Ampliação do campo de batalha
/Para que algo seja verdade terá de existir uma quantidade suficiente de repetições. Depois de vários meses a acordar sem despertador cheguei à conclusão de que a juventude ficava definitivamente para trás. Precisava de menos horas de sono. Ou talvez me tenha começado a deitar mais cedo. Foi por volta dessa dilatada tomada de consciência que me apanharam. Traí as minhas próprias normas. Quando trabalhava bem e me sentia totalmente confiante o negócio corria às mil maravilhas. Houve vezes que nem contada estava uma hora e os meus benfeitores já riam selvaticamente comigo. Hoje em dia a boa aparência e a astúcia aliadas a uma preparação suficiente é tudo o que é necessário. Umas semanas de trabalho chegavam. Conseguia o suficiente para viver durante alguns meses sem olhar a gastos. Desaparecia. Viajava, aprendia línguas, visitava museus, conhecia monumentos. Não repetia destinos. Através da internet contratava as melhores prostitutas porque é nesse campo que a internet continua a ser mais útil. Algumas anunciam possuir uma série de cursos. O que conseguem é fazer teatro o tempo todo; na representação são habilíssimas. Fazem teatro mas não enganam ninguém. Fazem ensaios com a verdade e as mais profissionais estão dotadas de uma imaginação notável. Se não tens imaginação a ideia de realidade/verdade é a única a que te podes agarrar. Enfim, uma classe um tanto desconsiderada mas com meias de liga de reposição na mala. Outras vezes nos hotéis conhecia alguma mulher sozinha. Não era muito diferente de burlar um desses empresários a quem a própria ambição traía. Conquistar o afecto dessas mulheres independentes, cultas, angustiadas mas secretamente disponíveis para serem iludidas, uma boa maneira de manter a forma entre um arruinado e outro.
Comecei a perder a paciência, paradoxalmente talvez tenha entrado numa espécie de rotina. Alguns clientes exigiam muito esforço até caírem no meu conto. Tentava perceber se perdia tempo com algum agoirento sem a mais pequena expectativa de crescimento, para já não falar em confiança, lesmas nervosas. Mas ao mesmo tempo não me dava por vencido, uma espécie de orgulho inútil. A paciência não foi uma virtude com que a existência me prendou. Denunciaram-me. Dei às de Vila-Diogo mas aguentei até à última e já era tarde para uma fuga bem sucedida. Não confio na sorte. Quando actuo procuro ter o ambiente controlado e a maioria das contingências previstas. Não sou um amador. Vigiei um conhecido empresário que por não se saber comportar e por se meter com vaidosos do pior género já tinha sido várias vezes notícia por supostos escândalos financeiros. Fiz um pequeno investimento e facilmente ganhei a sua confiança. Tentei extorquir-lhe directamente dinheiro, com violência física e muitas ameaças, coisa que até aí nunca me tinha passado pela cabeça. A coisa correu mal e a polícia foi avisada. A polícia. Passam as passas do Algarve para conseguir uma renovação da farda ou uma arma que não tenha ferrugem mas cumprem a sua missão de modo exemplar. Tentei provocá-los ao máximo para que me dessem um bom ensaio de porrada que depois pudesse denunciar; mas os grandes filhos da puta mantiveram-se firmes naquela dignidade pacóvia que sobretudo não arrisca uma suspensão; quebrar um pouco as regras podia querer dizer deixar os filhos de estômago vazio. Sentia verdadeira pena dos agentes que me algemaram. Na verdade, eles não tinham culpa de nada. Conseguiram um emprego fixo e isso para eles significava atingir o grau mais alto na escala das necessidades satisfeitas.
Foi a primeira vez que me apanharam. A primeira e a última. Aprendo com os erros. Não tinha antecedentes e consegui dar-lhes a volta. O advogado era um novato e instruí-o na estratégia a seguir. Foi como fechar um negócio, assinar um contrato de serviços inexistente. Embora a recompensa fosse a minha liberdade e não uns valentes cobres. Agora tenho de calcular todos os meus actos e vigiar-me. Não posso voltar a errar. Não me vejo fechado numa cela, com saídas ao pátio ordenadas por gente que acredita, que pensa que me desviei do caminho mas que estou sempre a tempo de voltar à vereda que eles trilham a passo de boi; o que mais aprecio, quando estou em algum hotel longe das cidades, é acordar antes do nascer do sol e sair de madrugada para aspirar o cheiro da noite sabendo que ainda me restam dias e dias de gozo antes da golpada seguinte; recordando, rindo entre dentes, essa vivacidade modesta das pessoas que vivem do trabalho razoável e não quiseram ou tiveram coragem para alargar o campo de batalha ao batimento cardíaco desesperado, sentir o percurso do sangue nas veias, as voltas vertiginosas cada vez que é bombeado, e é só assim que me sinto vivo e eles estão todos mortos, mais mortos que uma perna de borrego.