Ser alfarrabista pode ferir de morte

O inferno dos alfarrabistas não deve ser muito diferente disto. Um alfarrabista chamado senhor Fernando, anafado feirante que nada percebe de livros para além dos preços, despido da cintura para cima a construir um monte de papel com o auxílio de uma cerveja média e uma pá de pedreiro. A cena teve lugar numa das inextinguíveis tardes de quarenta graus oferecidas pelo verão, no armazém de um carroceiro que dá pelo nome de Adérito, um carroceiro que, munido de não mais de uma nota de cem para gratificar viúvas, limpa as casas dos finados da região. 

Antes de abrir uma livraria, acreditava, néscio, que alguns dos alfarrabistas que me habituara a ver pelas ruas de Lisboa tinham qualquer coisa do velho Mendel, o alfarrabista judeu vienense criado por Zweig. Poucas semanas (o tempo que levei a frequentar alguns dos locais por onde andam esses homens) me chegaram para perder qualquer visão romântica. Quando não está a esvaziar apartamentos ou a engrupir o transeunte com as suas fabricadas raridades, o senhor Fernando, ou os senhores Fernandos (que não são todos os alfarrabistas), podem ser encontrados na tasca a emborcar cerveja e a arrotar historietas versando ora sobre o cliente embarretado com um livro de cem euros, ora sobre o alfarrabista rival, que, em consequência de não ter nascido a chamar-se senhor Fernando, nunca percebe nada de nada, nem presta para o negócio. Quem presta? Quem compra bibliotecas de pelo menos quatro mil livros por valores nunca superiores a uma notita, quem obtém lucros exorbitantes com livros adquiridos ao quilo. Como haverá quem pergunte se não é legítimo ser senhor Fernando, viver da trapaça, orgulhar-se de passar a perna e de não ter precisado de ler um livro para levar a vida avante, esclareço que não há mal, que tudo é legítimo, que ser senhor Fernando é actividade louvável, ainda mais na África da Europa, onde a simples existência de livros parece milagre. Abri uma livraria a precisar de lavar a alma, a suspirar por civilização, e é com essa necessidade ainda mais acentuada que, dois anos depois, encerro actividade. A FNAC, que tantas e justas vezes é criticada pelos apreciadores de livros, pelos que não se limitam a suspirar pelas novidades ou pelo que é promovido pelos suplementos culturais, aparece-me ultimamente como um dos últimos bastiões civilizacionais de uma terra condenada à selvajaria. Perdido na multidão, entre as mil estantes recheadas de livros novos, não sinto o peso da provinciana maledicência, do sorriso enganador do senhor Fernando, sinto-me mais próximo de ser quem sou, alguém que lê. 

Privei, durante a licenciatura, com um alfarrabista com muito de Mendel. Ausentava-se da sua livraria por dois motivos: para almoçar e jantar no restaurante do prédio ao lado ou para uma consulta médica. Admirava-o pelo desprezo com que tratava os imberbes estudantes que lhe tiravam os livros do sítio ou que se passeavam às risadas dentro da sua livraria. Lembro agora, não sem imensa nostalgia, um dos livros que esse alfarrabista me ofereceu, A Cultura Integral do Indivíduo, de Bento de Jesus Caraça. Uma leitura que antecedia outras leituras que me tornariam mais Homem. Com esse alfarrabista aprendi que, se não desejamos ser confundidos com primatas, é importante beber o chá, apertar a mão aos amigos, ler o jornal. Presumo que respeitar o espaço dos outros, o mundo dos outros, uma livraria, nos distancie da brutalidade animal. Presumo ainda que é a nossa força, uma força cada vez mais educada, aclimatada à palavra escrita, que nos permite perceber que os senhores Fernandos fazem parte de um caminho, quiçá errado, mas essencial para ser maior.