Entrevista a João Francisco

Por estes dias, a Galeria 111 em Lisboa apresenta ao público uma extraordinária exposição de Pintura, de um excelente pintor: João Francisco (1984 - ). Procurando dar a conhecer novos artistas, que praticam a pintura, a Enfermaria 6, resolveu convidar alguns artistas pintores a falarem da sua obra. O primeiro convidado é, precisamente, João Francisco. A entrevista foi realizada via mail:

 Vítor Teves - João, antes de falarmos dos seus últimos trabalhos, em exposição na Galeria 111, gostaria que nos falasse sobre a sua formação. A primeira pergunta, demasiado óbvia, é porquê a pintura e não outra expressão artística?

João Francisco - A minha licenciatura na faculdade de Belas-Artes de Lisboa tinha na altura a designação de “artes plásticas – Pintura”. O que mostra que a prática mais específica da pintura era entendida dentro de um campo mais vasto. De facto, durante os cinco anos do curso, não me cingi à prática da pintura (ela talvez até tenha sido o que menos pratiquei). Fiz essencialmente desenho, e também muitas experiências mais orientadas para a manipulação de objectos, esculturas e instalação. Embora tenha quase só exposto publicamente pintura e desenho, continuo a explorar outros meios que implicam a tridimensionalidade (e que estão para mim sempre presentes também na construção das “esculturas temporárias” que são os modelos para as pinturas e desenhos).

VT - De que forma a narrativa da morte da pintura influenciou ou influência a tua prática? Vemos que essa narrativa, hoje em dia, em 2018, já não faz sentido. Bem pelo contrário, há uma renovação da pintura, com novos contornos, a que a pintura do João é um bom exemplo. Pode-nos falar dessa experiência entanto pintor e observador de pintura, que julgo ser uma constante em todo o pintor?

JF - A narrativa sobre a “morte da pintura” é algo que acima de tudo me diverte. Tenho-a usado várias vezes como tema ou ponto de partida para pinturas e desenhos. A própria enunciação, “morte da pintura”, é tão pateta que se presta a essa exploração pictórica. Enquanto pintor, mas acima de tudo enquanto espectador de arte, essa narrativa parece-me completamente absurda. Assenta obviamente na tentativa de promover uma estética (derivada dos movimentos minimalista/conceptual) que a mim pouco me diz (desconfio que a muita gente também). Suspeito sempre do que, seja na arte na política ou na vida, ambiciona a ser “puro” e sobrepor-se ao resto (sabemos que quase sempre acaba mal). Pelo contrário, o que é particular, autêntico, e por isso corajoso, seduz-me muito mais facilmente. Terei que admitir que continua no entanto a ser difícil, no nosso pequeno e influenciável meio artístico, praticar pintura figurativa e com cor.

VT - Um dos aspetos muito interessantes na sua pintura é a ideia de “descoberta”/ “procura” do objeto, total ou parcial, associado à ideia de arqueologia. Não só no pintar do objeito em si, nos cacos de cerâmica, por exemplo, mas face à própria História da Pintura. Pode falar-nos sobre isso?

JF - As questões de “descobrir “ ou “procurar”, a que poderei acrescentar a de “encontrar”, são essenciais na minha prática. Muitas das peças têm a sua origem nesse descobrir e encontrar absolutamente casuais (que vão dos cacos “arqueológicos” que encontro ao fazer jardinagem, dos objectos que casualmente são trazidos pelo mar e deixados nas praias, aos objectos perdidos e encontrados na rua – ou recuperados junto a qualquer caixote do lixo -, nas coisas feias e indesejáveis que, depois de uma arrumação da casa, os amigos ou familiares me fazem chegar…). Esta poderá ser a primeira parte, a forma como as coisas vêm ter comigo. A outra será o que faço com elas, como as decido representar, o que desejo dizer através delas (como um encenador faz ao por em cena os actores e os adereços num cenário). Nesta segunda fase o que despoleta uma imagem é muito variável: a resposta a qualquer assunto real do mundo contemporâneo, comentários e evocações de obras de arte do passado, meras relações formais entre os objectos.  A arqueologia (uma paixão de infância, tendo eu até desejado vir a ser egiptólogo…) é realmente uma boa comparação com o meu método de trabalho na medida em que o seu objectivo é o de através dos objectos compreender ou evocar algo do âmbito do imaterial.

VT - Na sua exposição de 2009, na Galeria 111, no Porto, encontrei, como nunca em outra pintor, um vínculo marcadamente, digamos, Gustiniano. Mas que nos últimos trabalhos já não se encontra tão nitidamente, fruto do amadurecimento, julgo. O que lhe fascina em Guston?

Philip Guston é de facto uma inspiração. Por um lado pelas obras em si (todas as fases, mas principalmente o regresso à figuração na fase final), e por outro pelo exemplo que vejo na sua coragem e determinação em fazer o que sentia necessário (indo radicalmente contra o que o meio artístico de certa forma lhe exigia). O falar sem rodeios, e com uma enorme auto-ironia, da sua vida pessoal, dos seus vícios e preocupações, de uma sociedade em crise, da política e da guerra, é para mim uma verdadeira fascinação.

VT - Embora a sua pintura se afaste da de Guston, sobretudo nos últimos trabalhos, há, contudo, alguns aspetos que perduram: as “pirâmides” de diferentes objectos e o uso, aqui e alí, do rosa, tão caro a Guston.  Isto não é uma crítica, pelo contrário. O que o fascina tanto nos objetos e no rosa?

JF - O aspecto das pirâmides e amontoados de objectos  é de facto uma constante no meu trabalho. Não as vejo no entanto, mas percebo a relação que faz, como unicamente derivadas da pintura de Guston. Esses amontoados, para mim, têm uma origem talvez menos erudita: estão presentes nos destroços que dão à praia, nas montanhas infindáveis das lixeiras, nos objectos espoliados aos Judeus e agrupados por espécie em Auschwitz, nos ossos empilhados e criando arquitectura na capela de Évora. Os objectos fascinam-me porque contam histórias, porque podemos associar a eles o passado. Porque podem simbolizar ou metaforicamente substituir pessoas. Também porque são extremamente variados: naturais ou feitos pelo homem, com formas regulares ou expressivas, belos, feios, disformes.  O rosa não me fascina particularmente, nem tenho a noção de o usar mais frequentemente que outras cores. A cor que surge no meu trabalho é sempre a cor local dos objectos que estão a servir de modelo. Devo dizer que a selecção dos objectos nunca passa pela sua cor: eles são escolhidos pela forma, pelo “papel” que desempenham na composição em questão, e a sua cor é mera consequência disso.

