisíaca, a tragidicidade estava menos na acção do que no julgamento, a tragédia grega cria, antes de mais, um tribunal. Se virmos bem, Édipo não age calculadamente e livremente, é um joguete nas mãos dos deuses, ele não age premeditadamente, mata o pai e casa com a mãe dentro do mais inocente equívoco. O castigo que recebe é totalmente imerecido (mesmo numa cultura sem medo do acaso), e é esta injustiça, tomada nos termos humanos, que torna o Édipo Rei trágico. De igual modo, Antígona não pratica o mal, mais, quando infringe as leis da cidade e enterra o irmão Polinice, está no campo do bem, seguindo leis bem superiores às humanas. Mas o castigo que recebe, funcionando em cascata, é terrivelmente cruel. E é, novamente, a partir de um castigo injusto que se origina o trágico.

O Cristianismo absorveu muito bem a crueldade da punição absurda, sobretudo para testar o grau de fidelidade do povo a Deus. À medida que se sofisticou, preparou o advento da Santa Inquisição, onde sofrimento e morte eram apresentados, vejam bem, como formas de salvação. Talvez contra isto (quero acreditar que sim), Kant criou um fantástico tribunal subjectivo que procurou julgar num registo exclusivamente racional, não mais haveria castigos injustos, tudo resultaria de exactos cálculos racionais. Mas porventura a grande rotura com a tradição judaico-cristã tenha sido desenvolvida por Espinosa (panteísmo), Nietzsche (amoralismo) e Artaud (estética da crueldade). Pelo contrário, Hegel, não consegue no Fausto (I e II) desligar-se da dialética pecado/redenção, deixando a ideia que um julgamento justo está para lá das posses humanas. Talvez por isso, Nietzsche tenha descoberto no fundo opaco da nossa consciência moral, produto de uma longa filogenia, a ideia de que tínhamos uma dívida infinita para com Deus, uma dívida impagável. Daí o “minha culpa, minha tão grande culpa” e as condições insondáveis do Juízo Final.

Bom, apressemo-nos. Hoje já não temos nem o trágico puro da idade de ouro grega nem os castigos infernais seguidos de redenções miraculosas do cristianismo. O trágico já não existe, por mais dor e sofrimento que haja, ficamos com a desgraça. E isto tem que ver com o culto da vitimização, do enxotar constante da culpa para outrem (com os deuses gregos ou o cristão isso era impossível). Somos a época da reclamação, poucas vezes bem orientada, e da vitimização, por adoração podre de nós próprios. Não que deseje uma regressão às encenações que reduziam os direitos individuais a cascas de tremoços. Mas, devíamos olhar com mais frontalidade e exatidão racional para os acontecimentos que não gostam de nos fazer a vontade. Creio que nos faria muito bem, mas isso já não me diz respeito, detesto todo o tipo de proselitismos.