Eu e as Minhas Irmãs: Meditação sobre Dimitri

Do lado de dentro espio Dimitri, o jardineiro. Há muito que o observo. Ele é incansável no modo como trata as rosas. Constante, paciente, não espera nada em troca a não ser a beleza e a saúde delas.  Nem mesmo sei se lhe pagamos. É um homem como deve ser. 

Nunca entrou em nossa casa. Nem ele pediu nem nós o convidámos. Espio Dimitri, que alisa as pétalas de uma rosa; não sabe que eu o observo ou, se sabe, não o demonstra.  

Não está escrito em lado nenhum que não o possamos convidar. Imagino um primeiro dia em que isso acontecerá. Dir-lhe-emos que temos a casa em pedaços e é verdade e ele sabe que sim. Ocupar-se-á de pequenos arranjos: tapar rachas, arranjar portas, substituir janelas, reparar torneiras, essas pequenas coisas que sempre são precisas e nós não sabemos nem queremos fazer. Podemos confiar nele, na sua delicadeza masculina para saber que respeitará o trabalho laborioso das aranhas, os caminhos por onde passa a pequena osga, o rato que se aninha atrás do frigorífico, nada fará nada que nos desgoste.

Com tanta coisa partida, pedir-lhe-emos mais do que uma vez para entrar. Ele apanhará os vidros espalhados pelo chão, consertará, remendará, tornará a nossa vida mais fácil. 

E um dia convidá-lo-emos para jantar. Poremos a mesa com desvelo: abriremos as gavetas e tiraremos de dentro a toalha e os guardanapos de linho. Os copos de cristal, o melhor faqueiro. Velas vermelhas em castiçais de prata. Haverá carne e vinho para Dimitri.  Sentar-nos-emos à mesa e, como boas anfitriãs, fingiremos que o acompanhamos. Debicaremos as batatas que não tiverem tocado na carne. 

Repetiremos o convite. Uma noite, a irmã do meio tocará piano e cantaremos.

Outra noite, eu poderei dançar. Recitaremos poesia. Uma de nós nunca deixará esvaziar o seu copo.

Nessa noite será já muito tarde para Dimitri regressar a casa. Ele estará tonto, deitá-lo-emos no quarto de hóspedes.

E haverá uma noite, em que depois do jantar, da poesia e do vinho, Dimitri me acompanhará ao quarto. 

Assim se repetirá por outras noites. Até que um dia se irá deitar com a irmã do meio. E uma noite virá em que a passará com a mais nova.

E depois trocaremos, voltamos ao princípio. Comigo, com a do meio, com a mais nova. Comigo, com a do meio, com a mais nova. Sempre a rodar. Para que Dimitri desfrute de nós por igual e nós de Dimitri.

Nós abraçámos a vida parca. Um homem para as três chega perfeitamente.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§16 entre Joaquim e Manuela)

[em terra de cegos é-se rei com um olho. Mas às vezes parece que ninguém quer reinar, falta aos portugueses uma dose maior de arrivismo, conformamo-nos facilmente com a mediania]

Joaquim foi ganhando poder sobre Lourenço, não por uma vontade de domínio exacerbada, neste capítulo Joaquim assemelhava-se ao resto do país, uma moleza de espírito, talvez tecida pela moral das virtudes que refreia as forças conquistadoras dos portugueses (não o cinismo). É verdade que temos os “chicos espertos” e os “patos bravos”, mas depois de construírem a mansão com colunas dóricas e piscina quase olímpica, depois de fazerem férias num hotel tropical e de comprarem um SUV espampanante, depois desta trilogia, acalmam-se e contentam-se com uma churrascada junto dos amigos, tudo aos berros, e camarote num dos estádios dos três grandes.