VT - Nos trabalhos de 2009, se bem me lembro, havia evocações claras a Gauguin e Luc Tuymans. Foram meras citações ou há de alguma forma uma evocação propositada, já que Gauguin e Tuymans são dois pintores de fim de século que renovam a pintura?

JF - Não há uma evocação propositada na utilização das imagens de Gauguin ou Tuymans, sendo eles no entanto pintores que admiro e aprecio. Muito simplesmente são imagens que encontrei, que retirei de publicações, e que encaro como objectos com a mesma importância que qualquer outra coisa que tenha no estúdio e decida representar. Sim, elas são representações de pinturas que alguns espectadores reconhecerão, o que me interessa, mas são principalmente mais um elemento dentro de uma composição mais vasta.

VT - A sua pintura, é em certa medida, a do “preenchimento total”, não só pelo uso acumulativo de objetos, de diferentes proveniências, mas também a do preenchimento “all-over” do espaço pintural, estou a pensar, sobretudo, nas pinturas sobre pequenos pedaços de cerâmica. O que acho extraordinário. Quer falar desses trabalhos e porquê esse excesso, quer de objetos, que no preencher da folha?

JF - É uma pergunta interessante e à qual não sei se tenho uma resposta. Existe de facto esse aspecto acumulativo e excessivo, e normalmente uma ocupação total do plano pictórico, na maioria dos meus trabalhos. Talvez tenha a ver com a minha forma de ver as coisas no espaço: como pesadas, pousadas num plano, com sombras, com relações entre si. Talvez seja isso, o que me interessa é a relação das coisas entre si, e não a sua individualidade. Daí não existir normalmente algo que seja o foco da imagem, sendo o resto mero adereço, mas sim um tratamento por igual de todos os elementos.

VT - A sua pintura e o seu desenho são marcados pelo uso vincado da sombra. E creio que, pelo que vejo no Instagram, é um pintor que pinta muitas vezes no escuro ou a altas horas do dia. É uma estratégia ou mera contingência?

JF - A representação da sombra é essencial na minha pintura. Ela dá volume ao que é representado e demonstra a sua realidade, o seu posicionamento no espaço. Em composições mais complicadas, com mais objectos, é essencial procurar alguma clareza para não haver dúvidas acerca do que se está a ver. Daí a utilização de uma única fonte de luz, artificial, e o trabalhar à noite: só assim é possível manter as sombras próprias e projectadas imutáveis

VT - Nos trabalhos, agora em exposição na Galeria 111, as flores ganham um relevo extraordinário. Essa tapeçaria de flores que evoca as tapeçarias medievais, a mille fleurs, é um trabalho épico. Pode falar sobre esse trabalho em particular? Como surgiu a ideia, quanto tempo demorou, constitui apenas uma peça ou é um mera solução expositiva?

 JF - A peça mille-fleurs parte das tapeçarias tardo-medievais/ renascentistas com o mesmo nome. Embora nunca tenha realmente visto nenhum exemplar extraordinário ao vivo, conheço imagens de muitas e fascinam-me por vários motivos. Antes de mais pelo aspecto técnico da sua realização, com o que implicou de tempo e trabalho minucioso, pela interpretação que constituem de uma outra pintura (o cartão). Também porque têm como tema um assunto que me ocupa diariamente: o jardim e as plantas. Acho que vi nesta peça a possibilidade e o pretexto para juntar estes dois aspectos importantes do meu dia-a-dia: a pintura e a jardinagem. Propus-me a fazer então um painel que ao representar as plantas cultivadas no jardim, ou recolhidas no campo em torno dele, pudesse também evocar esses jardins míticos que são o cenário das tapeçarias, aqui libertos dos seus actores e existindo por si. Seria também uma forma de falar na passagem do tempo (implicado nas diferentes épocas em que cada flor ou planta atinge o seu auge). Foram também surgindo pequenos animais, encontrados mortos, que encontraram o seu lugar junto das plantas (à imagem do que também acontece nas tapeçarias, sendo no entanto aí representados vivos). As 160 pinturas que constituem a peça foram realizadas entre Janeiro e o início de Setembro. Encontrei na escolha dos dois formatos das pinturas a forma de fazer as diferentes imagens desencontrarem-se, misturando-as, o que não aconteceria se todas as folhas fossem do mesmo tamanho. Este aspecto encadeado acontece também nas tapeçarias mille-fleurs.  O conjunto das 160 pinturas funciona como uma única peça e foi assim pensado desde início: ao isolar ou desmembrar parte das imagens, o efeito de conjunto, de colecção, de acumulação, seria perdido.

VT - Nesta exposição optou por evitar as tradicionais telas. São, na sua maioria, trabalhos sobre Papel. Querer falar sobre os seus suportes e técnica usada?

JF - Os trabalhos são todos sobre papel e a tinta acrílica. É a primeira vez que uso a cor com este material (até então apenas tinha realizado pinturas a acrílico com branco e preto, com um resultado próximo das grisailles). Este material, diferente do óleo, permitiu-me trabalhar de uma forma nova, sobrepondo repetidamente desenho e pintura, camadas opacas ou transparentes. Parte das peças da exposição (a série mille-fleurs) é realizada sobre um suporte específico: tendo-me sido dado um conjunto vasto de antigos desenhos sobre papel esquisso (mapas com desenhos de bordados para roupa de mesa e cama) decidi usá-los, colando-os sobre folhas e fazendo a minha pintura sobre eles. Parte destes desenhos é no fim visível entre os elementos pintados por mim.

VT - É um pintor em constante contacto com a natureza, pode-nos falar sobre isso. Sobre o seu quotidiano com as flores, animais e paisagens?

