Queres fugir comigo para os Açores?, perguntou-lhe o amigo durante uma caminhada. A procura de trabalho era superior à oferta, o dinheiro escasseava, a poupança de quatro anos não chegaria para pagar meia dúzia de rendas. Abrir uma livraria num lugar sem leitores resultara num fiasco, os planos de ser doutor numa universidade dissolviam-se. Quantas mais teses e seminários e colóquios e artigos teria de suportar até que as portas de um qualquer centro de estudos se lhe escancarassem? A pergunta do amigo, retórico na maior parte das vezes, pouco tinha de retórica. Fugimos deste turbilhão de frustração, de sonhos transformados em pó, montamos um bar, um restaurante, comemos peixe fresco. O amigo acreditava no que dizia. Fugir da civilização. Não nos querem aqui, não nos distinguimos desta massa anónima, até no sexo somos iguais aos outros, e o valor do dinheiro, o valor que concedemos ao metal, tornamo-nos escravos do dinheiro, somos infelizes por não o possuirmos. Não antes se imaginara nos Açores, nem em qualquer sítio dominado pela natureza, pela falta de prédios, de jornais diários, de centros comerciais. Nascido no campo, procurara a realização na cidade e na cidade descobrira a depressão — um caminhar sozinho num nevoeiro cerrado em que se escondiam vozes, passados. Um homem que não olhava para o futuro era um homem infeliz e um homem infeliz era um homem que se alimentava de dor e de sadismo e de frases começadas por ses e mas. Poderia ter sido. Poderia ter feito. Se lhe tivesse dito as palavras certas. Se não tivesse voltado para trás. Fugir do campo para a cidade só lhe trouxera educação, livros, roupas mais caras e um peso na alma ainda maior do que quando vivera no campo. Revivia momentos tétricos passados com familiares que tinham ficado na aldeia. Rememorava as frases, os insultos, o não serás ninguém nesta vida. Fugir dos lugares e das pessoas não lhe tinha servido de muito. Temia que fugir para os Açores fosse fugir novamente de si próprio. Tornar-se baleeiro nos Açores. Nem percebia de baleias. Nem conhecia os Açores. Fugir para os Açores poderia representar um abandono definitivo de todos os sonhos. Vou para os Açores e a pessoa que quis ser esfuma-se de vez. As luzes e os sons da cidade apagavam um pouco de uma sensação angustiante nascida na aldeia, sensação essa que se traduzia num vou não vou vomitar, num tremer de perna que mais era um estou aqui mas ando, nasci numa cela mas não me prendem. Os Açores, murmurou, as baleias, o meu amigo, murmurou, murmurava, entrava no rio e sentia-se desprendido. Ninguém me escraviza, nenhuma mulher, nenhum emprego. A universidade, os planos, os romances por escrever, as mil mulheres com que haveria de fornicar, miragens, dentro do rio não passavam de fantasias de uma vida anterior.A água dava-lhe pelo pescoço. A água cobria-o por inteiro. A água entrava-lhe pela boca. Na autópsia não se detectam sonhos.