[hoje gostava de fazer um capítulo subtil e feliz, até porque dormi bem, não tenho dívidas e ontem convivi com pessoas amáveis. Mas, como sabem, aquilo que escreve não liga muito ao Eu]
Ninguém sabe quando pode surgir uma coisa magnífica. Além disso, Lourenço tem mais vocação para cartografar as fissuras ou fracturas da sociedade do que para apostar na excelência de obras ou gestos nascentes. Tanto mais que isso exige um optimismo quase ingénuo, enquanto Lourenço é sobretudo um pessimista, satisfeito com o nevoeiro estacionado sobre a vida.
Na altura, eu e o Joaquim mantínhamos uma distância calculada em relação ao herói do momento. Mas percebíamos bem que ele se esgotava, a intensidade histriónica com que era solicitado pelo exterior sugava-lhe a vida, já de si frágil, Lourenço tinha naturalmente pouco recursos vitais. Talvez por isso se tenha ligado ao Joaquim, vendo nele uma tábua de salvação, como quando um cego pede ajuda a outro cego para atravessar uma estrada. Enquanto a mim me manteve à distância, cheguei mesmo a sentir algum desconforto com esse abandono, mas depois percebi. Menos compreensiva foi a Manuela, fez várias queixinhas sobre o estranho magnetismo do Joaquim, “o velho gordo e malcheiroso”. Avaliação apressada, não porque Joaquim não fosse gordo ou cheirasse mal, mas era muito mais do que isso, e tinha, sem que ninguém percebesse bem porquê, uns dentes fantásticos, de actor de cinema. Claro que os “dentes de marfim” não compensavam a degradação corporal e a halitose, mas faziam um interessante contraponto com o estrabismo, se nos distraíssemos parecia que a sua cara tinha sido enxertada por um cirurgião plástico inconsistente: medíocre nos olhos, excelente nos dentes.
Joaquim acreditava na transparência, cada indivíduo devia revelar-se incondicionalmente, mas na verdade ele era o exemplo perfeito do espectáculo da solidão e do secretismo. É a partir disto que explico a sua atracção pelo bom vinho de Vila Nova de Foz Côa, essencial para combater os pruridos burgueses da identidade, e a militância trotskista. Continuava a acreditar nela, sem a praticar. Mas salvo um ou outro fim-de-semana de bebedeira alegre, tinha-se enrolado em si mesmo à medida que envelhecia e os “amanhãs que cantam” não se realizavam. “Uma vida inútil”, costumava dizer. Sentia-se arruinado, e já só acreditava em ideias individuais e na maldição da suprema arte da inconveniência. Apesar deste desencanto, Joaquim tinha vontades que podiam pegar fogo. Um incêndio de baixa intensidade capaz de capturar certas pessoas para o seu círculo de fogo. Um dia, há bastante tempo, aproximou-se de Lourenço, achou interessante vê-lo a ler um livro sobre a sobre-moralização do futebol. Diz-se que o título era: Há mais Ética no Futebol do que na Assembleia da República, de um obscuro, mas perfumado, jornalista desportivo. Lourenço não se lembra de tal livro, aliás se procurarem no Google verão que nada existe de parecido com isso. Mas Joaquim já era na época um pragmatista, para ele só havia efeitos, não coisas, muito menos verdade. Este foi o legado de 10 anos a consumir haxixe, única forma que encontrou para, ao mesmo tempo, ser severamente materialista dialéctico e um hedonista céptico.
[desculpem-me este niilismo mas o escritor deve admitir abertamente as suas preocupações mais obscuras, tanto mais que é nos romances que se aprende o verdadeiro significado da vida. E portanto não se deve saltar estes monólogos adramáticos]
Começou a frequentar o Lourenço na sala de professores (e professoras), e rapidamente houve uma comunhão franca e alegre (embora sempre frugal em Lourenço). Joaquim sabia que Lourenço não dava para muito, mas tinha um mínimo mental e alguma cultura filosófica. Não, Joaquim não era de filosofia, mas de história, um carrancudo professor de história. Lia, porém, sobretudo livros de filosofia, sempre à procura de uma redenção metafísica para a “porcaria da realidade”, que nunca mais avançava em direcção à grande e definitiva Revolução. Além disso, suportava qualquer tipo de desordem, menos a das ideias, e Lourenço podia não ser prolífico, mas era bastante coerente.