A natureza é parte constante do meu quotidiano. Sempre vivi no campo, e também não estou muito longe da praia, do mar. As plantas e os animais fazem parte do dia-a-dia, embora o meu envolvimento mais empenhado no jardim seja algo mais recente, talvez dos últimos 10 anos. Tem sido um fascínio aprender e descobrir com as plantas, e também perceber até que ponto a natureza é generosa, tem o seu tempo, e acima de tudo tem sempre razão.

 VT - Para terminar, visto que a maioria dos leitores da enfermaria 6 se interessa sobretudo por poesia, tem algum poeta preferido? Do que lê, que autores gosta ou o inspiram na sua pintura?

JF - Confesso que poesia não é a área que mais tenha explorado, o que é certamente uma lacuna a corrigir. Penso que o poeta que mais tenha lido seja a Sophia, que verdadeiramente aprecio. Uma descoberta recente tem sido Emily Dickinson. Fora da poesia, no “em busca do tempo perdido” de Proust, e em Virginia Woolf,  tenho encontrado verdadeiras afinidades.

João Francisco - "Mille-fleurs", 2018 (foto:Galeria 111)

João Francisco - “Mille-Fleurs”, 2018. [Foto: Galeria 111]

Epístolas de Horácio - Cassandra Jordão Entrevista Pedro Braga Falcão

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Depois de um longo hiato, Cassandra Jordão volta à carga com uma entrevista a Pedro Braga Falcão, a propósito da sua tradução das Epístolas do poeta latino Horácio.

Ficámos de nos encontrar com o doutor (xôtor) Pedro Braga Falcão na livraria Flâneur no Porto. O tradutor de Horácio atrasou-se meia hora e compareceu no seu melhor fato de treino (ainda sem acertar com o detalhe da peúga por cima da calça, contudo). A livraria encontrava-se fechada e, como é costume nestes encontros entre literatos, dirigimo-nos para o café mais literário, mais boémio e mais próximo que nos foi possível encontrar. Ou assim garantimos ao poeta: as mesas eram de fórmica cinzenta com umas toalhinhas de papel por cima, havia uns croissants solitários e tristonhos (talvez de há dois dias, talvez um pouco mais) no expositor do balcão, e quando pedimos dois copos de vinho rosé não havia. Na verdade, nenhuma variedade de vinho estava disponível. Tivemos de nos contentar com café. Para nossa surpresa apareceu acompanhado do seu filho de cinco anos, que falava claramente demasiado e queria muito os croissants de dois dias. O tradutor não nos dispensou toda atenção que merecíamos por causa do pirralho, o que nunca fica bem num erudito.

Pedro Braga Falcão é doutorado em estudos clássicos com uma tese sobre a música da poesia de Horácio e há ainda uma licenciatura em música, como instrumentista de viola de arco (embora PBF não negue o seu interesse pela trompa). É professor na Universidade Católica Portuguesa, gosta de etimologias (Palavras que falam por nós, Clube do Autor), é autor de um livro de poemas (Do Princípio, também pela Cotovia) e há outro livro de poemas a sair em breve pela Enfermaria 6. Nenhum destes méritos iguala a audácia e a autoridade da sua opção por um venerável bigode (se é que podemos chamar bigode a um conjunto esparso de pêlos sobre o nariz). Juntámo-nos numa tarde de Outono, quase inverno, para falar da nova tradução das Epístolas de Horácio.

Como surgiu a ideia de traduzir as Epístolas de Horácio e porquê esta obra em particular? Foi por gostar de ler correspondência alheia?

Se tentar ler as epístolas de Horácio como correspondência alheia, vai ficar bastante desiludida (risos). Suponho que a única coisa que ficará a saber é que Horácio se tratava de um comilão baixinho, grisalho e corpulento, e que tinha um grupo grande de amigos de quem não sabemos praticamente nada. Bem, a Cassandra na sua qualidade de profetisa poderá saber mais qualquer coisa (risos afectados e estupidamente pedantes). Porque decidi traduzir as Epístolas? Na verdade, era a consequência lógica de traduzir as Odes; cronologicamente, era o que fazia mais sentido: as Epístolas foram publicadas a seguir aos primeiros três livros de odes... Mas a minha intenção é mesmo traduzir toda a obra de Horácio (só faltam os Epodos, as Sátiras e a Arte Poética).

O Pedro já havia traduzido as Odes de Horácio (também na Livros Cotovia, em 2008) e, antes disso, o Carmen Saeculare tinha sido objecto da sua tese de mestrado. Não há mesmo mais nenhum autor clássico que lhe interesse?

Claro que há. Aprecio muito Herberto Helder e António Ramos Rosa. Infelizmente ainda não se encontraram os manuscritos originais das suas obras, que toda a gente sabe que estão em latim.

Podia falar-nos um pouco de como começou a sua obsessão com Horácio e de porque é que continua a insistir nela?

Tudo começou quando a minha mãe me ensinou a ser poeta. Passados vinte anos encontrei Horácio. É claro que por vezes ele me aborrece bastante. Mas ensinou-me toda a imperfeição de um verso demasiado bem composto... nunca mais me esqueci de procurar nos versos essa vertigem de compositor de palavras, em tudo o que escrevo. Gostava de dizer que era uma obsessão essa busca, mas receio que ainda não estou nesse estado; ainda deixo alguns versos em paz.

Horácio tem influência sobre a sua criatividade enquanto poeta ou nem por isso?

Nem por isso. A minha criatividade vem da minha infância e das minhas longas brincadeiras no meu pinhal, a sós com o meu mundo de criança. Horácio é apenas um autor de vários que me ensinaram a estar na poesia. Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Tom Jobim, Janis Joplin, Chico Buarque, Leonard Cohen, Jacques Brell, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, entre vários, foram outros poetas a fazê-lo. Sou um privilegiado por ter nascido quando toda essa gente já tinha andado por cá.

Que outro autor da antiguidade gostaria de traduzir?

Vergílio, claro. Outro poeta até à medula. Quando acabar de traduzir tudo de Horácio, talvez venha a traduzir tudo de Vergílio. Quem sabe. 

De todas as traduções de autores clássicos publicadas em Portugal na última década, qual a que mais o influenciou e porquê?