No que se diferenciava era quando sobrevalorizava a força do livro, digo bem, “quando”. Ouvi-o muitas vezes dizer também, contra ele próprio, que os livros secavam a vida, criavam meninos de colégio, inibiam a imaginação, atrofiavam os músculos... Mas era a sua forma de justificar mais um ditado popular: “quem desdenha quer comprar”. Ou talvez um dos excessos instigado pela solidão. Joaquim, sendo tendencialmente boa pessoa, podia facilmente transformar-se num anjo sinistro, pronto a desbaratar tudo o que os outros construíam, mesmo o belo e o amoroso. O seu niilismo, traiçoeiro quando odiava as pessoas, alimentava uma imensa inteligência que adivinhava a força do negativo. A anti-vida que, à semelhança da anti-matéria, perpassa o pulsar de cada molécula orgânica. Cheio de cicatrizes narcísicas, projectava nos outros o mal que agora vivia em si, muitas vezes de forma tão soberana que sentia vergonha quando dava os bons-dias a Lourenço. Este, como venho demonstrando, tinha qualidades, não de herói, penso também que isso ficou claro, mas as mínimas para, se for caso disso, entrar no Céu (sem o saber, Lourenço apostava como Pascal).

No campo mais racional, Joaquim, apesar dos danos causados pelo haxixe, tinha uma cabeça disciplinada, mesmo quando punha os pés nas nuvens ou andava à cata de neologismos. Se Manuela se colocava ao seu lado, numa composição que remitia sempre para a Bela e o Monstro, sorriso de modelo feliz no momento da consagração fotográfica, inventava um enigma lógico e desafiava metade da sala de professores a procurarem a solução. Dizia que devíamos treinar para sermos Édipo, destruirmos com a espada da razão a intoxicação neoliberal. Claro que tudo isto faz pouco sentido, mas não se esqueçam dos dez anos ligados à droga. Por outro lado, Joaquim achava, baseando-se em fórmulas perfeitas da história económica, que se tinha perdido quase totalmente o sentido do profundo mistério do 25 de Abril. Mistério que indica, antes de mais, o imperativo de se amar incondicionalmente a Revolução, qualquer Revolução, até as Contra-Revoluções conservadoras. Não que acreditasse numa felicidade desregrada, já que talvez não exista a grande felicidade sem grandes e irredutíveis interditos. De qualquer forma, nas horas de maior solidão, Joaquim sentia sempre que o Universo era infinitamente rigoroso e por isso não se podia preocupar com a sua infelicidade.

Por seu lado, Lourenço continuava a sofrer de uma enorme falta de auto-estima. Por exemplo, achava que uma ponte magnífica o ligava a Manuela, mas uma ponte levadiça que no momento do encontro se levantava para deixar passar um navio cheio de contentores chineses. Por isso, certo dia, na cama, saiu-lhe: – Quando te penetro sei que não te toco.

– Vamos ficar em silêncio, meu amor. As palavras têm uma grande força, foi isso que me ensinaste, tu e o Joaquim, apesar de eu não gostar muito dele; mas há coisas maiores. Não temos de explicar tudo, aliás, como costumas dizer, isso é impossível. No nosso caso, temo que quanto mais falamos mais portas fechamos. As almas unem-se em silêncio.

[nunca Manuela se aproximara tanto do sublime. Dir-me-ão que não esteve assim tão perto. Certo. Mas experimentem dizer uma coisa com esta intensidade depois de um mini-orgasmo]

Apesar das dúvidas e hesitações, Lourenço e Manuela viviam algo grandioso e belo, tanto quanto se pode conseguir numa época de cinismo e mesquinhez. O problema maior estava em Lourenço querer a todo o custo discutir a autêntica verdade da relação. E creio que isto se alimentava das forças coscuvilheiras da escola. Além do corte e costura habitual, demasiado fastidioso e vulgar para o reproduzir aqui, tinham agora a mania de construir profecias, fazendo-o, técnica aprendida com o Professor Cabinba, num piscar de olhos. No olhar que lançavam para o futuro vislumbravam um quadro negro, sobretudo quando Lourenço deixasse de ser herói e Manuela visse finalmente o aventesma por quem se apaixonara. Seria ela capaz de fabricar uma indulgência à altura da situação? Ninguém acreditava nisso. Embora nas épocas de simplicidade mitológica tenham acontecido milagres que uniram heterogéneos aparentemente inconciliáveis. E quem sabe se eles não conseguiriam ficar fora das regras da vida social e amorosa (o amor acontece quase sempre em respeito pela luta de classes e repartição desigual das riquezas), sem outros desejos além de vestir e despir a tanga?

