O inverno da vida de um escritor / The Affair

Uma das personagens principais de uma série americana intitulada The Affair, Noah Solloway (Dominic West), atira-nos para a triste constatação de que somos animais infelizes que perdem tempo a mais a desejar ser quem nunca são, e ainda mais infelizes por ignorarem que só não são quem queriam por viverem em absoluto desconhecimento de si mesmos.

Noah Solloway é um professor de meia-idade, angustiado no papel de homem de família, que caminha à sombra do que sonhou. Autor de um romance falhado, ou de um romance que não vendeu o suficiente para lhe oferecer o sucesso e o dinheiro que lhe permitiria escapar à condição de escravo da fortuna da esposa, ambiciona atingir a glória, que para si consiste em aparecer nos jornais, ser comparado a Jonathan Franzen ou dormir com o maior número possível de mulheres. Durante as habituais férias de verão, passadas na casa da praia pertencente aos seus abastados e detestados sogros (o sogro, autor de best-sellers, só lhe agudiza o complexo de inferioridade), apaixona-se por uma atraente empregada de balcão (Ruth Wilson), abandona o lar, assume a relação com a dita empregada, ruiva e misteriosa sedutora, e publica um romance que o catapulta para a fama. Pouco demoramos a descobrir que a frustração deste homem não se extingue. Esgotado o fugaz idílio do sexo selvagem e materializado o amor impossível, afinal amor banal, surgem os problemas normais das relações, o tédio,  a rotina, o bebé por criar, as mentiras e o desinteresse. E se o reconhecimento público o empurra para festas, para outras mulheres, tal não lhe chega, é preciso mais e mais. No caminho que o guia para a concretização dos seus sonhos, sonhos cada vez maiores, Noah Solloway destrói um casamento, a infância dos filhos e até a nova relação com a ruiva que o libertaria da pasmaceira. É nesta criatura incapaz de sair de si mesma, de se libertar de uma voz interior que o comanda para a busca dos prazeres carnais, que a destruição acerta com mais força.

Este escritor descobre a verdade sobre si mesmo no consultório de uma terapeuta. Confrontado com as traições, com a inaptidão evidenciada para respeitar uma mulher, manifesta-se possuído por delírios adolescentes, por uma vontade de arrancar para Paris e escrever, beber, acasalar e portar-se como um libertino. É a terapeuta que lhe sugere que essa vida tão desejada já o escritor a tem, que, sem nunca disso se ter apercebido, talvez a sua principal ambição seja outra: ser o homem fiel que não arrasa vidas alheias a troco de ninharias, ser o homem que fica. Escreveu David Foster Wallace que a verdade nos libertará, mas não se antes ter acabado connosco. A verdade liberta e acaba com Noah Solloway, escritor famoso, finalmente famoso, mas dominado pela ideia de que nada, nenhuma luta valeu a pena, que se alimentou de fantasias que nem à sua real natureza correspondiam.


Ser alfarrabista pode ferir de morte

O inferno dos alfarrabistas não deve ser muito diferente disto. Um alfarrabista chamado senhor Fernando, anafado feirante que nada percebe de livros para além dos preços, despido da cintura para cima a construir um monte de papel com o auxílio de uma cerveja média e uma pá de pedreiro. A cena teve lugar numa das inextinguíveis tardes de quarenta graus oferecidas pelo verão, no armazém de um carroceiro que dá pelo nome de Adérito, um carroceiro que, munido de não mais de uma nota de cem para gratificar viúvas, limpa as casas dos finados da região. 

Antes de abrir uma livraria, acreditava, néscio, que alguns dos alfarrabistas que me habituara a ver pelas ruas de Lisboa tinham qualquer coisa do velho Mendel, o alfarrabista judeu vienense criado por Zweig. Poucas semanas (o tempo que levei a frequentar alguns dos locais por onde andam esses homens) me chegaram para perder qualquer visão romântica. Quando não está a esvaziar apartamentos ou a engrupir o transeunte com as suas fabricadas raridades, o senhor Fernando, ou os senhores Fernandos (que não são todos os alfarrabistas), podem ser encontrados na tasca a emborcar cerveja e a arrotar historietas versando ora sobre o cliente embarretado com um livro de cem euros, ora sobre o alfarrabista rival, que, em consequência de não ter nascido a chamar-se senhor Fernando, nunca percebe nada de nada, nem presta para o negócio. Quem presta? Quem compra bibliotecas de pelo menos quatro mil livros por valores nunca superiores a uma notita, quem obtém lucros exorbitantes com livros adquiridos ao quilo. Como haverá quem pergunte se não é legítimo ser senhor Fernando, viver da trapaça, orgulhar-se de passar a perna e de não ter precisado de ler um livro para levar a vida avante, esclareço que não há mal, que tudo é legítimo, que ser senhor Fernando é actividade louvável, ainda mais na África da Europa, onde a simples existência de livros parece milagre. Abri uma livraria a precisar de lavar a alma, a suspirar por civilização, e é com essa necessidade ainda mais acentuada que, dois anos depois, encerro actividade. A FNAC, que tantas e justas vezes é criticada pelos apreciadores de livros, pelos que não se limitam a suspirar pelas novidades ou pelo que é promovido pelos suplementos culturais, aparece-me ultimamente como um dos últimos bastiões civilizacionais de uma terra condenada à selvajaria. Perdido na multidão, entre as mil estantes recheadas de livros novos, não sinto o peso da provinciana maledicência, do sorriso enganador do senhor Fernando, sinto-me mais próximo de ser quem sou, alguém que lê. 

