As Aventuras dos Senhor Lourenço (§13 correr com o coração em fogo)

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Lourenço regressou à escola, onde foi cumprimentado por todos, mais beijos do que apertos de mão. Até a Direcção, que sempre o considerou um banana, se prostrou aos seus pés.

– Caro colega, que gesto magnânimo. – Disse o subdirector, poeta nas horas vagas e incapaz, talvez por isso, de perder a oportunidade de elevar o discurso ao tom heróico dos Lusíadas. Sem esquecer que Luís de Camões não gostava do povo: verdadeiro algoz de Inês de Castro e pouco inclinado para a poesia. Bruto e cruel, no fundo.

– Nada de mais, retorquiu, Lourenço.

– Claro que há aí uma mais valia, não te armes em modesto comigo, o que fizeste vai ficar na história. – Continuou o subdirector, mãos sapudas a gesticular por cima de uma barriga descomunal. Era aí, aliás, que os olhos de Lourenço buscavam guarida, naquele semiesfera perfeita quase a rasgar a camisa, querendo mostrar ao mundo a velha geometria anatómica que tanto sucesso fez entre as mulheres de antigamente. Talvez o inconsciente visse ali ares de maternidade ou, mais plausível, uma forma semelhante à das Vénus arcaicas, arredondadas para o prazer da procriação.

– Está bem, mas não quero ser premiado.

– Isso não depende de ti, se o Presidente te der uma medalha qualquer, vais lá, de fato e gravata, e aceitas com muita honra, mais nada. – Costumava terminar muitos diálogos com “mais nada”, mas não cheirava a pequena ditadura, todos sentiam nisso um bordão longe do significado mais literal.

– Veremos, veremos...

Nisto, entraram a Directora e a Adjunta do primeiro cilo, beijos e mais beijos, sorrisos, admiração. Lourenço magnânimo, gesto aprendido nos filmes. Eram tantas as solicitações que não precisava de demorar-se no que lhe dizia cada interlocutor, vagueava, planava acima deles, dizendo que sim com a cabeça, sorriso fixo. E, talvez pela primeira vez na vida, era feliz.

No dia seguinte tinha de ir à TVI, Você na TV!, programa de Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira, trampolins para o reconhecimento de uma parcela arcaica da cultura portuguesa, sociologicamente dominante contudo. Tinha Lourenço algum interesse nisto? Não, falei com ele várias vezes e sempre me disse que era como estar no “poço da morte”, não se pode parar sem cair, e ele não queria ir novamente para o fundo do poço, mas também não gostava do movimento circular que o mantinha lá em cima, uma verdadeira loucura. Escolheu, ainda assim, não parar, ir a todos os lados, chegou a pensar-se em sósias ou milagres. Inventou uma invulgar maneira de responder a qualquer pergunta, da mais parva à mais elaborada. Tirou milhares de selfies, apareceu em centenas de páginas de jornais, muitos estrangeiros. Mas a fama real só aconteceu depois da TVI, e aconteceu porque Lourenço se saiu bem, creio até que a Cristina, esse paradigma da “mulher empreendedora”, teve um pequeno crush por ele.

Já vos disse que Lourenço não causava qualquer impressão de espanto, era tão mediano que até os homens médios sentiam um certo fastio ao pé dele. Mas quem sabe realmente como se produz a áurea, que condições são necessárias para que alguém se destaque? A beleza, claro. A riqueza também. A extravagância, até um certo ponto, para não cair no nojo. Mas Lourenço não tinha nada disto. Pertencia-lhe, porém, a estrela de herói, ganha num gesto modelo de altruísmo, que numa sociedade hipertrofiada pelo egoísmo vulgar se elevou até ao registo mítico. Lourenço transformou-se num mito, concorrendo com Viriato, D. Afonso Henriques ou Vasco da Gama. Mas só depois de ir ao Você na TV!