– Lourenço, aquele malandro do Kant, a pôr o sublime no religioso, hem?!
– Pois é, devia ter permanecido no campo da arte.
– Qual quê, a religião é mais revolucionária! Olha o Estado Islâmico.
– Mas não conduz à alienação?
– Só quando é mal orientada, só quando é mal orientada. Olha para Jesus, olha para a Teologia da Libertação, olha para Feuerbach, olha para aquele bispo de Setúbal. E não me entendas mal, já sabes que só falo do que pode ser, nunca do que devia ser.
– São excepções. – Lembrou-se de dizer Lourenço, em cima do toque de entrada.
– Excepções paradigmáticas, paradigmáticas.
Joaquim tinha uma enorme vantagem sobre os seus vários inimigos: desde que deixara o haxixe, o estrabismo intensificara-se (normalmente a droga cega ou desdenta, aqui Joaquim teve sorte). A ambivalência inequívoca do olhar desbaratava os seus contendores. Como se pode atacar alguém que parece olhar para dois campos da realidade? É impossível marcar o alvo. Invariavelmente, todos acabavam por desistir, os argumentos pareciam não atingir Joaquim, que, apesar dos 90 quilos, era uma figura evanescente. Vencia, pois, as discussões, mas perdia as pessoas. De todas as contendas emergia uma raiva que armadilhava mais uma ligação.
Estranhamente, isso nunca aconteceu com Lourenço. Uma namorada de adolescência, também estrábica, ensinou-o a concentrar-se apenas num olho, o “olho da amizade”, como lhe chamava. Joaquim, por seu lado, fosse pelo tal livro sobre futebol e moral ou por não ter mais ninguém, engraçou com Lourenço. Não conversavam muito, e até uma certa altura fizeram-no apenas na escola. Mas sentiam verdadeiro prazer quanto trocavam umas palavras sobre os alunos, a actualidade ou a história da filosofia. Agora que Lourenço era solicitado de todos os lados, quase não se viam, mais havia um capital de amizade que se mantinha, à espera de aparecer quando fosse necessário.
Um dia encontraram-se e discorreram sobre o tempo. A páginas tantas, Lourenço perguntou:
– A esperança é o maior dos bens ou a pior das maldições?
– Depende.
– Do quê?
– Da perspectiva.
– Isso quer dizer alguma coisa?
– Pouco, mas é a expressão que se usa nestes casos.
– Joaquim, devo ter esperança? – Perguntou Lourenço, quase em surdina para não ser ouvido pela “malta”.
– Depende.
– Do quê?
– De onde quiseres derramar a esperança.
– Numa vida normal, numa vidinha.
– Todos podem ter esperança numa vidinha, os nossos políticos trabalham com afinco para que isso seja possível.
– E nós, temos que fazer alguma coisa?
– Não, é só mantermo-nos nos eixos, na linha mediana que conduz do nascimento à morte. Se esperares outra coisa...
– O quê?
– Manteres-te no heroísmo, por exemplo.
– Sim, o que devo fazer?
– Gerires bem a esperança, elevá-la e baixá-la consoante as circunstâncias.
– Não percebo.
– No fundo, a esperança, quando se quer alguma coisa além da mediania, deve ser manuseada com muito cuidado. Foi isso que nos ensinaram os gregos. Não ter mais esperança que barriga quando vamos ao restaurante e estamos tesos. Esperar que o coração aguente, apesar dos sinais de querer transformar-se numa pedra. Baixar e subir, respectivamente. No teu caso concreto, as coisas ainda são mais difíceis já que quase nada depende de ti. Lourenço, sabes que sou teu amigo, a sério, mas tenho de te dizer que tudo isto está para lá das tuas forças, tu és uma marioneta nas mãos da turba deprimida e dos jornalistas sem escrúpulos. Devias pôr a Manuela na linha da frente, pouca coisa a perturba, gosta de aparecer, é suficientemente limitada para não deprimir, e, sobretudo, é gira que se farta.
– E eu?
– Tu ficas na retaguarda, a manusear a esperança com cuidado.