As Aventuras do Senhor Lourenço (§28 nas nuvens)

Alfred Stieglitz, 1925

(cont.)

A inspectora considerava-se uma nostálgica, vivia a utopia e a esperança ao contrário. Como o passado mítico remete sempre para uma ordem harmoniosa, tendia, por vingança contra o presente, a castigar severamente os incumpridores da educação, professores falhados, indolentes, maltrapilhos, estúpidos, no máximo estultos... Formavam uma galaria de informes que deviam ser expulsos do ensino. Frutos podres da decadência actual, sem valores fortes e precisos. Por isso, apesar da cordialidade, aprendida no convento mais do que no mundo secular, com que tratou Lourenço, soube desde o início que lhe daria um castigo pesado. Tanto mais que ele tivera todos os deuses do seu lado para formar uma referência ética na classe dos professores, banir os maus olhados e o desdém com que metade da população vê, impulsivamente, aqueles que ensinam e, sobretudo, avaliam, às vezes arbitrariamente é verdade, gerações de neófitos sem vocação para anos de aplicação monótona a troco, muitas vezes, de um emprego mal pago e com pouco sentido. Lourenço comentou comigo logo no início que a inspectora tinha uma vontade grande de parar o tempo, parecia-lhe ver nela a insegurança dos que não sabem envelhecer, dos que ao olhar para diante antecipam apenas rugas, sofrimento e morte. Tanto mais que uma pele de Branca de Neve indicava que veria no bronzeado mais uma futilidade da nossa época. E como se sabe, bronzear é um dos principais passatempos sérios dos portugueses. Era, portanto, contra o Portugal presente que a inspectora agia. E Lourenço fora uma amostra do país, com a sua falta de rigor e coerência assustadoras na narrativa de heroísmo que, voluntária ou involuntariamente, constituiu.

– Dois meses suspenso sem ordenado! Dois meses? Injusto, totalmente injusto, arbitrário, infundado. – Lourenço continuou a desfiar acelerada e ininterruptamente um conjunto de asneiras que não pertenciam ao seu vocabulário. Pergunto-me onde terá ele aprendido esse jargão de taberna, e por que razão usá-lo agora. Nada havia a fazer, e não me pareceu útil, disse-lhe mais tarde, destilar toda a sua frustração ao pé da Directora, que devia estar mais satisfeita do que um leão depois de comer a presa.

Tudo em vão. Foi para casa, na verdade um quarto arrendado numa casa velha da Duque de Loulé, escadas sem luz, soalho com buracos, teto com várias marcas de inundações, e uma senhoria que “queria companhia” enquanto via a novela da noite. Lourenço feito refém das circunstâncias que ajudou a criar. Daí que uma energia negativa ganhava cada vez mais o seu ser. Fui lá um dia com o Joaquim e saímos deprimidos. Nós que compreendemos muito bem o niilismo, assustamo-nos com o poço sem fundo onde Lourenço tinha caído.

[fico agora na posição de narrador omnisciente, mas compreendo que duvidem do que vou dizer]

Por seu turno, como quase sempre depois de castigar, a inspectora sentia-se harmoniosa, sensual, quase bela. Mas desta vez havia uma pequena insegurança que a consumia. Continuava a amar antes de tudo as nuvens de Stieglitz e os céus de Turner, era lá em Cima que estava a sua ambição, agora sem a presença de deuses parecidos connosco. Um amor sem condições, como, por curtíssimos períodos, tinha tido por Deus, não o do Universo desencarnado, antes pelo seu filho, pregado na cruz, abdominais exemplares e a beleza facial triste, apropriada à dor sobre-humana. O belo símbolo do bem. Apesar desta espiritualidade, permanecia nela o prazer eléctrico que vinha do poder que tinha por ser inspectora, sabia-lhe bem infligir um certo medo. Mas o processo de Lourenço tinha mudado qualquer coisa nela, às vezes parecia ver parcelas da sua figura desenhadas nas nuvens. Nada de muito claro, pequenos indícios que provocavam micro-inquietações. Perguntava-se, talvez pela primeira vez, se teria sido justa, se aquele colega, desfeito pela incapacidade de corresponder às exigências do heroísmo, conseguiria aguentar mais esta desfeita. Além do mais, sabia que tinha dado um enorme prazer à parvinha da Directora, cheia de si dentro da maior das vacuidades.

Decidiu, por isso, ir a casa de Lourenço.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§27 senhora inspectora)

(cont.)