As Odes de Horácio da Cotovia (risos algo boçais). Foi uma influência decisiva para esta minha última tradução (continuam os risos idiotas e algo pedantes)... Bom, para dizer a verdade sou mais influenciado pelo trabalho da academia inglesia... Nisbet, West, Rudd... Enfim, tenho uma dívida de gratidão para com o trabalho de gente como esta, e tento sempre ser tão sério e honesto como estes foram na sua actividade intelectual e académica.

Pode elaborar um pouco – para os nossos leitores – sobre porque devemos ler as cartas de Horácio hoje (além do motivo óbvio de se ficar com a impressão de que estamos a ler o heterónimo com menos talento de Ricardo Reis)?

Em geral nunca elaboro antes do meio-dia, pode cair-me mal (não me parece que esteja a brincar, este tipo é um pouco afectado). Ricardo Reis nunca escreveu cartas em verso, o que me leva a considerar que talvez o seu horacianismo deixe um bocado a desejar (risos parvos). Bom, essa pergunta que faz é difícil de responder. Cada leitor terá a sua motivação para ler. A primeira razão é clássica: um texto que sobreviveu a dois mil anos de história num estado impecável de conservação (como poucos!) diz muito da sua qualidade.  Depois, o facto de ter sido o inaugurador de um género (cartas em verso), que conheceu grande fortuna no Ocidente, até ter caído aparentemente no oblívio...

Mesmo em Portugal?... (fui como que forçada a fazer esta pergunta, embora no fundo não me interessasse muito a resposta)

Sim, mesmo em Portugal, grandes nomes da nossa literatura, particularmente renascentista, como Sá de Miranda, Pêro de Andrade de Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, cultivaram o género... Mas essa não é a única razão. A principal é o texto em si, e as tensões que ainda hoje encerram. A tensão entre agradar aos poderosos e liberdade artística. A tensão entre a boémia e o regramento. Mas também a truculência com que ataca os vícios da sociedade, e como expõe cruelmente toda a fragilidade da natureza humana. E todos aqueles conselhos que poderiam facilmente tornar-se mantras na nossa vida, nil admirari, “nada admires”, sapere aude, “ousa saber, ousa ser sábio”, ou frases lapidares como “mudam de céu, não de alma, aqueles que correm os mares”…

Na sua opinião, há algum autor clássico que ainda não tenha sido traduzido para português que nos faça uma falta enorme? 

Parece-me que toda a historiografia clássica está lamentavelmente por traduzir. Tito Lívio, Tácito, Políbio, no contexto romano; são autores que nos relevam o mundo apaixonante da história de Roma e quase não têm tradução em português. Lamentável.

Se Horácio escrevesse a letra de uma canção punk como seria?

Uma canção que nunca seria editada. É demasiado erudito para o punk. Mas seria muito bom vê-lo tentar. É claro que o facto de nem sabermos onde estão os seus ossos deverá dificultar muito a tarefa.

Para uma ontologia da gralha - uma entrevista de Cassandra Jordão

Um poeta que colabora frequentemente na Enfermaria 6 foi apanhado a cometer uma das piores infracções que se pode imputar a um autor. Este Dostoievsky com sotaque transmontano submeteu-nos um poema onde se podiam identificar pelo menos duas gralhas, sendo que uma o era claramente e a outra, sendo duvidosa, o meliante, depois de questionado, acabou por confessar que aquele sujeito não reflectia o plural do complemento determinativo coisa nenhuma. O frequente conteúdo explicitamente sexual dos poemas do autor não nos perturba, as gralhas, no entanto, são manchas morais à superfície do texto, que na tradição portuguesa denunciam um défice de inteligência contra o qual não se pode argumentar. Perguntem ao vosso professor de clássicas do liceu, alguém que nunca se sentirá fascinado por vocês conseguirem retroverter para um latim ao estilo de Vergílio vinte frases de subordinação complexa, mas que nunca se esquecerá que quando vos conheceu vocês eram uns merdolas incapazes de explicar o que raio fosse um nome predicativo do sujeito. Resolvemos examinar esta questão com o poeta em causa, tirando evidente vantagem do facto de agora estarmos informados que existe um certo défice de atenção da parte do autor. Esta entrevista é um contributo para uma psicologia e ontologia da gralha.

Quando questionado acerca da origem das gralhas no seu poema, você afirmou que escreve os seus poemas meio em transe e daí as gralhas ocorrerem. Devemos assumir que depois de aturar o Nobel da Literatura para Bob Dylan (acontecimento que desautorizou toda uma facção de intelectuais da nação que apreciam uma leitura ordeira, baseada na autoridade e no respeito de e por uma certa definição de literatura), temos agora de acreditar que as suas gralhas se devem a uma certa pressa de capturar o mais rapidamente possível o que quer incluir nos seus poemas, em vez da explicação mais natural, de que isto é evidência de um défice de 50 pontos no seu QI?

Às vezes é mesmo porque estou bêbado. Escrevo muitas vezes bêbado. Entra-se melhor no tal transe de que falei. As palavras não se puxam, elas escorregam bem quando a digestão é feita em condições lá nas circunvoluções onde moram os pontos todos, os poucos, menos esses 50. Também é a pressa, não de chegar ao fim do poema, mas de apanhar as palavras todas enquanto elas caem. Algumas ficam meias penduradas entre a ignorância natural e a lentidão dos dedos. Afinal não estudei para poeta, foi um título que fui roubando desde a adolescência.

Não é fácil continuar a ler um poema depois de topar com uma gralha. É extremamente perturbador para a leitura. Você podia ser o Wallace Stevens, ainda assim para alguns dos nossos leitores não seria fácil continuar a ler. Concordaria que as pessoas mais inteligentes do que você, ou seja, todas as que apanharam a sua gralha, têm agora o direito de ser paternalistas consigo?

Sei que deve ficar a latejar nos cérebros dos génios, de tal forma que o resto do texto perde nitidez. Como quando acendemos um cigarro na escuridão depois dos olhos estarem adaptados à ausência de luz e parece que tudo se apaga outra vez. Se não vivem em casa dos pais, podem ser o que quiserem. O benefício de ter pouca massa cinzenta é que dá espaço para criar um túnel de orelha a orelha.