Privei, durante a licenciatura, com um alfarrabista com muito de Mendel. Ausentava-se da sua livraria por dois motivos: para almoçar e jantar no restaurante do prédio ao lado ou para uma consulta médica. Admirava-o pelo desprezo com que tratava os imberbes estudantes que lhe tiravam os livros do sítio ou que se passeavam às risadas dentro da sua livraria. Lembro agora, não sem imensa nostalgia, um dos livros que esse alfarrabista me ofereceu, A Cultura Integral do Indivíduo, de Bento de Jesus Caraça. Uma leitura que antecedia outras leituras que me tornariam mais Homem. Com esse alfarrabista aprendi que, se não desejamos ser confundidos com primatas, é importante beber o chá, apertar a mão aos amigos, ler o jornal. Presumo que respeitar o espaço dos outros, o mundo dos outros, uma livraria, nos distancie da brutalidade animal. Presumo ainda que é a nossa força, uma força cada vez mais educada, aclimatada à palavra escrita, que nos permite perceber que os senhores Fernandos fazem parte de um caminho, quiçá errado, mas essencial para ser maior.

España saqueada

 

CánoVas del Castillo

CánoVas del Castillo

De todas las historias de la Historia

sin duda la más triste es la de España,

porque termina mal. Como si el hombre,

harto ya de luchar contra sus demonios,

decidiese encargarles el gobierno

y la administración de su pobreza.”

Jaime Gil de Biedma.

                 

A todos los salvapatrias de ínfulas, bandera y conmemoración convendría recordarles la historia de Milo Minderbinder, teniente de la 27ª división aérea de los Estados Unidos destinada en Europa en la II Guerra Mundial. Cuenta Joseph Heller en Trampa 22 cómo Milo se enriqueció durante el conflicto vendiendo ilícitamente toda clase de bienes del ejército en los puertos mediterráneos. Sus pingües negocios privados conseguidos por el contrabando de lo público fueron justificados en clave nacionalista a partir de la consagración de la corrupción como modelo político: si Milo se enriquecía, indirectamente estaba favoreciendo a los Estados Unidos, pues la riqueza del país radicaba en la prosperidad de sus conciudadanos. Con esta lógica, tan familiar para todos los patriotas y padres de la Constitución con números en Suiza, el teniente hizo millones jugando con la vida de miles de soldados norteamericanos. En una ocasión vendió como alimento a sus tropas un algodón incomestible. “Si te metes en algún lío, di que la seguridad del país requiere una industria fuerte en especulación con el algodón de Egipcio”, lo que en términos macroeconómicos y geoestratégicos implicaría una Norteamérica mucho más fuerte. Envenenar y empobrecer a tus soldados a costa del beneficio individual se convertía en un acto nacionalista en la lógica Milo. Llegó al extremo de facilitar coordenadas a los bombarderos nazis para que destruyeran posiciones aliadas. Sus confidencias costaron millones de dólares y miles de vida. En el juicio por traición fue absuelto porque convenció al tribunal que sus acciones fueron un sacrificio patriótico para estimular la industria norteamericana.

El teniente Milo, con diferentes formas y siglas, se presenta a las próximas elecciones y, si las encuestas no se equivocan demasiado, saldrá elegido presidente del Gobierno y jefe de la oposición. Con nuestro voto dotaremos de legitimidad un sistema corrupto e inmoral, refugiado en discursos patrióticos -¡que viene Venezuela!- que los medios jalean para que la ruleta rusa del bienestar no dirija el cañón al que aprieta el gatillo. Ha ocurrido en Andalucía, en Cataluña y el desastre se consumará a nivel estatal. Sucesivamente han sido reafirmados en las instituciones partidos, líderes y conductas criminales, cundiendo el mensaje de la impunidad. En la raíz del discurso político ha estado la cuestión nacional, la patrimonialización o personificación de la identidad, cuando en realidad nos estábamos jugando la victoria electoral del patriotismo Milo.

