O escuro

ou que escrever um poema que não podes ler a ninguém

é a mesma coisa que dançar no escuro.

 

Ovídio, Cartas do Ponto, 4.2.33-4[1]

 

Sexta-feira à tarde. Agosto. O silêncio suado e sonolento da biblioteca é violentamente interrompido pelo barulho de alguém a ressonar. Depois de horas a ler, Roberto levantou-se disparado do seu lugar, arrumou o computador à pressa, atirou também o estojo e um caderno para dentro da mochila, deixou para trás outro caderno, a caneta e dois livros. Daniel passou umas quantas vezes pela mesa do colega. As últimas notas escritas no caderno que ficou para trás, aberto numa página com uma letra gatafunhada, quase ilegível, contêm indicações de bibliografia, mas nenhuma nota faz alusão à fase do trabalho em que Roberto se encontraria antes de desaparecer.

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Eu serei convosco

Um homem corpulento, empastado de perfume e brilhantina, sentou-se ao balcão, acendeu um cigarro, levou o whisky à boca e cumprimentou com um grunhido a mulher que estava a seu lado, uma prostituta ucraniana bêbeda e ensonada, que sorria sem abrir a boca para não mostrar a ausência de um dente molar, e repetia pagas um copo, pagas um copo à menina? O homem estampou uma nota de cinco no balcão e pediu silêncio. Pega na nota e some-te. Cinco euros não chegavam para o silêncio. Cinco euros não chegar para a comissão. Patrão pagar mal. Mais uma nota de vinte e pisga-te. Aproximou-se outra prostituta, desta vez uma mulher sábia para entender que o sofrimento alheio se curava com silêncio e companhia e carinho e uma mão na nuca. O homem e a prostituta permaneceram calados e sentados durante um bom bocado, depois o macho pegou na fêmea pela mão e arrastou-a até à pista de dança. Sofro como um cão. Sofro mais do que um cão. Sussurrou ao ouvido da sábia e esta respondeu-lhe com silêncio. A música terminou e os dois dançavam, sem música e mexiam-se e trocavam sussurros. Sofro por uma mulher, dela resta o perfume e um casaco. A sábia puxou-o para o quarto e, despida, disse-lhe que as mulheres partiam uma vez, só uma vez, deixando para trás o cheiro do perfume, o cheiro da saudade, daquilo que não regressaria. O homem nu exigiu mais uma prostituta. Apareceu a ucraniana desprovida de molar, pediu outra. Partilhava o colchão com quatro prostitutas e lamuriava-se. Abraçado às quatro, penetrando-as como se fosse máquina, pouco sentia para além da dor infligida pela partida daquela que amava. A frase daquele filme. Enche-me os buracos. Os buracos cheios e o coração perfurado. Esburgou as quatro prostitutas. Rompeu o colchão à dentada e acertou com um murro na cara de uma das prostitutas e lembrou-se do último dia com a mulher que amava. Chegaram os seguranças e escorraçaram-no ao biqueiro do estabelecimento. Ainda lhe restava algum dinheiro. Caminhou até encontrar uma estação de serviço. Abriu uma lata de cerveja, fumou, abriu outra lata e fumou e uivou. Nevava e um homem uivava no meio do nada, uivava na tentativa de alcançar a princesa desaparecida, uivava em vão, todos os uivos são em vão quando se está a mais de trezentos quilómetros de distância da princesa. A empregada da estação de serviço chamou-o para dentro, viu-o chorar e consolou-o, disse que aquilo não era nada comparando com a fome em África, que nenhum problema era nada comparando com a fome em África, com aquelas barrigas cheias de ar. E ele, mascarado de noite e de fantasma, chorava e soluçava e ajoelhava-se, deitava-se na neve, nu da cintura para cima e deitado na neve, sozinho com as suas memórias, como se a empregada ali não estivesse, como se o planeta se tivesse ofuscado.

Uma liberdade aterradora

O tempo em que fui mais feliz foi quando tinha cinco ou seis anos anos. Não por ser muito novo ou ainda não ter entrado na escola. Por volta dessa idade media um metro de altura e a proximidade do solo permitia-me sentir o cheiro da relva fresca. Agora o único que sinto é uma liberdade assustadora.

A actividade política distancia-se cada vez mais de qualquer coerência social e é o lugar privilegiado de homens e mulheres sem qualidades. Os efeitos são cada vez mais nefastos mas eu, na minha vida pessoal, enquanto indivíduo, acabei por lucrar com este deterioro crescente da administração pública. O ayuntamiento de Madrid através da consejeria de transportes adquiriu trinta novas composições que não têm cabimento nas actuais linhas da rede de metropolitano. Estes comboios, dotados dos sistemas mais modernos de navegação, permitem, por exemplo, conseguir o máximo de composições numa mesma linha. O sistema estabelece distâncias mínimas de grande comodidade para os clientes que nas horas de maior trânsito podem contar com intervalos de espera de menos de três minutos. Mas estas composições simplesmente não fazem falta. O desacerto das previsões foi total.

