“Não entendes”, soprava Bósforo, amaciando a pança inchada, a digerir um tacho de ensopado de vitela. “Nunca entendes”, repisava, bêbedo de refogado, travando uma ameaça de vómito. “Qual destas peruas me entende?”, zurrava, eriçado, entre murros no balcão e arremessos de cuspe para o piso alcatifado. Meio morto a seu lado, também carregando a sua dose de ensopado, Bucéfalo, amigo de infância, espécie de aguadeiro ou conselheiro ou ouvidor, palitava os dentes, enviava gordurosas beijocas para a curvilínea bartender a torcer o nariz de nojo à distância, e acenava que sim, muitas vezes que sim, lamentava a falta de reconhecimento que mentes abrilhantadas por talento artístico, como a de Bósforo, a pessoa mais inteligente e mais tudo que conhecia, obtinham da sociedade. “Vivemos num país decadente”, doutorava Bósforo, instigado pela lembrança de ter espatifado meia década a escrever à máquina um livro de novecentas páginas, uma mastodôntica história de amor baseada em “factos verídicos”, envolvendo um tio padre de aldeia, uma beata viúva, lascívia e pecado. “Para quê escrever?”, gemia, suado, Bósforo, para quê escrever se as editoras não lhe respondiam (trinta cartas devoradas pelo desprezo), se as novas gerações, sorvidas pelo narcisismo, nem punham a pata em livrarias, se até o trabalho lhe cortava a vontade de escrever. Bucéfalo, cuja apatia era razão para a existência de um contínuo fio de saliva a escorrer-lhe da beiça, tremia das pernas ao pensar na profissão do amigo, não concebia que alguém, muito menos o amigalhaço, se queixasse do melhor trabalho do mundo, o de experimentador de meninas, e por essa razão arregaçou as mangas da camisa e esmagou ao soco os amendoins à sua frente espalhados e ladrou que não se cuspia no prato daquela maneira, que o ofício de provador de meninas era o grande sonho masculino, que todos os dias pedia a deus que lhe enviasse um primo, um cunhado, alguém que o contratasse para ir para a cama com as mulheres que se candidatavam para trabalhar em bares de alterne. “Troca comigo”, propôs Bucéfalo, proprietário de um cargo de professor de literatura numa escola pública, dono de uma página de crítica literária em prestigiado jornal. Bósforo já não obtinha prazer das mulheres, perdera o gosto à coisa. Depois de mil e muitas vaginas, esquecera-se do amor. O sexo, industrializado, esvaziara-lhe a alma, carecia de contacto humano, do carinho que galdéria alguma conhecia. Assistia a telenovelas para se emocionar. Berrou que aceitava trocar, tornar-se crítico literário e professor, abandonar o mulherio. Fez-se silêncio. As prostitutas da sala aguardavam resposta. “Não posso”, abafou Bucéfalo, fazendo contas ao seguro de saúde, ao empréstimo da casa, aos anos de serviço que lhe restavam para a reforma. “Igualmente”, ripostou Bósforo, outra vez apaixonado pela Marta, pela Rita, pela Maria, pela Madalena, fêmeas por ele provadas e contratadas. Bucéfalo coçava-se, não tocava em mulheres sabia-se lá desde quando, e então perguntou: “Se te elogiar o livro no jornal, permites que experimente aquela ali, a bartender?” Bósforo retorquiu: “Se permitir que experimentes a Vanessa, uma das minhas favoritas, consentes que escreva duas crónicas por ti no jornal, para saborear a fama?” Após cavalheiresco aperto de mão, seguiu-se amazónica bebedeira que lhes varreu da memória qualquer conversa ou acordo.