Gostaria de partilhar connosco alguma gralha particularmente embaraçosa?

Cu com acento, repetido em todos os cus do meu primeiríssimo livro… e foram muitos. Era jovem…

O poeta romano Horácio diz que os poemas deviam esperar 8 anos na gaveta antes de saírem cá para fora. Publicar é cada vez mais imediato. No seu caso, acha que esta solução o pouparia à gralha? Haveria aí alguma vantagem?

Os poemas corrigem-se sozinhos nas gavetas? Se eu soubesse disso antes… Devo ter poemas imaculados no meu quarto em Trás-os-Montes. Estão na gaveta há mais ou menos o dobro do recomendado por esse gajo.

Compreende que andem para aí uns quantos leitores da Enfermaria que poderão entender a sua gralha como uma homenagem a Donald Trump (uma alusão à incapacidade do candidato republicano de praticar a hipotaxe). O que tem a dizer sobre isso?

Bó, tenho muito pouco a dizer: wrong! Que s´arrafoda o Trump.

Questionário standard para autores fora de série: Carla Diacov

Ilustração de Carla Diacov. 

Ilustração de Carla Diacov. 

A Enfermaria 6 enviou-me até São Paulo para entrevistar uma autora que frequentemente colabora com este site, Carla Diacov, por ocasião do lançamento do seu novo livro. Estava um dia quente e para minha decepção não me foram oferecidas caipirinhas. A autora recebeu-me em sua casa ainda de faca na mão, avental e saltos altos. Recordo o pormenor de vegetais cortados, mas nenhuma galinha degolada. Não foi desta que conversamos sobre Clarice Lispector. 

No seguimento de Amanhã Alguém Morre no Samba, estás agora prestes a publicar Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse, pela Douda Correria, e a metáfora mais gentil do mundo gentil, pelas Edições Macondo. Isto podia ser descrito como um período prolífico. Tens uma disciplina para escrever? Algum ritual em particular?

Lindona Cassa... posso te chamar assim? Bem, lindona Cassa, não, não se trata de um período prolífico.  Claro que sofro disso de tempos em tempos. Diria que o fenômeno (Nessa parte nos abraçamos para rir um pouco? Juntinhas? Ah, que alegria!) deu-se pela sincronia nas propostas das duas tão queridas editoras. (Agora podemos nos soltar. Não gosto de largar minha faca e sei que isso é perigoso quando se fala sobre poesia.) Não tenho diciplina para nada além da medicação: trato perebas mentais (Cassa, não olhe assim para a faca!), fobias, depressão e uma moderada sindrome do pânico, TOC, entre outras perebas menores.  Há algo de diciplinar no rito da escrita, mas numa questão mais rito que diciplina: acordo, tomo meu café e me sento à escrivaninha com uma estante de livros nas minhas costas. Me atualizo com a internet e deixo abertos os arquivos que estão na “fila”, coisa que não significa que a escrita se dará. Forcei esse ritual por um tempo até que isso fosse orgânico em mim. Nos dias em que a escrita não comparece, viro minha cadeirinha para trás e leio ou volto para o ecrã onde também leio, vejo filmes e faço umas pesquisas e exercícios. Uso muito, numa diversão quase perversa, o google tradutor. Explico: Colo ali um poema meu ou de algum afeto literário, embaralho o poema, peço ao nhô google para traduzir para o latim então do latim para o polonês então para o punjabi e volto para o português. No mínimo dou umas boas risadas e no máximo tiro dali o “epicentro” da brincadeira e faço um poema ou uma prosinha com. Essa é uma das técnicas (Outro momento daqueles tapas de colegas! Impostora véia danada! Pô, Cassa!) que uso quando o branco me cobre os dias.

Sobre rituais... Ah, meu bem! Desde sempre sou toda TOC e os rituais ligados ao ato escrever não me cansam nem causam grandes sofrimentos, como a maioria dos outros faz. (Ah, Cassa... Dê cá outro abraço que te faço a bendita caipirinha!).

A tua formação é em teatro, e há uma dimensão performativa na tua poesia. Há algum dramaturgo que te tenha influenciado particularmente? Escrita, teatro, desenho? Qual destes é o teu modo de expressão principal? Descreverias algum destes como secundário?

Ó, Cassa, sim e sim e sim! Não sei... Olhe só, comecei a me interessar pela escrita com Édipo, tive um caso sério e muito tulmultuado com Sófocles na época. Shakespeare nunca deixou de piscar pra mim. Mas quando conheci Heiner Müller, Harold Pinter, Karl Valentin, Brecht, Nelson Rodrigues, Sam Shepard, Tennessee Williams, Strindberg e Sartre… É isso e bem aqui! Tenho que após o contato com esses gênios minha inner escritora resolveu tomar de assalto a casa toda. Também Dorothy Parker e Cortázar comparecidos a uma adaptação teatral da qual fiz parte.

Ler peças é muito produtivo por aqui. Ler e reler teatro é um dos meus exercícios capitais.

Meu modo principal é a escrita, mas se ela não comparece, parto para os desenhos, para o meu pequeno laboratório de estar com as imagens, com objetos, coisa que, fatidicamente me leva de volta à escrita. Sempre. (Outro abraço?)

Sim. Acho que, como segundo plano, parto ininterruptamente para as plásticas.

Sou sinesteta. Descobri que isso não acontece com todo mundo, como quase todo sinesteta, após a infância e a sinestesia já me atrapalhou muito na escrita, mas eu soube contornar e faço bom uso dessa ferramenta mais.

É difícil de traçar uma influência decisiva na tua poesia. Há temáticas recorrentes, e alguma coisa na atmosfera dos teus poemas por vezes parece reminiscente dos mundos de Frida Kahlo. Que autores segues? Achas que influência de outros autores é relevante para o teu trabalho ou nem por isso?

Cassa, devo dizer que gosto de fazer isso ficar difícil. É um dos meus escopos. Acho bacana ter um estilo. Acho mesmo muito bonito. Comigo é que não funciona. Não gosto, me incomoda, fisicamente até, perceber que estou num caminho “desenhado”.