Estive com Lourenço, confesso-o, na preparação da entrevista. Julgo que fui eu que lhe indiquei a tonalidade do discurso: “um bom lugar-comum é sempre mais humano do que uma descoberta, a estupidez quer lugares-comuns, coisas de que esteja à espera, diz-lhe o que quer ouvir mas mantém uma certa reserva, desde que não seja percebida como sobranceria.” Isto era perfeitamente compreensível, mas Lourenço tinha medo da hybris, que uma fama demasiado abrangente precipitasse a sua queda. Qualquer coisa o atraía para a notoriedade e qualquer coisa, talvez mais forte, o afastava dela. Um limbo de indecisão que se manifestava em muitas outras coisas. Isto era grave, às vezes parecia uma mosca a bater num vidro, insistindo sem sair do sítio, enquanto esmaga o seu próprio crânio. A ambivalência não é uma maldade em si mesma, mas é preciso equilibrá-la, coisa que Lourenço não sabia fazer, gostava de diluir tudo numa absoluta e irredutível indecisão que vivia de oscilações extremas entre pólos.

Mas uma coisa são os treinos, outra o jogo, como dizem os desportistas. No programa, com uma plateia de incríveis donas de casa reformadas, talvez viúvas, incapazes de perceber o mínimo conceito filosófico (prova final de que Piaget falhou ao universalizar o estádio do pensamento formal), à pergunta, com olhar maroto, do Manuel Luís Goucha, sobre o que achava do terrorismo, tanto mais que era professor de filosofia, respondeu: “É uma pulsão de morte mediatizada”. Cristina, como gosta de ser tratada, pôs-se em bicos dos pés e disse “hum”, antes de repetir, abanando a cabeça em sinal de assentimento, a frase do Lourenço. Depois: “Muito bem, isto é que é filosofar, parece uma sentença bíblica!” Seguiu-se a publicidade, Lourenço suava sozinho no meio do palco, estava na hora de mudar cenários e preparar os novos convidados. Suava de calor e sem-sentido, apetecia-lhe ir embora, podia fingir uma indisposição. Mas não, o velho comodismo ditou que ficasse, apesar de tudo era mais fácil ficar do que sair.

Cristina passou por ele e piscou-lhe o olho, dentes a entremostrar-se. Lourenço não percebia porque tinha ela umas pernas tão compridas. “E 1, 2, 3, estamos no ar”. Os novos convidados teriam de esperar mais um pouco, ainda havia perguntas para Lourenço, sobre a vida privada, casamento, namoradas, profissão, hobbies... Tudo misturado com sorrisos e acenos de cabeça, às vezes um olhar matreiro da Cristina, quando a conversa ia, “sem querer”, ao encontro da libido. Lourenço respondia e media as pernas da Cristina. Talvez ela também medisse alguma coisa do Lourenço. Veio finalmente a última pergunta: “O que teria acontecido se o Lourenço não tivesse feito nada?” – Creio que muitas pessoas morreriam, disse Lourenço com ar trágico.

– É isso mesmo, palmas para o nosso convidado, muitas palmas. Todas se levantaram, algumas a custo, mas o que era esse pequeno desconforto ao pé dos riscos que Lourenço tinha corrido para salvar centenas de pessoas?

A superioridade de um homem que é herói da TVI equivale ao do que se libertou do desejo de viver. Se os juntarmos temos um Ícaro com asas a sério, inquebrantáveis. Mas Lourenço só pensava numa frase que o tinha assombrado durante toda a manhã: “sou capaz de correr com o coração em fogo!” E mal saiu do estúdio foi a primeira coisa que disse, uma e outra vez. Depois, no carro, gritou-a a pleno pulmões: “SOU CAPAZ DE CORRER COM O CORAÇÃO EM FOGO!” Gritou-a durante mais de meia-hora, como um leitmotiv wagneriano preso num círculo vicioso de auto-reverberação sem fim. Lourenço era capaz de correr com o coração em fogo, cuidado para não incendiar os bonecos de palha que tantas vezes nos substituem.

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As Aventuras do Senhor Lourenço (§12 golpe de sorte)

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Entramos, pois, na nova fase da vida aventureira de Lourenço. Mas não estou certo de que tenha qualidades, estilísticas, analíticas e éticas para narrar as sublimidades que vão acontecer até ao §20.

