As Aventuras do Senhor Lourenço (§10 Lourenço sonha ser um intelectual)

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Ser intelectual é uma tarefa infinita, Lourenço sabe-o bem. Enquanto esperava por Vanda, mais calmo do que se pensaria, olhou para a estante e teve a certeza que não viveria tempo suficiente para ler os livros que ainda não tinha aberto. Sentiu uma enorme tristeza, era como se tivesse finalmente ficado claro que nunca seria um verdadeiro intelectual.

[para mim, um intelectual é um ser vivo que assume o dever de agir com a cabeça para assumir o comando dos que vivem para a barriga]

Pode parecer uma coisa sem importância, mas Lourenço não conseguiria ser mais nada, o máximo era a intelectualidade. Um intelectual de Lisboa, não do Porto ou Paris, só de Lisboa. Visto que no geral os intelectuais da capital não criam ideias vibrantes, desenham poses (aqui não entra o centralismo que ensombra os regionalistas portuenses; os intelectuais do porto, talvez devido à fonética mais arcaica, são capazes de esmurrar um energúmeno enquanto tecem dois conceitos para rebaixar ao nível do lixo o último romance de um jovem escritor étnico). E na pose, que segue um cânone cada vez mais rarefeito depois do fecho do Quarteto, está uma gabardine bege com nódoas, revistas estrangeiras (o Jornal de Letras está pela rua da amargura) e livros vagamente semióticos debaixo dos braços (se chover trocam-se algumas obras pelo guarda-chuva, sem que se note muita diferença). A voz deve arrastar-se, condizendo, num rigor cuidado, com uma barba de 6 dias (nem mais, nem menos) e, principalmente, ficar em silêncio perante o interlocutor, ao mesmo tempo que um olhar oblíquo parece acusá-lo de incoerência lógica ou, pior, de reproduzir a vox populi.

[em tempos tive o projecto, secreto, nem o Lourenço soube, de ser o rei dos clichés, continuar, noutros termos, Flaubert e o seu Bouvard e Pécuchet, com o objectivo de ser aclamado pelo homem médio, único estrato social e psicológico que ainda consegue, juntando uma certa modéstia com pouca cultura, reconhecer a genialidade]

Em Lisboa não há um sítio cativo para os intelectuais desde o fecho do dito Quarteto, talvez a Cinemateca ainda cumpra um pouco essa função, mas longe daquelas quatro salas de cinema, alojadas numa espécie de pré-fabricado, ali para os lados da Estados Unidos da América, afixando sempre “filme de qualidade” nas montras dos cartazes, não de “alguma qualidade”, mas de “qualidade”, mesmo que fossem soporíferos em lentas imagens-movimento. Agora, além da Cinemateca, podemos vê-los tanto na Cornucópia como na Lux, frequentam a Fábrica de Braço de Prata ou a LX Factory (Warhol teria um riso Pop ao saber que ali milita a esquerda rebelde, que é de esquerda mas não é de esquerda, se indigna mas é empreendedora, faz voluntariado mas tem a grande fatia de bolsas de estudo da FCT), bebem um copo, de cerveja ainda, numa tasca ou vão ouvir filosofia ao Bar Irreal. Vagueiam pela cidade e viajam à volta do quarto (a Ryanair desvia-os de vez em quando desta monotonia contemplativa). O que lhes falta, por mais estranho que vos pareça, não é um cimento corporativo que inicie a criação do “povo por vir”, mas um certo nível de angústia misturada com raiva. Em termos mais sociológicos: um sentimento de desprestígio social que os levante, num impulso de vingança, a um patamar de sobranceria capaz de inferiorizar com o olho esquerdo todos os que não leram pelo menos metade dos clássicos (aferir esta distinção seria da responsabilidade de um comité de intelectuais pioneiros, e velhos, onde se votaria de braço no ar – relativizar a democracia seria também um dos imperativos iniciais).

Mas tudo isto, mesmo na linha do risível, vive de forma muito respeitável. A fluidez da intelectualidade lisboeta pode dificultar o trabalho das mentes analíticas, mas há algo nela que a mantém idêntica a si mesma, uma dignidade que abraça a decadência sem se deixar aspergir pelo vírus capitalista.

É esta atmosfera do grupo a que Lourenço gostaria de pertencer que condicionou o seu encontro com Vanda. Imagine-se que por causa dos intelectuais, Lourenço considerava a nudez, “essa límpida forma de integridade”, muito pouco sensual, via nela o exemplo perfeito da recaída humana na animalidade por renunciar ao efeito erótico do vestuário.

– São três pratos. – Disse Vanda de rompante, imediatamente depois de entrar no apartamento de Lourenço, ainda com a mala na mão e gotículas de suor microscópicas nos cantos da boca.

– Três pratos?! – Perguntou Lourenço, meio azamboado, sobretudo porque tinha estado em cogitação intelectual.

– Sim, quer um desenho?

– Não, creio que já percebi.

– Então, o que vai ser?

– Não queres escolher tu?

– Não, não é assim que funciona.

– E a emancipação feminina?

– Não me venha com tretas, trabalho 8 horas por dia, de pé, e ganho €600.

– Por isso mesmo...

– Qual “por isso mesmo”? Emancipação o quê? Quero é comprar umas Levis.

– Essa já foi, em temos, uma peça da emancipação feminina.

– Who cares?!

– Vamos fazendo as coisas.

– Não, isto tem de ficar claro, diga-me o que quer, é preciso ser rigoroso.

– Quero-te a ti.

–Sim, mas que parte?

– Sei lá, o teu corpo, quero fazer amor contigo.

– Amor? Isto é uma queca, não meta a alma nisto.

– A alma?

– Sim, não me diga que não sabe o que é?

– Não, quer dizer, sei mais ou menos.

– Pois bem, é sem esse “mais ou menos” que vamos fazer isto. Deite-a cá para fora, estou mesmo a ver que tenho de ser eu a decidir.

Lourenço quase foi violado, e teve durante 10 minutos uma “sistemática desorganização dos sentidos”. Vanda tratou-o como tratava a máquina do café. Lourenço gostou como nunca tinha gostado. Uma empregada inculta e desbocada, a dar para o gordo, soubera, sem o saber verdadeiramente, tocar onde devia. Ou foi encenação? Ou ele, um enfraquecido, teve a indecência de se aproveitar do vigor rústico de um neo-proletariado, tão inconsciente como sempre?

– Passe para cá os €100 e até amanhã que se faz tarde. – Disse Vanda já com a mala na mão, Lourenço foi buscar duas notas de €50 e quando a quis beijar já ela estava no elevador.

Em breve a vida de Lourenço vai mudar, uma incrível aventura fará com que apareça, dizem que por boas razões, na capa do Correio da Manhã, e, depois de conquistar este graal comunicativo, em tudo o que são revistas e programas cor-de-rosa. Talvez chegue mesmo aos meios de comunicação de referência, tablóides disfarçados de jornalismo sério.

(cont.)