Encontramos en el último siglo decenas de ejemplos significativos que por vergüenza cívica deberían conducir a la desaparición o reformulación de determinados partidos políticos y sindicatos. Que “Luis, se fuerte” vuelva a presentarse con opciones reales de victoria nos tendría que ruborizar. Como ironizaba El Roto, no votamos, fichamos. Esta democracia-show, tan vulnerable por los imaginarios del terror, el consumo y el desencanto, ha perpetuado el saqueo nacional, demonizando a todo aquel que lo ha cuestionado o denunciado a partir de la lógica nacional.

Cánovas del Castillo, en vísperas de la debacle militar en Cuba y Puerto Rico, afirmó en el Congreso de los Diputados que España emplearía la sangre de su último hombre y gastaría su último céntimo en conservar aquellas provincias. Por supuesto, no se refería a sus propios hijos ni a sus céntimos. Cuando evocaba a España, hablaba del pueblo doliente, de obreros y jornaleros sin recursos económicos para escapar del infierno. Esta España, henchida de patriotismo, debería seguir luchando, agonizando y muriendo por la España mínima que se enriquecía con el comercio transatlántico. En 1919, los conservadores llamaban a reforzar el somatén y la violencia de la Guardia Civil para que en nombre del Dios de España, la (su) familia y la (su) patria, dispersasen a tiro limpio las masas de pobres que rebuscaban bellotas en el suelo o reclamaban mejores derechos laborales. Un ritual de sangre y luto que reconstituiría la nación española en contra de sus habitantes. El mismo que protagonizó Franco décadas después, al iniciar una guerra sin recursos y acabarla con ríos de sangre y oro en sus caudales. He ahí un patriota.

La complicidad y legitimación del saqueo es el gran fracaso de la democracia de nuestro país. La crisis está en las papeletas que depositamos, no en las instituciones. No es extraño que el Juan de Mairena no sea leído ni entendido en los horizontes culturales del patriotismo de pulsera y comisión: “Si algún día tuviereis que tomar parte en una lucha de clases, no vaciléis en poneros del lado del pueblo, que es el lado de España.” El 20D nos han convocado para votar por España, por Cataluña, por la Constitución o por la Autonomía, principios vagos que esconden los beneficios privados de todos los Milo que convierten intereses personales de clase en problemas nacionales. Por ello hemos rescatado a la banca sin intereses y hemos perdido espacio en colegios y hospitales.

Y una vez más, por la España gris, corrupta y traidora, por un erróneo sentido del patriotismo –que no es más que admiración por el cacique y anhelos de burguesía con hambre- refrendaremos en el poder a aquellos que van a enviar a nuestros hijos a morir en Siria, a lavar platos a Londres o a pedir limosna con una factura de agua a los servicios sociales. Y la culpa será nuestra y nos lo mereceremos, porque cuando tuvimos oportunidad votamos a Milo. Llora, España, que lo tuyo es llorar.

                  

Os melhores de 2015

Um poeta escreve

Um poeta escreve

País de jograis e de génios nem a chicote domáveis, Portugal pauta-se por uma fecundidade criativa que desacredita a feitura das habituais listas dos melhores do ano. Ciente da abundância criativa lusitana, a massa crítica que coloniza os nossos (leia-se chegados ao coração) escassos mas valiosíssimos suplementos culturais tende, e bem, a suprimir análises que incluam reflexão. A ausência de fontes credíveis impossibilita-me de descobrir quem tem barrado (um político sinistro, um perverso legislador?) o acesso dos mais reputados críticos nacionais a algo por cá tão pouco massificado como o pensamento, faculdade humana nefasta para indivíduos inexperientes ou inabilitados para agir desprovidos de psicopatia. Quem foram, então, os mais grandiosos prosadores e versejadores deste Portugal mais nascido para sentir do que para raciocinar? 

Da vasta produção poética de José Não-Bebas-Tudo (nome de guerra), que infelizmente não desaguou em mais do que meia-dúzia de versos impressos, sobressai o poema “Complexidade do amor”, dado à estampa pelo guardanapo do café que quis o acaso que fosse eu, atenta às minúcias artísticas, a encontrar. Neste poema, que evito reproduzir para instar o leitor a percorrer os cafés do Chiado em busca de semelhante guardanapo, José, apenas José, quebra as regras da poesia. Soprou-me um anjo que se projecta para 2016 o lançamento em livro de uma recolha dos mais belos guardanapos deste delinquente literário que, a viver à conta da reforma da avó, comprova que Portugal não respeita os seus artistas. 