[só deve escrever quem é virtuoso, a literatura ri-se dos esforçados. Cada frase, cada palavra deve possuir força transcendente, estar, sem concessões, para lá da vulgaridade. Só há alguma desculpa para os jovens, mas, por favor, não se armem em génios, nem repitam os erros simplórios do passado. Comecem por ler, ler muito, depois escrevam durante 10 anos para a gaveta. A seguir, desenvolvam uma natureza abrangente, sintética e simples. Por fim, escolham uma editora decente, mais preocupada com a estética do que com a revolução ou o lucro (não são antinómicos). E lancem-se, sem remorsos, nos braços dos críticos, deixem-se analisar pela arbitrariedade, ou, pior, pela complacência]

Lourenço sabia, como a maioria de nós, que existe um abismo deprimente entre a vida vivida e a idealizada. Mas o episódio do terrorista (veio a saber-se que era realmente um elemento do Estado Islâmico, carregado de explosivos, que só não foram detonados devido à intervenção de Lourenço) ia lançar uma escada entre os dois lados, e o ideal tornar-se-ia real.

Portugal ficou em estado de choque ao imaginar a possibilidade de uma estação de metro rebentar à hora de ponta. Calculava-se entre 100 e 200 mortos, e centenas de feridos em agonia. No início, as notícias não referiram a intervenção decisiva de Lourenço, falava-se em “acção da polícia”. Mas alguém vendeu as imagens vídeo do metropolitano de Lisboa a uma televisão, suficientemente abastada e sem quaisquer pruridos editorais, a TVI. E claro, Lourenço começou a ser destacado, elevado a “herói”, ainda desconhecido, por “evitar a tragédia”. Televisivamente, vende-se melhor a figura singular do heroísmo do que o bem que faz termos leis da termodinâmica (sobretudo a bela e inevitável morte universal da 2.ª) ou, para os crentes, o braço bom, mas invisível, do materialismo dialéctico. A face humana, individualizada, é mais telegénica do que as grandes leis sociais ou físicas.

– Olha, é o nosso Lourenço! Não pode ser?!

– É ele mesmo, incrível, quem diria, parece incapaz de se salvar a si próprio!

– Bem, fantástico, vamos ver se aparece no intervalo para lhe perguntarmos.

Lourenço não apareceu no intervalo das aulas. Aliás, há três dias que não ia à escola, desde o episódio que tremia como varas verdes. Não podia aparecer assim na escola. Mas se a montanha não vai a Maomé, vai lá Maomé. E uma excursão escolar, com a bela Manuela à cabeça, tocou-lhe à campainha. Lourenço estava de robe, amarelecido por pelo menos três dias sem ver o sol, uma barba rala a tomar-lhe desajeitadamente conta da cara, a casa quase imunda.

– Entrem, entrem...

– Grande herói, então não dizias nada?!

– Dizer o quê, respondeu Lourenço, fiz o que devia fazer.

– Claro que não, retorquiu Manuela, é preciso coragem, e inteligência, eu não teria visto nada, e agora estava feita em pedaços. – Riu-se da patetice, talvez só para mostrar os dentes mais perfeitos de que havia notícia no Ministério da Educação.

– Fica-te mal a modéstia, continuou o João, colega de grupo, feroz inimigo da filosofia analítica, salvaste centenas de pessoas, elas querem agradecer-te e tu fechas-te em copas? Vai lá vestir uns trapos e bora lá para a rua.

– Não consigo, não consigo mesmo. – Disse a medo Lourenço.

– Não consegues porque não queres, agora era a Cristina de matemática, claro que consegues, 2 + 2 são quatro e ponto final.

– A sério, estou paralisado, se sair por essa porta desmaio.

Ao fim de muitos discursos chegaram a um compromisso salomónico: Lourenço sairia de casa no dia seguinte. Selaram o acordo com um café rançoso e desenhou-se a promessa da Manuela ficar para se oferecer como sobremesa. Estava tão excitada, ali à frente de um herói tão modesto o seu corpo tinha tomado conta de si, activando todas as zonas erógenas. Mal saiu a malta, Manuela atirou-se ao Lourenço e comeu-o, várias vezes, num ritmo e intensidade de bacante enlouquecida.