NÃO ESTOU DIZENDO QUE TODA POESIA DENTRO DE UM ESTILO SEJA DESENHADINHA OU CHATA!

(Me perdoe, Cassa. Não queria gritar com você. Foi um grito comigo, tá?)

Tenho como referência prima a atmosfera de muita gente, não parece, mas releio muito Emily Dickinson.

Me atraco com Galeano, Ezra pound, Dylan Thomas, Sebastião Alba, Manoel de Barros, etc.

Angélica Freitas mantém minha sutança em dia. Percebo a flanagem dessa mulher incrível por mundos e mundos. Afora ser uma pessoa muito querida, aberta aos novos passos, faz seus novos passos, é muito gentil com seus seguidores, toca formas e formas de cultura e tão bem humorada. Também tenho esse sentimento com o Reuben da Rocha (CavaloDada), Tazio Zambi, Nydia Bonetti, Ricardo Domeneck, André Capilé, Otávio Campos, Guilherme Gontijo Flores, com bastante escritores da atual e eletrônica (Eletrônica, Carla? Mas que tia véia! Ó, Cassa... És tão doce!) geração, aliás, sou bem feliz em ter tantos blogues, tantas revistas on-line com a disposição de publicar gente boa e nova.

A poesia de Portugal me arrebata. Raquel Nobre Guerra, o próprio Nuno Moura e a(o)s poetas que Douda traz aqui pra casa quase que semanalmente.

O mesmo com a Macondo. >>> experimento esse gosto bom: fui parar nos lugares certos, dei as mãos aos afetos que teriam de ser, de alguma forma seríamos e somos >>>

Me encanta muito a poesia e o olhar poético de Maria Sousa,

de António Cabrita >>> que honra cheia de alegrias ter um prefácio assinado pelo Cabrita! >>>  

de Inês Dias, do multifacetado Hugo Milhanas Machado ... Dito isso, sim! É relevante, me é vital a influência dessas belas pessoas. Certamente me esqueci de tantos!

E meus sonhos, Cassa. Sonhar é meu outro laboratório. Tenho poemas inteiros sonhados e na época do teatro “transcrevi” cenários, figurinos e textos dos sonhos.

As temáticas recorrentes... É quase certo que isso esteja diretamente ligado ao meu TOC. Me sinto um tanto desconfortável se não faço de um poema “favorito” uma série.

Publicaste o teu primeiro livro em Portugal, há um para sair deste lado do Atlântico, e o mais recente vai ser publicado esta semana (25/08/2016) no Brasil. Como descreverias a tua experiência de publicação (e recepção) nos dois países?

Cassa, isso tudo é uma grande surpresa da qual eu ainda me recupero e pretendo estar a me recuperar por um bom tempo: QUE PANCADA BOA! Fui convidada a publicar, em ambas editoras. Não havia ainda um projeto VOU PUBLICAR UM LIVRO.

Ah, sim, não posso jamais me esquecer de Nina Rizzi. Essa mulher, essa força foi a primeira a me pegar pelas mãos e dizer VAMOS FAZER UM LIVRO! O livro que tenho pelo selo da Ellenismos, a revista lindeza da Nina, é eletrônico, mas está lá, é um livro, pois.

(não estamos brigando, Cassa! Tome aqui a caipirinha... dois dedinhos de açúcar, limão, socar e socar com o cabo da faca, gelo, cachaça e uma gota de própolis!)

A experiência em publicar com a Douda é puro amor, é muito carinho. Também com a Macondo.  Sei cá no Brasil de amigos com histórias terríveis no processo da publicação. Nunca me senti tão afagada e confortável em fazer esses trabalhos. Os amigos e contatos que esses livros, essas editoras me trazem... tivemos aí um crítico que se aplicou em falar mal dos leitores e muito pouco do livro. Na ocasião fiquei bem brava com ele, mas cá entre nós, Cassa, como foi tudo muito rápido, surpresas lindas e mais surpresas, estou de bem com isso hoje. Quero é o diálogo (É. Eu falo muito disso.) que só a arte faz/traz, quero é o toque das pessoas sobre o poema. Me importa mais esse diálogo. Claro que igualmente me importa a opinião de muita gente.

O resto é teoria miasmática.

Descreverias a tua poesia como comprometida? Se sim, com o quê?

Absolutamente. E absolutamente dessa forma: É uma boa transformista e se compromete com o momento em que é escrita.

NÃO ESTOU DIZENDO QUE TODA POESIA TRANSFORMISTA TEM ESSE COMPORTAMENTO!

(Me perdoe, Cassa. Não queria gritar com você. Foi um grito comigo, tá?)

Se houver uma causa dando bobeira por perto, pode ser que minha poesia se comprometa com, mas dificilmente isso acontece.

Muita gente vê feminismo em muito do que escrevo.

É, Cassa. Temos aí, no feminismo, um comprometimento que chegou como que intuitivamente.

Me perdoe. Você foi engana o tempo todo: não era limão.

Dizem que nascemos feministas. Também dizem que isso de nascer feminista é a mais pura bobagem. O povo fala, você sabe.

Então digamos que minha poesia não é absolutamente descomprometida e sim absurdamente disposta a se comprometer a todo momento desde que a causa consiga pegar meu rosto que, escrevendo, faz movimentos de peixe besuntado no limo.

(Cassa, perdoe os machucadinhos, você mesma viu: falo muito com os braços e não largo a faca, não é? Tome: Fiz uma garrafada da caipirinha para os enfermeiros.)

A banalização da escrita

Cassandra Jordão entrevista Lídia D.

Resolvi procurar os conselhos de Lídia D. porque entendo que a minha ligação contractual à Enfermaria 6 apresenta algumas deficiências espirituais. Estas deficiências espirituais manifestam-se sobretudo ao nível de me serem confiadas tarefas assaz mecânicas (como por exemplo, ter de juntar os versos de poetas que nos enviam poemas mal formatados através de horas de pressão continuada de uma combinação das teclas de caps lock e enter) que, no entanto, não são mecânicas o suficiente para que o cansaço me tire a vontade de espiolhar as páginas do Facebook dos autores nacionais. Juntámo-nos para falar do fenómeno que Lídia D. apelida de banalização da escrita.