A inspectora nomeada para o processo do Lourenço andava na casa dos 50, saia-casaco imaculado, camisa branca a deixar entrever a zona dos seios ("velho truque feminino", pensou Lourenço), maquiagem perfeita, sapatos fechados com salto alto, cabelo pintado de louro. Algum ouro no pescoço, uma pulseira, dois anéis e um Smartwatch da Apple completavam a toilette. Era, sem sombra de dúvidas, a mulher mais bela na escola, tinha aterrado ali, porém, para julgar e provavelmente castigar. Daí um sorriso que nunca desfazia a ambivalência, pondo os interlocutores à distância. Os inspectores, sempre achou isto, deviam ser mestres da distância.

Só falou com Lourenço 2 ou 3 dias depois de ter chegado. Foi no intervalo grande das aulas da manhã. Questão de marcarem, disse a inspectora, o “modus operandi” das audições. Ficou agendada uma sessão por dia, às 18 horas, durante  uma semana. Entretanto, ouviria alunos e pais, tendo já registado a versão, ou versões, da Direcção. Tudo muito eficiente, e isso deixava Lourenço mais descansado, a eficiência era a sua principal adição, não por qualquer impulso irracional, mas porque lhe parecia que continha sempre mais bem do que mal, preferia este critério moral do que as velhas regras que resultam sempre da cosmovisão dos grupos dominantes e, de uma ou de outra forma, impõem obediência e sectarismo.

A inspectora chamava-se Matilde, o nome fora-lhe dado muito antes de estar na moda, na altura era um nome de aldeia. Lourenço soube mais tarde que ela tinha fugido da miséria e do isolamento de uma aldeia beirã mostrando inclinação para servir a Deus num convento de freiras. Uma vocação oportunista, como aconteceu tantas vezes em Portugal. As regras espartanas e o hábito das leituras sagradas no convento tornaram-na uma excelente aluna, formou-se mais tarde em História na Universidade Clássica de Lisboa, com a média mais alta do seu ano. Foi professora durante quase duas décadas, sempre a mudar de lugar, até que concorreu para inspectora de educação, e ficou. Nunca se casou nem foi prolífica nos namoros, era demasiado rígida para seduzir os colegas. Além disso, nas escolas a desproporção entre feminino e masculino é tão grande que o melhor para as senhoras é irem pescar fora de portas. Com tanto por onde escolher, os pouco colegas interessantes apostaram noutras, mas talvez se tenham enganado, a inspectora era agora uma mulher em forma, apetitosa, quase femme-fatal, enquanto muitas das colegas que a tinham vencido há 25 anos ganharam pelo menos 3 barrigas, 20 quilos de gordura e já não se importavam com a roupa ou o penteado. Aliás, parte delas estava divorciada, e só um vibrador lhes podia dar alguma prazer sexual. É verdade que neste aspecto também a inspectora não sabia o que era um pénis há muito, mas se quisesse passar pelas chatices do engate longo, e não apenas levar com um macho apressado em cima dela depois de uma noite de copos, teria facilidade em acasalar, sexual e socialmente. Sentiu esse apelo algumas vezes, mas retraiu-se sempre, pesados os prós e contras, concluía que era melhor ficar quieta, redimindo-se com os sex-toys que tinha na mesinha de cabeceira, comprados nos últimos 10 anos, sempre durante os saldos, a maioria na Amazon. Tinha vários pénis de fantasia, dos mais realistas aos vibrantes e com câmara incorporada (gostava de ver as entranhas), objectos de alta tecnologia, com materiais amigos do ambiente, polidos até ao liso quase metafísico. A inspectora levava a masturbação a sério, encenava a peça sexual ao pormenor, onde o parceiro imaginário se portava à altura do seu desejo e caprichos. Os preliminares, feitos com um diálogo onde contava ao parceiro os seus principais fetiches (ser batida e insultada, sexo anal e oral, receber o sémen na cara), iniciavam a linha ascendente da excitação, cerca de 15 minutos depois estava húmida e começava a penetrar-se, primeiro na vagina, depois no ânus (preferia estes termos aos do jargão vulgar da pornografia). Cerca de meia-hora depois tinha o primeiro orgasmo, por vezes incontrolável. Seguiam-se mais 4 ou 5, geométricos, libertados no exacto momento em que atingia a máxima intensidade, uma espécie de explosão, ou implosão, controlada. Esta segunda leva era conseguida quer pela vagina quer pelo ânus. E pronto, um banho e atirava-se ao romance de cabeceira, ultimamente a reler os “clássicos dos clássicos” (Ulisses, Crime e Castigo, A Procura do Tempo Perdido e O Homem Sem Qualidades), à vez durante a semana, conseguindo não misturar as histórias ou os estilos. Uma leitora pós-moderna num corpo sexuado claramente moderno.