[caros leitores, não há amor, só sexualidade, des-sublimação do amor pela sexualidade. A libido é a super-estrutura do sentimento, quando julgamos amar ficamos refém do outro, e em geral não é uma alienação feliz]

Lourenço estava petrificado, evitara uma tragédia mas, em boa verdade, não tinha sido bem ele, aliás nem sequer se lembrava claramente do que acontecera (mas, raios, só se pode começar a fazer o bem quando se age, não?!). Talvez tivesse escorregado e agarrando-se instintivamente aos fios tenha desarmado o bombista suicida. Nada foi calculado, não se recordava de ter intencionalmente atacado o indivíduo, nem se via com coragem para tal. Não era um problema ético que o mantinha nesta angústia, mas o medo de ser descoberto, de ser apontado como uma fraude, pior, um oportunista. Mas os dados estavam lançados, talvez ele tivesse o talento particular de se fazer passar por aquilo que não era, talvez conseguisse manter-se como herói, e durante dois ou três anos ia ser, como dizia um amigo dele, um grande regabofe. Além disso, “Quando há experiências de verdadeira grandeza não é assim tão importante o que se faz!”, nem como se faz.

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As Aventuras dos Senhor Lourenço II Acto (Lourenço e a Síndrome de Travis)

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Lourenço acredita na contingência, mas nem sempre se mantém fiel a essa crença, por vezes lá vem um pouco de providência, física ou divina, baralhar o seu amor ao acidental. Dir-me-ão que são necessárias algumas qualidades para ser céptico em relação ao destino, e que Lourenço, pelo que expus até agora, não tem essa virtude. Enganam-se, ele vale mais do que parece, nele pulsa uma irreprimível força heróica, basta que um bom acaso a estimule para passar, numa espécie de salto de tigre, de decadente a herói.

E tudo isto se conjuga porque o eu de Lourenço é um pouco mitológico, feito de apropriações a personagens de ficção, filmes, séries televisivas e literatura, Lourenço não vê ou lê para compreender, quer somente enriquecer, creio que inconscientemente, o seu eu mitológico. De todas as personagens que incorporou, há duas que se destacam: Dexter Morgan, representada por Michael C. Hall para uma série televisiva da Showtime, exibida entre 2006 e 2013. Um justiceiro que compensa as limitações do sistema policial e judicial fazendo justiça pelas próprias mãos, um psicopata de Antigo Testamento, cruel mas sobre-moral, que colocou o castigo justo acima de todas as coisas. Na mesma linha, identifica-se, recompondo todavia parte da personagem, com o angelismo justiceiro de Travis Bickle (Robert DeNiro, Taxi Driver, 1976). Lourenço quer curar o mundo, matando uns e ajudando outros. E quer isto há bastante tempo, o terrorismo prosélito devia ter reparado nele, mas a estupidez abunda do lado dos barbudos. Por outro lado, não o imagino a estilhaçar o corpo em nome de Alá, foi só uma forma de comparação.

A linha que o orienta, biológica no essencial, mistura desejo e prazer, a força pulsional visa o prazer, mas os caminhos para a sua realização são complexos, tortuosos, perigosos por vezes. É por isso que não é fácil interpretar aquilo que vos vou contar, peço por isso atenção e desinibição estética.

Lourenço perde muitas vezes as referências simbólicas mais elementares, chega a fazer uma interpretação estritamente poética dos nomes das estações de metro. Isto alimenta alguns dos pesadelos que emergem frequentemente na sua cabeça, o principal decide-se, ainda que enigmaticamente, no problema da individuação, do absurdo do seu eu se distinguir de todos os outros. Talvez porque a individuação é uma conquista recente nos seres vivos, porque reflectir sobre ela ainda é mais tardio, talvez porque Lourenço sempre foi considerado o banana da turma, ou que quase todos os colegas lhe trocavam o nome, talvez devido a um mistério empedernido, Lourenço não tem a certeza de quem é, e isso contamina toda a fixidez da realidade, daí compreender-se porque sai, ou entra, frequentemente na estação de metro errada.