Tenho cinquenta e um anos. Há quatro anos que trabalho de noite, à hora em que o metro está encerrado ao público. Conduzo durante três horas composições novinhas em folha. De madrugada, conduzo comboios fantasma. Faço circular os vagões para evitar que o desuso cause um dano que geraria novos e avultados investimentos na reparação das máquinas paradas. No princípio ainda abrandava à chegada às estações; parecia-me infringir alguma regra se não o fizesse. Não tinha lógica nenhuma, não havia obviamente ninguém para entrar ou sair. Se abria as portas era por questões de conservação das peças e na maioria das estações não havia sequer iluminação. Não tinha nenhuma ordem expressa sobre como manobrar; a velocidade ou a delonga estavam entregues à minha disposição do momento. O aborrecimento e a solidão faziam-me divagar enormemente aos comandos dos vagões vazios; e o pior era quando não me sentia Deus, quando me sentia apenas um passageiro de um comboio louco e sem rumo, alheio ao fim da linha, à aproximação da estação terminal, quando devia travar, travar a fundo, ferro com ferro, estrépito agudo, sentimento de desespero, respiração suspensa, segundos intermináveis e, finalmente, a curiosidade sobre o que vem a seguir, quando já não existe outro desfecho que não seja perder para sempre as prestações relativas ao leasing de um trem fantasma; no instante em que Deus acordou do sonho e experimentou a realidade, a super-realidade: ser um simples passageiro de uma vida absolutamente desgovernada.

Açores

Queres fugir comigo para os Açores?, perguntou-lhe o amigo durante uma caminhada. A procura de trabalho era superior à oferta, o dinheiro escasseava, a poupança de quatro anos não chegaria para pagar meia dúzia de rendas. Abrir uma livraria num lugar sem leitores resultara num fiasco, os planos de ser doutor numa universidade dissolviam-se. Quantas mais teses e seminários e colóquios e artigos teria de suportar até que as portas de um qualquer centro de estudos se lhe escancarassem? A pergunta do amigo, retórico na maior parte das vezes, pouco tinha de retórica. Fugimos deste turbilhão de frustração, de sonhos transformados em pó, montamos um bar, um restaurante, comemos peixe fresco. O amigo acreditava no que dizia. Fugir da civilização. Não nos querem aqui, não nos distinguimos desta massa anónima, até no sexo somos iguais aos outros, e o valor do dinheiro, o valor que concedemos ao metal, tornamo-nos escravos do dinheiro, somos infelizes por não o possuirmos. Não antes se imaginara nos Açores, nem em qualquer sítio dominado pela natureza, pela falta de prédios, de jornais diários, de centros comerciais. Nascido no campo, procurara a realização na cidade e na cidade descobrira a depressão — um caminhar sozinho num nevoeiro cerrado em que se escondiam vozes, passados. Um homem que não olhava para o futuro era um homem infeliz e um homem infeliz era um homem que se alimentava de dor e de sadismo e de frases começadas por ses e mas. Poderia ter sido. Poderia ter feito. Se lhe tivesse dito as palavras certas. Se não tivesse voltado para trás. Fugir do campo para a cidade só lhe trouxera educação, livros, roupas mais caras e um peso na alma ainda maior do que quando vivera no campo. Revivia momentos tétricos passados com familiares que tinham ficado na aldeia. Rememorava as frases, os insultos, o não serás ninguém nesta vida. Fugir dos lugares e das pessoas não lhe tinha servido de muito. Temia que fugir para os Açores fosse fugir novamente de si próprio. Tornar-se baleeiro nos Açores. Nem percebia de baleias. Nem conhecia os Açores. Fugir para os Açores poderia representar um abandono definitivo de todos os sonhos. Vou para os Açores e a pessoa que quis ser esfuma-se de vez. As luzes e os sons da cidade apagavam um pouco de uma sensação angustiante nascida na aldeia, sensação essa que se traduzia num vou não vou vomitar, num tremer de perna que mais era um estou aqui mas ando, nasci numa cela mas não me prendem. Os Açores, murmurou, as baleias, o meu amigo, murmurou, murmurava, entrava no rio e sentia-se desprendido. Ninguém me escraviza, nenhuma mulher, nenhum emprego. A universidade, os planos, os romances por escrever, as mil mulheres com que haveria de fornicar, miragens, dentro do rio não passavam de fantasias de uma vida anterior.A água dava-lhe pelo pescoço. A água cobria-o por inteiro. A água entrava-lhe pela boca. Na autópsia não se detectam sonhos.

A cabeça

Hans sentou-se à secretária. A secretária ficava em frente à janela, que dava para a rua. Em frente ficava uma igreja e uma fila bem construída de casas térreas. Estava a chover e um exército de mães passava com os filhos pela mão, as crianças de uniforme, debaixo dos chapéus de chuva negros. Naquela semana, tinham-lhe encomendado um artigo sobre poesia para sair no jornal Kuntsprache. Hans passara a semana a ver vídeos de jovens poetas, que comentavam os seus poemas, e falavam de como entendiam a poesia na sua geração. Uma jovem de cabelos louros fitava a câmara com um olhar melancólico e baço e declarava, a poesia para mim é o lugar zero, o sítio negativo. Outro dizia, não consigo ler tudo, que há coisas muito más. Vai acabar, dizia um rapaz borbulhento com uma fedora posta. Hans suspirava e o olhar começava a subir para a janela, como um homem atirado para um poço que de repente olha para cima. Havia o vídeo de Joachim.

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