– Colega Lourenço, vamos lá então perceber o que se passou.

– Claro, senhora inspectora.

– Trate-me por Matilde, por favor.

– Com certeza.

– Comecemos pelo contexto: dia, aula e turma, pode ser?

– Claro.

Lourenço desenrolou o fio do novelo, guardado com objectividade na sua memória. Não lhe custou muito, e depois de se ouvir achou que a inspectora só poderia absolvê-lo.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§26 processo disciplinar)

(cont.)

Há uma simetria estranha entre o encontrar-se a si mesmo e o perder-se a si mesmo. Era assim que Lourenço se sentia, nunca soubera tão claramente o que era, mas nunca também desejara tanto desvanecer-se, sumir-se no anonimato mais absoluto, talvez morrendo como um mendigo (a única verdadeira morte pessoal) ou buscando uma ascese incondicional (a ascese é uma forma de se estar morto em vida).

Lourenço, já o disse, não foi a pessoa mais inteligente que conheci, por vezes era mesmo muito lento a perceber as circunstâncias e tinha uma memória bastante fraca. Mas em certos dias, certas horas, certos minutos saíam da sua mente as análises mais lúcidas que jamais ouvi. Por isso, vestia bem pontualmente a máxima de Valéry: “Sabe demasiado para viver.” Faltava-lhe também a confiança ingénua no futuro, no seu futuro, julgava ainda que o essencial estava contra a vida, ela não aceita, com os seus permanentes saltos quânticos, qualquer verdade, uma angustiante efemeridade envolve toda a realidade, não há como fugir-lhe, pensava. Julgo que Lourenço tinha capitulado emocionalmente.

Na escola, depois das respostas ríspidas que deu a colegas e directora, uma paz podre permitia-lhe ficar no seu canto, absorto, lendo um livro qualquer de filosofia. Por vezes conversava comigo e com o Joaquim, formando-se um trio estranho. Mas esses diálogos concorriam com coisas mais interessantes: eu babava-me por uma colega nova de história, com um rabo firme e macio como mármore; Joaquim continuava a sua aventura sexual a troco de se deixar corromper pela teologia (entristecia-me vê-lo assim, mas ele assegurava-me que estava feliz, “camisa lavada, comida em cima da mesa e sexo oral fabuloso!”). Tinha mudado, sim, mas que importa. Antigamente, com uma palavra quebrava o espírito de qualquer um, era duro como um anjo. Mas não era feliz. Agora lançava bons afectos por cima da multidão, relativizava até a maldade do nazismo, tolerava a estupidez dos colegas, o desplante parvo dos alunos..., tinha uma cara sorriso e poucos vestígios restavam da sua maldita halitose.

Lourenço sempre tinha tido uma relação cordial com os alunos. Uma ou outra resposta ríspida, duas ou três expulsões da sala de aula, mas em geral tudo ficava resolvido com uma conversa a sós, no final da aula. Até que uma turma, a parte vital dela, se virou contra ele. A velha vontade de poder a funcionar. O líder começou por pedir-lhe explicações sobre o que tinha realmente feito ao bombista, se era ou não o herói que todos tinham dito ser. Lourenço respondeu que isso não era tema para a aula. Mas o Ricardo insistiu:

– Estamos nos valores éticos, não estamos? Falamos muito do que se deve e não deve fazer, do que é justo e injusto, do bem e do mal, falamos de imperativos categóricos e de carácter. Por isso, o que lhe perguntamos tem tudo a ver com as aulas.

Ricardo era o melhor aluno da turma, mas normalmente submisso, à maneira de um bom caçador de notas. Agora estava diferente, devia sentir-se, por uma qualquer razão, imune.

– Ricardo, volto a dizer que isso não interessa, é do foro privado.

– Não, stor, depois de aparecer em todas as televisões e jornais já é só privado, nós precisamos de saber se o que defende aqui nas aulas orienta a sua sua vida, não queremos mais um São Tomé.

– Não, Ricardo. Isso é do foro privado.