Por estas ou outras razões – há um enigma insondável em cada acontecimento – no dia 15 de Fevereiro de 2017 Lourenço mudou para sempre a sua vida. Acreditem, caros leitores, que o que vou relatar não foge totalmente à verdade. Lourenço entrou na estação de metro do Campo Pequeno, como era habitual quando ia trabalhar, e preparou-se para as próximas 8 estações, até Odivelas. Encontrou um lugar sentado, coisa rara àquela hora da manhã, mas presumiu que brevemente teria de o dar a um qualquer ser humano mais fraco que viesse a entrar na carruagem. Ainda assim tirou um pequeno livro da pasta (creio que se tratava de mais uma interpretação de O Discurso do Método, agora em tom conspirativo, defendendo que Descartes, afinal, não acreditava em Deus). Subitamente deu-se uma travagem brusca, no limite do suportável para a velha carruagem. Muitas pessoas caíram, como se se tratasse daquela brincadeira com peças de dominó. Lourenço teve sorte, estava sentado no sentido inverso da travagem, mas ainda assim teve de amparar a senhora que ficou sentada à sua frente, fê-lo a custo, era muito peso. Depois de parar apagaram-se as luzes, ouviram-se alguns gemidos, mas não havia pânico. Até que pelo altifalante foram informados de que se tratava de um problema em Entre Campos e que por enquanto não havia energia na linha. Isto provocou um certo alvoroço, e as palavras habituais contra os funcionários públicos, que “muito ganham e pouco fazem”. O tempo passou, não havia comunicações móveis, as lanternas alumiavam alguma coisa mas estava bastante escuro. Os protestos foram aumentando de tom e começou a circular a hipótese de irem a pé até ao Campo Pequeno, a estação não devia estar longe. “Queres morrer electrocutado?” Respondiam os mais sensatos. “E tu, ficar aqui para sempre?”. Retorquiam os mais impacientes. Mais tempo passou, Lourenço pensava no comprovativo que tinha de pedir a um empregado do metro para justificar a falta na escola. Fora isso, estava bem, totalmente desresponsabilizado, não podia ser acusado de nada.

Uma boa hora depois chegou mais uma informação pelo altifalante: “o problema ainda não foi resolvido, pedimos aos senhores passageiros que desçam das carruagens e caminhem pela linha em direcção à estação anterior, Campo Pequeno, são apenas cerca de 400 metros e a segurança está totalmente assegurada, a electricidade foi desligada e não há circulação nesta linha.” Uns protestaram, outros dispuseram-se logo a iniciar a pequena viagem. Uma voz de homem assertiva tentou organizar a caminhada dos passageiros da carruagem do Lourenço: “quem tem lanternas de telemóvel vai a frente, talvez uma atrás, para não perdermos ninguém. Vamos lá, são 400 metros, não custa nada!” E de facto não custou, poucos minutos depois começaram a ver luz ao fundo do túnel. Quando chegaram à estação viram muita gente, o que parecia estranho. Lourenço foi dos últimos a subir para a plataforma e dirigiu-se para a saída do lado da Praça de Touros, preocupado com a justificação, devia haver muita gente a querer fazer o mesmo que ele. Distraído, acabou por chocar com as costas de alguém, pediu desculpas, e levantou a cabeça à espera de ver a cara do ofendido virar-se, mas isso não aconteceu. Foi então que notou uns fios que saiam da mochila e iam directos à mão da pessoa. “Que raio!”, pensou Lourenço. Em cerca de dois segundos a sua consciência ou o seu cérebro (ainda não se sabe bem), imaginou poder tratar-se de um terrorista, a avaria do metro podia ter sido também outra coisa, aqueles fios não faziam sentido. Ia dar o alerta, podia passar uma vergonha épica, mas se fosse verdade estava talvez prestes a morrer, ele e mais umas centenas de pessoas.

O que fazer então? Puxar o fio? Não, pode explodir. Gritar? Ele carrega logo no botão. É puxar, só pode! E assim foi, arrancou os fios da mão do indivíduo, ele virou-se, correspondia ao cliché do barbudo, tinha os olhos bem abertos para mostrar a surpresa e o terror (o terrorista apanhado pelo terror), começou a correr de costas até tropeçar e cair. Foi então que Lourenço gritou: – Bombista, cuidado bombista! Começou tudo a correr, afastando-se de onde vinha a voz, os gritos faziam eco e por isso nas gravações de vídeo vistas mais tarde parecia uma grande sinfonia de histerismo. Poucos segundos depois, no meio da estação ficaram apenas Lourenço e o presumível bombista. Lourenço estava petrificado, não sabia o que fazer, nem ele nem sequer o seu cérebro e o seu corpo. Ali estavam os dois, como nos filmes de Manoel de Oliveira, parados, um de pé outro deitado, embora com a parte de cima das costas e a cabeça levantadas. Lourenço teve a sensação de estar fora do tempo, talvez até o bombista já tivesse accionado o mecanismo e isto fosse a última imagem que a sua memória tinha gravado. Mas depois viu dois matulões aproximarem-se por detrás do barbudo, atirarem-se para cima dele e esmurrarem-no durante alguns minutos. Lourenço ainda estava parado, mas lá consegui dizer que já chegava. Tiraram então a mochila com cuidado e arrastaram o barbudo para uma das saídas. A polícia chegou, à frente um espantalho cheio de artimanhas anti-bomba. Não era preciso, estava tudo resolvido.