 

O que é banalização da escrita?

Olhe, você conhece aquela marca de cerveja, a BrewDog? Aquilo é um bando de gente que sabia muito de cerveja e dormia no sofá em casa dos pais, que agora vendem muito mas ainda não têm um departamento de marketing porque se divertem a escandalizar as pessoas de uma maneira mais ou menos terrorista. Fazem umas quantas declarações bombásticas para vender mais umas cervejas, no fundo não oferecem nada que você não possa beber noutro lado, mas no fim é tudo sobre a cerveja. A primeira parte da minha descrição da BrewDog existe no mesmo espectro de fenómenos que levam à banalização da escrita. A BrewDog é um fenómeno mediático de gosto discutível, que gera muito barulho numa tentativa de chamar a atenção sobre si própria. A segunda parte é a descrição de uma arte, porque é a descrição de uma paixão, você é bom numa coisa e só existe aquilo, e toda a sua vida está construída ao redor dessa coisa, e tudo o resto é uma impaciência chata que você atura com tristeza até chegar ao momento de se ver sozinho com o seu trabalho, o que não significa que você seja o Dostoievsky naquilo que faz. As pessoas bebem a BrewDog em parte porque intuem esse lado mais profundo do ofício de fazer cerveja, que os brewers  da BrewDog são de facto brewers e não apenas figurantes de brewers a quem a cerveja importa bem menos do que a publicidade. Você pode amar escrever e ser um autor menor e ser bom na sua menoridade. A crítica nacional aprecia mal ou não sabe apreciar esse intervalo dos autores menores e eu acho que isto tem banalizado uma série de discursos em tornos do acto de ler e escrever, expressos em críticas formulaicas que banalizam escritores e leitores. O Borges tem um poema sobre autores menores, em que diz que a meta para um escritor é o esquecimento, e aquele que é menor é o que chega antes disso. Digamos que um Rilke e um Celan, para mim, não se confundem com um Zweig, mas que sinto uma certa felicidade de saber que tenho umas quantas páginas de Zweig à minha espera num lugar qualquer e não sinto que tenha perdido o meu tempo ou tenha sido enganada ao lê-lo. A banalização da escrita é você ler o jornal e ficar com a impressão de que um país de dez milhões produz um facto literário da dimensão do Guerra e Paz de duas em duas semanas, é a confusão da crítica literária com um discurso normativo em torno dessa arte complexa que é a literatura, a confusão da tarefa do crítico com a da criação do cânone, e a outra confusão a cheirar a caruncho que se esconde atrás dessas, que é a noção do génio iluminado que só pode ser reconhecido por dois ou três críticos mais avisados, coisas que normalmente são descritas na ordem do segredo bombástico que explode na mão. Se alguma coisa me vai explodir na mão eu prefiro que não me avisem, porque ao fim de três explosões falhadas o que eu estou é desapontada, para não dizer irritada, tenho comprado e lido muita merda porque mirones míopes no Público, na Ler e no Jornal de Letras usam despudoradamente a palavra génio e tendem a avistar um Celan em Telheiras a cada duas semanas. Não há nada de errado em querer escrever sobre um escritor menor ou um livro apenas competente sobretudo porque um Dostoievsky aparece uma vez numa lua azul, com muita sorte há um numa geração inteira de milhões de pessoas. O crítico nacional tem de esvaziar a mente para a página de semana a semana e às vezes mais do que uma vez por semana. É difícil que isto não se torne da ordem da masturbação. A vida pode ser um lugar aborrecido, um acontecimento digno de ser recordado pode não acontecer durante semanas. Para qualquer pessoa ter uma ideia de jeito que valha a pena atirar para o papel pode levar semanas, meses até, imprimi-la pode exigir muito mais do que isso. Muitos críticos contornam esta dificuldade de não lhes chegar nem uma frase de belo efeito nem um Dostoievsky todas as semanas afectando uma postura de autoridade, não raramente referindo-se a uma suposta coisa que não importa a um leitor mediano um cu, a maestria do autor. O que é a maestria do autor? Maestria vem do latim, magister, professor, cuja raiz talvez se confunda com a que dá origem à palavra mago, mas muitos dos mestres que por aí são anunciados tendem a não passar de discípulos, e os melhores mestres podem bem regredir para a triste condição de discípulos sem talento, como se aprende no doloroso exercício de ler o Lawrence Durrell de O Quarteto de Alexandria e o de O Quinteto de Avinhão (o génio no triste pastiche de si próprio), eu vejo uma literatura cheia de jovens mestres de 40 anos, mas achava que os melhores mestres são os que preferem ser deixados em paz para serem alunos a vida toda, que tendem a ser atormentados amiúde pela pergunta, mas afinal o que é que eu sei? O que é a maestria? O crítico não sabe, acha que pode ser essa coisa a explodir-lhe nas mãos (se bem ordenhada), o génio. E o que é isso, você sabe? Então você tem alguém que lhe atira o conceito do raro que é para uns happy few. Como é? Você, burguês lisboeta, comedor de tremoço que bebe cerveja na esplanada em Junho, quer entrar no círculo ou não? Vai deixar o último Pessoa andar para aí trancado no quarto ou a beber bagaço em paz no Martinho da Arcada, sem você estar devidamente informado? Não, o crítico é alguém avisado e cheio de autoridade moral e agora avisou-o também. O que este tipo de discurso focado na maestria (anda o crítico a tentar aprender, ou a fingir que aprendeu, o que é ser um Dostoievsky vislumbrando um em toda a parte a cada semana?) produz é uma grande tristeza e bastante decepção num leitor mediano. E olhe que quando uso aqui a palavra mediano não imagine o universo mental de Michael Bay e a poética de um Toy. O meu leitor mediano lê Tchekov, comove-se com a poesia de Joyce, e é viciado em Tony Judt, só não vem a correr escarafunchar num caderno, sempre que um arrepio lhe passa pela espinha, que ouviu um tolle et lege. Isso acontece e é lá com ele, no silêncio mais fundo do que existe dentro dele, sozinho a tentar entender o mundo e a tentar chegar a uma visão do mundo que possa ficar na imaginação como um mapa que possa ser sempre navegável, nós gostávamos que ele partilhasse isso connosco, mas com alguns livros até é bom que ele não possa, a algumas coisas você pode chegar pelo intermédio de outros, mas não pode bem ser preparado. E você tem então de se perguntar: como pode um crítico responder a estas dificuldades? Que posição pode este pobre coitado escriba, que no fim, como você e eu tem é de ganhar o seu pecúnio para comer batatas fritas no Chiado, ocupar, num ofício em que ser um leitor é muitas vezes confundido com um exercício de auto-afirmação? E como fazê-lo sem ser apelidado de coninhas pelos restantes críticos (leia-se a crítica nacional que jaz abaixo do paralelo do Correio da Manhã)? Primeiro, há isto, há uma diferença entre pensar sobre um assunto, escrever umas linhas sobre ele, e achar-se o Super Homem por isso, o que subsequentemente lhe pode dar a ideia errada de que você tem o direito de perseguir os outros e de policiar o que eles apreciam ou não apreciam ler, e o que lhes apetece escrever ou não. O que é muito mau é profundamente fácil de criticar, se você está a ler sobre batatas na secção de crítica literária não se perturbe, não é tanto que o seu crítico de pacote ache que você é um leitor tão desavisado que confundiria um saco de amendoins com Walter Benjamim, é que ele tem uma agenda e você pode bem descobrir que o pobre marreco que assinou um verso de mau gosto não lhe caiu bem no goto quando lhe pagou o café, ou então chateou algum amigo dele. Se você leu que um livro é mau, e ninguém lhe está a explicar a relevância dessa fraqueza para a sua vida de leitor, para a cultura em que essa falta de qualidade, ou mesmo maldade, se expressa, então você perdeu o seu tempo. E depois é aceitar o facto de que por um crítico não topar com um Dostoievsky todas as semanas não significa que haja algo de errado com o crítico, ou que ele tenha de ir arranjar uma receita para comprar Viagra. O que me leva ao meu segundo argumento, o que importa a um leitor não é a maestria de um autor, mas o que um livro diz e sobretudo o que um livro lhe diz a ele, muito privadamente no contexto da narrativa da sua própria vida. Eu prefiro que o crítico que escreve no jornaleco todas as semanas me fale do primeiro argumento, e me deixe em paz para decidir por mim se um livro tem o potencial para me dizer alguma coisa do modo que acabei de descrever, o que um livro significa para mim. Um crítico muito bom consegue talvez comunicar o que um livro lhe pode dizer a si privadamente, mas isso é uma capacidade excepcional de falar de coisas que foram escritas e são profundamente únicas, e mesmo esse momento é de algum modo excepcional para o crítico, não acontece todas as semanas, o resto é um ofício mecânico, e de algum modo triste. Você é um crítico, o que significa que, se você está agarrado à normatividade bombástica do génio hoje em dia ou da monótona descoberta do oásis no deserto, você é um bocado a extensão de um departamento de marketing de uma editora, e pode muito bem não ter muitas ideias. Para valer a pena ler um pedaço de crítica, a crítica pode bem falar-nos sobretudo das ideias de um livro, e o estilo do autor é apenas uma dessas ideias, e não é a mais interessante. Se mais nenhuma ideia lhe ocorre além do estilo, vulgarmente descrito por maestria, então o livro que você leu é uma merda, ou você é um mau crítico, ou ambos. O que é que acontece aí? Você acaba a lamentar-se que Herberto Helder vá ser lido, ou que os seus amigos que escrevem não são convidados para tantos festivais quantos deviam. Nada disto tem que ver com a alegria de ler um bom livro.