Mas mais alunos, meninas também, voltaram à carga, queriam compreender, por inquietação intelectual ou percebendo que podiam derrotar o professor, pô-lo a tremer, dominá-lo. O tom aumentou de volume. Lourenço, ainda meio estóico, procurou manter a calma. Até que não se conteve e começou a berrar, chamando nomes feios a alunos e pais. Do episódio reteve-se o insulto persistente a “grande parte da comunidade educativa”, a arrogância com que se pôs a salvo das críticas, o descontrolo pedagógico que se criou, como se fosse um principiante. A Direcção não lhe perdoou e pôs-lhe, com uma satisfação indisfarçável, um processo disciplinar. Lourenço corria o risco de ser expulso do ensino. Se isso acontecesse, teria de regressar para casa dos avós e tornar-se pastor, um pastor poeta talvez, prolongando o inimitável Alberto Caeiro.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§25 onirismo)

(cont.)

Os sonhos são a coisa mais pessoal que há, um exclusivo do sonhador. Apesar de Freud, da sua analítica científica, que se preocupou mais, é importante dizê-lo, com o incesto do que com o abandono do Édipo bebé, como se o Ocidente tivesse há muito elaborado uma escala de valores com pouco sentido (o bem e o mal não se jogam na lógica). E Lourenço sonhava abundantemente, tinha sonhos geopolíticos onde invertia as utopias, talvez porque um dia leu Theodor Adorno e percebeu que a história era destrutiva, tal como os homens que produzia, sendo a morte pelo menos tão normal como a vida. Daí sonhar recorrentemente com D. Afonso Henriques, não o herói que todos queremos entronizar, mitificando-o, mas um nobre irascível e arrivista. Com a crueldade do seu tempo totalmente activa e uma veia manipuladora que juntava e separava, consoante as conveniências, os homens-guerra que queria do seu lado quando se tratava de conquistar terreno, e bens, aos mouros, mas desavindos entre si nas pausas entre combates, não fosse o diabo tecê-las e uni-los contra si. Tudo era mais perigoso nessa Idade Média, onde a Igreja fazia de União Europeia e Cristo presidia ao Conselho das Tribos, religiosamente fanáticas e sequiosas de glórias e bens terrenos ao mesmo tempo. A contradição só envergonha os filósofos, alguns filósofos. Outro dos sonhos habituais era a de querer fugir, sem nunca saber se conseguia ou não, a uma horda de machos excitados com pénis erectos à procura do seu cu. Narrativa desconfortável, nunca Lourenço sentira a mínima atracção por homens ou caíra em qualquer rasgo satânico. Talvez tivesse que ver com a relação de mestre-discípulo na antiga Grécia Clássica, talvez ele quisesse um mestre que o inseminasse de sabedoria, daquela que ensina a morrer. Talvez, mas a hermenêutica dos sonhos é infinita, os oráculos que dizem decifrá-los deviam ser sistematicamente ridicularizados, apesar de haver mercado, escravos voluntários que se deixam hipnotizar porque têm medo de ser soberanos (embora gritem aos quatro ventos que querem mais soberania nacional, a independência nacional, os destinos de Portugal nas nossas mãos). O que dizer então de outro sonho repetido, embora menos frequente do que os anteriores, em que Lourenço agarrava relâmpagos com as mãos nuas, aguentando a descarga, e tudo o mais que faz de um relâmpago aquilo que ele é. Primeiro capturava um pequeno, o anunciador da tempestade, depois outro, e outro, e mais um... até ficar exausto, momento em que a tempestade cessava e o céu mostrava, num estranho esplendor, todas as estrelas do firmamento. Mas o que o afligia mais encenava a sua falência fisiológica da cintura para baixo, começava por não sentir os pés, depois a parte inferior das pernas, até chegar à cintura, órgãos sexuais incluídos (que no sonho apalpava freneticamente a procura de uma confirmação, em vão). Logo a seguir à paralisia, havia sempre um bando de vagabundos que o perseguiam, e ele a querer fugir, a arrastar-se, com as mãos a fazerem de remos, remando em terra, por cima de um caminho cheio de pedras lascadas. O bando a aproximar-se, sem que pudesse ver nitidamente nenhuma das caras, mas sentia o cheiro nauseabundo e a crueldade luciferina que os envolvia. “Rema mais depressa!”, dizia para consigo, mãos em sangue, como as de Cristo, a boca cheia de pó, as pernas, inúteis, troncos mortos, arrastadas pela força do resto do corpo. Acordava sempre no momento em que, após uma longa perseguição, lhe caiam em cima e extirpavam, pedaço a pedaço, os membros inferiores. Sem as pernas daninhas ganhava então velocidade e levantava voo, deixando para trás os canibais primitivos. Retirado o pedaço de carne e osso inúteis, Lourenço ficava com uma vida de pássaro, era agora um torso voador. E lá de cima tudo parecia diferente, mais belo e vivo, como quando se intensificam as cores de uma fotografia. Talvez pela primeira vez, sentia-se plenamente feliz.