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As Aventuras do Senhor Lourenço (§10 Lourenço sonha ser um intelectual)

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Ser intelectual é uma tarefa infinita, Lourenço sabe-o bem. Enquanto esperava por Vanda, mais calmo do que se pensaria, olhou para a estante e teve a certeza que não viveria tempo suficiente para ler os livros que ainda não tinha aberto. Sentiu uma enorme tristeza, era como se tivesse finalmente ficado claro que nunca seria um verdadeiro intelectual.

[para mim, um intelectual é um ser vivo que assume o dever de agir com a cabeça para assumir o comando dos que vivem para a barriga]

Pode parecer uma coisa sem importância, mas Lourenço não conseguiria ser mais nada, o máximo era a intelectualidade. Um intelectual de Lisboa, não do Porto ou Paris, só de Lisboa. Visto que no geral os intelectuais da capital não criam ideias vibrantes, desenham poses (aqui não entra o centralismo que ensombra os regionalistas portuenses; os intelectuais do porto, talvez devido à fonética mais arcaica, são capazes de esmurrar um energúmeno enquanto tecem dois conceitos para rebaixar ao nível do lixo o último romance de um jovem escritor étnico). E na pose, que segue um cânone cada vez mais rarefeito depois do fecho do Quarteto, está uma gabardine bege com nódoas, revistas estrangeiras (o Jornal de Letras está pela rua da amargura) e livros vagamente semióticos debaixo dos braços (se chover trocam-se algumas obras pelo guarda-chuva, sem que se note muita diferença). A voz deve arrastar-se, condizendo, num rigor cuidado, com uma barba de 6 dias (nem mais, nem menos) e, principalmente, ficar em silêncio perante o interlocutor, ao mesmo tempo que um olhar oblíquo parece acusá-lo de incoerência lógica ou, pior, de reproduzir a vox populi.

[em tempos tive o projecto, secreto, nem o Lourenço soube, de ser o rei dos clichés, continuar, noutros termos, Flaubert e o seu Bouvard e Pécuchet, com o objectivo de ser aclamado pelo homem médio, único estrato social e psicológico que ainda consegue, juntando uma certa modéstia com pouca cultura, reconhecer a genialidade]

Em Lisboa não há um sítio cativo para os intelectuais desde o fecho do dito Quarteto, talvez a Cinemateca ainda cumpra um pouco essa função, mas longe daquelas quatro salas de cinema, alojadas numa espécie de pré-fabricado, ali para os lados da Estados Unidos da América, afixando sempre “filme de qualidade” nas montras dos cartazes, não de “alguma qualidade”, mas de “qualidade”, mesmo que fossem soporíferos em lentas imagens-movimento. Agora, além da Cinemateca, podemos vê-los tanto na Cornucópia como na Lux, frequentam a Fábrica de Braço de Prata ou a LX Factory (Warhol teria um riso Pop ao saber que ali milita a esquerda rebelde, que é de esquerda mas não é de esquerda, se indigna mas é empreendedora, faz voluntariado mas tem a grande fatia de bolsas de estudo da FCT), bebem um copo, de cerveja ainda, numa tasca ou vão ouvir filosofia ao Bar Irreal. Vagueiam pela cidade e viajam à volta do quarto (a Ryanair desvia-os de vez em quando desta monotonia contemplativa). O que lhes falta, por mais estranho que vos pareça, não é um cimento corporativo que inicie a criação do “povo por vir”, mas um certo nível de angústia misturada com raiva. Em termos mais sociológicos: um sentimento de desprestígio social que os levante, num impulso de vingança, a um patamar de sobranceria capaz de inferiorizar com o olho esquerdo todos os que não leram pelo menos metade dos clássicos (aferir esta distinção seria da responsabilidade de um comité de intelectuais pioneiros, e velhos, onde se votaria de braço no ar – relativizar a democracia seria também um dos imperativos iniciais).