Do céu caiu uma estrela, o revolucionário Manuel Gandulo, pois claro. Marginal por vocação, desliza pelos balcões do Cais do Sodré numa obsessão pelo vómito da sociedade que o torna personagem central da sua arte. Quem o vê passar durante o dia, encostado às paredes para não tombar de bêbedo, não consegue imaginar que o esfarrapado, malcheiroso e cambaleante barbudo com tiques de arrogante (não me toque, não me toque que sou poeta, brada a cada esquina) representa na verdade o que a poesia tem de melhor: a capacidade de transpor para a arte a bestialidade da vida. Se este piolho andante nunca escreveu, foi por disso não ter necessitado: a sua pose transcende o papel e a caneta. 

Criado em berço de ouro, o jovem António Mais-Subterrâneo-Não-Se-Arranjava não se rendeu a um determinismo que o empurrava para uma carreira na advocacia ou como representante da República no Parlamento. Os sete anos monasticamente cumpridos na Faculdade de Direito foram-lhe essenciais para compreender que a sua missão no planeta diferia da missão que os pais diziam ser a sua. Lidos os primeiros poemas, meteu na cabeça que seria poeta laureado e sisudo. Num afã de ser outro, fez o possível e o impossível para conquistar um lugar ao Sol. Perseguiu, ameaçou e espancou os mais nomeados críticos da praça. Não desistiu até ter revista, editora e livros próprios. Em 2015 consagrou-se como artista de excelência com um livro banalíssimo que, depois de coagida por sms nocturna, direi que me parece promissor se lido de trás para a frente e de olhos fechados. 

Quem quer saber do que de melhor se publica no estrangeiro quando o que é nacional supera o resto? Das subtilezas da intuição e do sentimento sabemos nós, povo fundador de uma ruralidade divina, homens-trovão, descendentes de Neptuno, filhos de Viriato, heróis de uma Expansão futura. 

Uma escritora possuída por forças ocultas

 A despeito da horrenda capa com letras cor-de-rosa a dar um ar de best-seller, interessei-me por A Louca da Casa, da madrilena Rosa Montero, por ter lido na contracapa que se tratava de “uma viagem através do misterioso universo da fantasia, da criação artística”. Diverte-me, não é outro o verbo, a leitura de textos sobre a escrita, sobre ser escritor, e mais me diverte que esses textos sejam dados à estampa por escritores determinados a cientificamente elencarem as forças extraterrestres e espirituais que os impelem a garatujar frases no papel. 

  Quem confere a arte à mão que empunha a caneta? A Rosa Montero acontece escrever acima das suas capacidades, muito melhor do que sabe, e para explicar esse fenómeno ou dom recorre a algo que Rudyard Kipling apelidava de daimon,  uma espécie de espírito intermediário entre os humanos e o Além. Rosa Montero escreve na “escuridão, sem mapas, sem bússolas”. Escrever, refere, é flutuar no vazio, e para flutuar no vazio há que sonhar, como Stevenson, proprietário de uns “pequenos duendes” que lhe sopravam ao ouvido os romances que deveria escrever. Incapaz de explicar o processo que o levou a cuspir duzentas páginas impressas, o escritor recorre aos demónios, aos duendes, ao sonho, em suma, a uma série de mitos abarcados pela palavra inspiração. Devemos acreditar que o escriba detém forças mágicas ou divinas, que depende de luzes e sons ou de surreais sensações para pagar a renda da casa. Declarar que o motor da escrita é um duende que nos sopra ao ouvido, é como professar que a chuva se deve mais a uma dança tribal do que ao Sol e à evaporação. 

Qualquer artista, mesmo o mais subsidiário do inconsciente, depende do trabalho. Não é, insisto no óbvio, possível vomitar uma obra-prima sem transpirar, sem falhar, sem tentar acertar no texto certo repetidas vezes ao longo dos anos. Uma frase legível resulta de frases mil vezes riscadas.  Ainda que convivamos com demónios interiores ou precisemos de certas sensações ou estados de alma para escrever com destreza e fluidez, não é garantida a qualidade de um texto resultante de um transe criativo. O que mais vezes acontece é o texto soprado ao ouvido, apelidado por simples mortais de primeira versão, originar inúmeras alterações que invariavelmente diluem aquilo que as divindades artísticas nos sopraram. Como viveram os autores que levaram décadas a escrever um só livro? Em transe intermitente? É o inconsciente que alinha as vírgulas, que aparafusa a prosa? Rosa Montero, e outros propagadores de lérias a metro, querem que acreditemos que a escrita é para predestinados. Se todos podem ser pedreiros, apenas quatro ou cinco se podem dedicar à escrita. Esta futilidade misturada com crendice até teria alguma piada, se por exemplo saísse da pena de algum génio mitómano. Que dizer desta escritora que, mesmo possuída por forças ocultas, tão sofrivelmente escreve? Será possível, num impulso de rudeza, considerá-la predestinada para a mediania?