[repito-me, pode um escritor dizer algo de novo, estabelecer a sua marca pessoal? Dificilmente, até no sexo, acto privado por excelência, o que pensamos é um bem, ou mal, comum. Em rigor, repetimos clichés ad nauseam, tudo está colonizado por infindáveis lugares comuns]

No dia-a-dia, a descrença aprofundava-se, como se estivesse sentado em cima de areia movediça sem poder fugir. Cada vez acreditava menos no papel do professor, em qualquer eficácia pedagógica. Recordava amiúde as palavras de Sócrates no início do Banquete, onde contradiz Agaton sobre a possibilidade da sabedoria passar do mais cheio para o mais vazio. Além disso, longe do senso comum escolar, Lourenço era uma personagem apócrifa, cada vez mais levado à emigração interior. Felizmente, a imprensa sensacionalista tinha-se cansado dele, uma ou outra pequena nota, e pouco mais. O Expresso, cada vez mais sério, ainda lhe quis fazer uma “entrevista de fundo”, Lourenço recusou, argumentado que a sua biografia e pensamento eram muito fastidiosos. Mas na escola continuava a ouvir as boquinhas das storas decrépitas e desmioladas. Joaquim aconselhava-lhe a indiferença, eu, pelo contrário, a confrontação, para não lhe comerem papas na cabeça, ou lhe verem cada vez mais o rabo. “É preciso, disse-lhe, mostrar nervo”. Lourenço escolheu o estilo joaquinino, até que num intervalo grande da manhã, uma segunda-feira de Novembro, quente como se fosse Agosto, respondeu ao “Olha o nosso herói!”, lançado ao vento na sala dos professores velhos, com: “Suas putas e seus paneleiros, têm menos pensamento e moral do que dentes, velhas carcaças acéfalas e insensíveis, egoístas incultos, badamerda para vocês, ide todas, e todos, levar no cu, não com os vossos pénis irrisórios, flácidos e minúsculos, mas com mangueiras de profissionais de pornografia!” Um colega mais militante de si mesmo ainda esboçou o contra-ataque, mas Lourenço calou-o imediatamente, e, dizem, para sempre (reformou-se invocando uma doença ligada a afasias), com: “Se abres a merda da boca esmago-te a cabeça contra a parede!”

As Aventuras do Senhor Lourenço (§24 levar nas orelhas)

(cont.)

– Estás contente? – Perguntou Manuela, mais bela do que nunca, uma pele que só podia ter sido oferecida por Afrodite (em troca de quê?), ao vê-lo cabisbaixo junto à máquina automática do café.

– Não, claro que não. Mas isso importa pouco.

– Sim, sempre quiseste isto, gostas de te amar em mártir, é a maneira que encontraste para esconder os teus fracassos.

– Creio que não, ninguém, nem os masoquistas, gostam de sofrer. A finalidade nunca é o sofrimento, ele pode ser necessário como meio, jamais como fim.

– Não enroles, estou farta de conversa fiada. Pelo que consegui compreender de ti, julgo que és um tremendo anormal. E olha que te amava a sério. No início andei contigo pelo heroísmo, talvez influenciada pelo olhar que as colegas te lançavam. Disse para comigo que tinhas de ser meu, não te ia deixar à estúpida da Joaquina mamalhuda, ou à parvinha seminua do teu grupo, sempre cheia de citações entre os decotes teenager. Depois, consegui ver em ti qualidades que nem sonhas ter, posso não ser muito inteligente, mas tenho uma boa intuição ética (olha o que aprendi contigo, “intuição ética”). Tu és uma boa pessoa, pelo menos és muito melhor do que pensas, darias um óptimo pai, um óptimo avô.

– Não conheces ainda o fogo negro que arde em mim. – Disse Lourenço sem olhar para ela.

– Lá estás tu a forçar a página da desgraça.