Mas tudo isto, mesmo na linha do risível, vive de forma muito respeitável. A fluidez da intelectualidade lisboeta pode dificultar o trabalho das mentes analíticas, mas há algo nela que a mantém idêntica a si mesma, uma dignidade que abraça a decadência sem se deixar aspergir pelo vírus capitalista.

É esta atmosfera do grupo a que Lourenço gostaria de pertencer que condicionou o seu encontro com Vanda. Imagine-se que por causa dos intelectuais, Lourenço considerava a nudez, “essa límpida forma de integridade”, muito pouco sensual, via nela o exemplo perfeito da recaída humana na animalidade por renunciar ao efeito erótico do vestuário.

– São três pratos. – Disse Vanda de rompante, imediatamente depois de entrar no apartamento de Lourenço, ainda com a mala na mão e gotículas de suor microscópicas nos cantos da boca.

– Três pratos?! – Perguntou Lourenço, meio azamboado, sobretudo porque tinha estado em cogitação intelectual.

– Sim, quer um desenho?

– Não, creio que já percebi.

– Então, o que vai ser?

– Não queres escolher tu?

– Não, não é assim que funciona.

– E a emancipação feminina?

– Não me venha com tretas, trabalho 8 horas por dia, de pé, e ganho €600.

– Por isso mesmo...

– Qual “por isso mesmo”? Emancipação o quê? Quero é comprar umas Levis.

– Essa já foi, em temos, uma peça da emancipação feminina.

– Who cares?!

– Vamos fazendo as coisas.

– Não, isto tem de ficar claro, diga-me o que quer, é preciso ser rigoroso.

– Quero-te a ti.

–Sim, mas que parte?

– Sei lá, o teu corpo, quero fazer amor contigo.

– Amor? Isto é uma queca, não meta a alma nisto.

– A alma?

– Sim, não me diga que não sabe o que é?

– Não, quer dizer, sei mais ou menos.

– Pois bem, é sem esse “mais ou menos” que vamos fazer isto. Deite-a cá para fora, estou mesmo a ver que tenho de ser eu a decidir.

Lourenço quase foi violado, e teve durante 10 minutos uma “sistemática desorganização dos sentidos”. Vanda tratou-o como tratava a máquina do café. Lourenço gostou como nunca tinha gostado. Uma empregada inculta e desbocada, a dar para o gordo, soubera, sem o saber verdadeiramente, tocar onde devia. Ou foi encenação? Ou ele, um enfraquecido, teve a indecência de se aproveitar do vigor rústico de um neo-proletariado, tão inconsciente como sempre?

– Passe para cá os €100 e até amanhã que se faz tarde. – Disse Vanda já com a mala na mão, Lourenço foi buscar duas notas de €50 e quando a quis beijar já ela estava no elevador.

Em breve a vida de Lourenço vai mudar, uma incrível aventura fará com que apareça, dizem que por boas razões, na capa do Correio da Manhã, e, depois de conquistar este graal comunicativo, em tudo o que são revistas e programas cor-de-rosa. Talvez chegue mesmo aos meios de comunicação de referência, tablóides disfarçados de jornalismo sério.

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As Aventuras do Senhor Lourenço (§9 Lourenço Bartleby)

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Aproxima-se o segundo acto desta tragédia (a partir do §11). Aí darei notícia de outro Lourenço, mais apetitoso, digamos. Por enquanto, obnubilado em relação à realidade, este homem médio passeia nas ruínas do tempo, sem conseguir entrar plenamente na relação dialéctica criação/destruição (e esta indiferença não lhe dá qualquer simpatia). Atacado pelo burnout que consome muitos dos humanos hipermodernos, Lourenço sente que a sua alma está esgotada, talvez tenha até nascido já esgotada (um não nascimento, aurora invertida).