 

O que é a não banalização da escrita?

O curto sono de Kafka, duas horas a cada tarde depois do escritório, para pouco a pouco e com muito esforço, das oito à meia-noite a cada noite, enquanto o Hermann Kafka ronca no quarto ao lado, lhe trazer A Metamorfose, O Castelo, O Processo. É Arquíloco a confessar a canhalice de ter deixado o escudo aos trácios, Nunca ninguém tinha dito aquilo daquela maneira, o que não significa que não tivesse havido milhares de soldados antes dele que cheios de medo fugissem do campo de batalha sem sequer trazerem o escudo com eles. Bloom a masturbar-se numa praia em Dublin mais o monólogo da Molly quase no fim, coisas que ainda não tinham sido ditas daquela maneira, de repente inadiavelmente reais, disponíveis para serem pensadas mais do que por críticos por gente com espírito crítico, no fim é só aí que a tarefa do crítico é sagrada como a de um escritor, trazer ao de cima, ou inspirar, o espírito crítico dos outros, o que na melhor das hipóteses pode até ser contra ele e apesar dele, esse é o crítico que o ajuda a viver, que nem sequer é bem só crítico, é mais uma criatura da literatura. Os críticos no fundo são os verdadeiros Íons do ofício literário, o ofício deles não é específico, é ainda menos específico do que o do escritor, mas se forem mesmo bons inspirarão nos outros uma ideia, um ponto de partida, e por isso ficaremos sempre agradecidos e voltaremos a lê-los com prazer. A não banalização da escrita vem da escrita que não é banal e que não o banaliza enquanto leitor, é o que resulta de uma combinação de amor, necessidade e culpa. É você saber que vai perdoar ao Lobo Antunes aquela parvoíce do leão e da cria na entrevista sobre a Elena Ferrante porque ele é o tipo que escreveu o Fado Alexandrino. Você lembra-se como foi? Ler o Fado Alexandrino? Agora não seja estúpido, tenha esperança e lembre-se que o crítico que assina o fait divers medíocre na temporada morta de Agosto, para coscuvilhar a parvoíce que o seu Homero disse na última entrevista, não raro para enaltecimento da própria inteligência banal do crítico, pode apanhar um dia destes com um Thomas Bernhard que lhe acerte umas furiosas pauladas de indignação justa e impaciência. Nesse momento você vai lembrar-se do longo olhar de Petrónio no banquete de Trimalquião e constatar que o mundo é espetacular de maneiras que ainda nem sequer nos passaram pela cabeça. E isto é ainda uma coisa que um belo escritor fará por si. Na viagem que é ler seja o que for, esse pode bem ser o melhor momento de todos.