– Não, Manuela, recebi isto ainda no útero, e manteve-se indomesticável, faz o que bem lhe apetece.

Faltava dizer ao Lourenço, mas Manuela não tinha nem as palavras nem as ideias certas, que a vida é acrobacia, que por isso se está sempre em risco de cair, atraído pela inata gravidade trágica, sim nós nascemos para a tragédia, é por isso que os primeiros gestos de cultura elaborada de qualquer comunidade, dos semitas ao gregos, passando pelos ingleses isabelinos, procuram reproduzir essa parcela da nossa essência, as primeiras linhas de cultura são sempre sobre o trágico. Ambivalente, Lourenço personificou esse rasgo contra a monotonia do bem e do conforto, mas, simultaneamente, nunca quis ultrapassar os limites, aventurar-se na imensidão, experimentar o abismo. Pelo contrário, Lourenço especializou-se em retiradas.

[bom, não me tomem por um narrador omnisciente, retrato o Lourenço tal como o imagino. Por mais que queiramos, não temos acesso a nenhuma consciência para lá da nossa. Além disso, as palavras que escrevo aqui não são imediatamente portadoras de vida. Por exemplo: tudo o que de magnífico e vital escreveu Hugo von Hofmannsthal se pode sequer aproximar de em Julho de 1929 ter morrido de um ataque cardíaco quando se dirigia para o enterro do seu filho Franz, que se suicidara com um tiro de pistola]

À parte de mim, do Joaquim e da Manuela, todos os professores da escola deixaram de falar com o Lourenço. Alguns ficaram-se pelo silêncio (aquele que dói), mas a maioria adornou o afastamento com impropérios lançados à socapa, facadas linguísticas que não permitiam resposta. Isto não chocava o Lourenço, só confirmava a sua melancolia. Ainda tentou uma resposta interior com um sintagma que viu escrito nas costas de uma cadeira de sala de aulas: “Lambe-me o cu”. Mas depressa se cansou desta táctica pífia, sem confrontar directamente os interlocutores permanece-se no solilóquio autofágico. Para completar a perseguição, lá veio a ordem da Direcção para que fosse ter “com eles” a meio de uma manhã de Exames Nacionais. Depois de entrar, fecharam a porta (mau sinal). A Directora, aquela mesma que tinha engolido o seu esperma, cornucópia inesgotável de humores contraditórios e vestuário “arrojado”, tomou a palavra, a bem dizer mais ninguém falou.

– Afinal, Lourenço, tudo não passou de um grande equívoco, não foi?

– Como assim? – Atreveu-se a perguntar Lourenço.

– Não percebeste a pergunta, queres um desenho? Tu és tanto herói como eu uma amazona.

Lourenço lembrou-se do cheiro intenso da sua vagina húmida, de como o tinha chupado, de ter tido vontade de vomitar quando lhe encostou a cabeça à barriga. Uma angústia muito superior a esta chamada de atenção moral.

– Lourenço, criaste muita perturbação aqui na escola, fomos e somos o centro das atenções, isso não é bom para o clima pedagógico.

– Porquê? – Ah, Lourenço, não se deve pedir explicações às tiradas retóricas.

– Porquê? Ainda perguntas porquê?

– Claro, não percebo a acusação. – Ainda mais Lourenço? Não sabes ficar calado, foste à Direcção para levares nas orelhas, não para um confronto de perspectivas.

– Não percebes?! – gritou a Directora. E continuou, és parvo o quê? Todos os dias a aturar jornalistas, os pais a caem-nos em cima, os colegas desconcertados...

– Não sou parvo, ou pelo menos não tanto quanto isso. Não vejo é razões para este histerismo, nem para o anterior, aliás. Eu só quero que me deixem em paz, percebes, deixem-me em paz! Tu, os colegas e os jornalistas. Deixem-me em paz!  – Virou costas e foi-se embora. E este talvez tenha sido o primeiro verdadeiro acto heróico à escala do Lourenço.

No dia seguinte foi à praia, como sempre a São João da Caparica, e curvou-se, como de costume, perante a beleza de ondas fortes (pouco habituais naquela zona), capazes de limpar todo o desassossego que o consumia. Ficou apenas a vontade de continuar a acelerar o processo, pedindo a algo mais vasto do que ele (uma divindade qualquer) que o apoiasse. A sua distância crónica em relação ao mundo estava mais do que nunca num ponto sem retorno. Mas os deuses são incapazes de assombro, por defeito mais do que por virtude.