[alguns perguntam pela identidade deste narrador, “quem é António Lisboa?”, ouve dizer-se um pouco por toda a Lisboa semi-culta. Mas como Foucault, “escrevo para me apagar”, para ser ninguém e fazer uma hagiografia pícara do meu amigo desaparecido. Além disso, não confio na ideia ou no impulso da arte pela arte, a literatura é para mim reflexão, ensaio. Em bom leitor de Martin Heidegger, sou um artista que desvela o seu horizonte filosófico, acreditando que o nada não é o contrário da existência, visto que está no seu centro. Assim, a criação assenta num vaivém entre o nada e alguma coisa, e cada autor trata de si. Mas posso dizer mais uma coisa: a inspiração surge de todos os lados, de todos os temas, de todas as coisas, até dos anúncios publicitários ridículos.]

Por enquanto, vejo similitudes entre Lourenço e Bartleby (magnífica e evanescente personagem de Herman Melville), também Lourenço está desprovido de mundo, nesta época onde tudo parece possível (já não vivemos na sociedade disciplinar de Foucault, somos impressionantemente livres), desde que nos empenhemos até ao tutano. Lourenço não quer fazer nada, não quer ser nada. Se lhe dissessem que ficaria invisível e intangível acharia isso uma boa solução. É verdade que nem sempre foi assim, já houve alturas em que alimentou a presença radical da amargura, quase abraçou um gang revolucionário de bairro quando aderiu a um pequeno partido “progressista”, teve até alguns rompantes que o fizeram levantar a voz, houve mesmo um dia em que esmurrou um palerma da direita teológica, vagamente deficiente físico e mental. Mas o esforço não valeu a pena, a quebra seminal do circuito vital imprimido por factores internos e externos (talvez por a mãe o proteger sistematicamente da estupidez violenta do pai) nunca lhe trouxe a saúde afirmativa que os machos normais possuem até aos 40 anos. Enredou-se, pois, numa subjectividade pseudo-trágica e experimentou escrever poemas no estilo de António Nobre. Lançado na realidade, foi-se adaptando, baixando, desviando, fugindo (quase se tornou um bom atleta do Desporto Escolar), escondendo, desaparecendo.

Arte do desvanecimento. Embora vigiado, Lourenço acredita que algo, talvez Deus, talvez o Diabo, o acompanha permanentemente, não para o guardar, mas para o acusar e pouco depois, numa celeridade anti-portuguesa, o castigar. Sem ecos não haveria vida singular, uma pessoa faz-se pelo que em si ecoa dos outros e de si neles. Em Lourenço ressoam todos os signos que desde os gregos significam, desenham a geografia do Inferno. Por seu turno, de si projecta-se a melancolia mais desoladora de que há memória.

– Então senhor Lourenço, é o costume?

– sim.

– Cá está, tem visto a Quinta?

– A Quinta?

– Sim, da TVI, não me diga que não vê televisão?

– Vejo, mas não os canais portugueses.

– Já que paga a taxa, aproveite.

– Não, obrigado, prefiro a FOX.

– Intelectuais...

– Não, só vejo séries policiais.

– Oh senhor Lourenço, não me dê música!

– Não dou, sou uma pessoa normal.

E assim por diante, no café ao pé da escola. A empregada é fresca, sem muito tento na língua, mas indicia uns belos seios (é por aqui que se amansam muitos homens). Lourenço passa lá frequentemente. Por nada em especial, nem pelo café. Necessita disso para pontuar o seu dia. E começou há pouco a matutar na possibilidade de lançar um piropo à Vanda, iniciado por: “A menina é atrevida, não quer atrever-se um pouco mais?” Talvez mais curto: “A menina quer atrever-se?” Não, demasiado subtil. Bom, era logo um: “Vanda, quer foder comigo?”

É isso mesmo, a frase vai ser dita (parece um imperativo cósmico). E Lourenço preparou-se para a negativa, e talvez o insulto vindo da indignação arrebatada de peixeira. Mas quando chegou o momento em que, embriagado por uma noite de insónias, lhe perguntou se queria foder, ela respondeu que sim, desde que recebesse uma nota de €100.

Lourenço emudeceu e tremeu, um técnica que o seu corpo usava para evitar algumas vergonhas.

– Então, sim ou não?

– Sim, €100, ok, está bem.

– Quando?

– Hoje, logo, onde mora?

– Aqui ao lado, Óscar Monteiro Torres, 27, 3.º Dto.

– A que horas?

– 9?

– Lá estarei, lá estarei. Mas não espere por qualquer redenção.

(cont.)