Mas o futuro, como a eternidade, só pode estar vazio, ou melhor, é feito de forma e intensidades sem conteúdos.

[“o que não podemos atingir de uma só vez devemos obtê-lo coxeando.” A escrita ensina-nos isso mesmo]

As Aventuras do Senhor Lourenço (§15 manusear a esperança com cuidado)

[hoje gostava de fazer um capítulo subtil e feliz, até porque dormi bem, não tenho dívidas e ontem convivi com pessoas amáveis. Mas, como sabem, aquilo que escreve não liga muito ao Eu]

Ninguém sabe quando pode surgir uma coisa magnífica. Além disso, Lourenço tem mais vocação para cartografar as fissuras ou fracturas da sociedade do que para apostar na excelência de obras ou gestos nascentes. Tanto mais que isso exige um optimismo quase ingénuo, enquanto Lourenço é sobretudo um pessimista, satisfeito com o nevoeiro estacionado sobre a vida.

Na altura, eu e o Joaquim mantínhamos uma distância calculada em relação ao herói do momento. Mas percebíamos bem que ele se esgotava, a intensidade histriónica com que era solicitado pelo exterior sugava-lhe a vida, já de si frágil, Lourenço tinha naturalmente pouco recursos vitais. Talvez por isso se tenha ligado ao Joaquim, vendo nele uma tábua de salvação, como quando um cego pede ajuda a outro cego para atravessar uma estrada. Enquanto a mim me manteve à distância, cheguei mesmo a sentir algum desconforto com esse abandono, mas depois percebi. Menos compreensiva foi a Manuela, fez várias queixinhas sobre o estranho magnetismo do Joaquim, “o velho gordo e malcheiroso”. Avaliação apressada, não porque Joaquim não fosse gordo ou cheirasse mal, mas era muito mais do que isso, e tinha, sem que ninguém percebesse bem porquê, uns dentes fantásticos, de actor de cinema. Claro que os “dentes de marfim” não compensavam a degradação corporal e a halitose, mas faziam um interessante contraponto com o estrabismo, se nos distraíssemos parecia que a sua cara tinha sido enxertada por um cirurgião plástico inconsistente: medíocre nos olhos, excelente nos dentes.

Joaquim acreditava na transparência, cada indivíduo devia revelar-se incondicionalmente, mas na verdade ele era o exemplo perfeito do espectáculo da solidão e do secretismo. É a partir disto que explico a sua atracção pelo bom vinho de Vila Nova de Foz Côa, essencial para combater os pruridos burgueses da identidade, e a militância trotskista. Continuava a acreditar nela, sem a praticar. Mas salvo um ou outro fim-de-semana de bebedeira alegre, tinha-se enrolado em si mesmo à medida que envelhecia e os “amanhãs que cantam” não se realizavam. “Uma vida inútil”, costumava dizer. Sentia-se arruinado, e já só acreditava em ideias individuais e na maldição da suprema arte da inconveniência. Apesar deste desencanto, Joaquim tinha vontades que podiam pegar fogo. Um incêndio de baixa intensidade capaz de capturar certas pessoas para o seu círculo de fogo. Um dia, há bastante tempo, aproximou-se de Lourenço, achou interessante vê-lo a ler um livro sobre a sobre-moralização do futebol. Diz-se que o título era: Há mais Ética no Futebol do que na Assembleia da República, de um obscuro, mas perfumado, jornalista desportivo. Lourenço não se lembra de tal livro, aliás se procurarem no Google verão que nada existe de parecido com isso. Mas Joaquim já era na época um pragmatista, para ele só havia efeitos, não coisas, muito menos verdade. Este foi o legado de 10 anos a consumir haxixe, única forma que encontrou para, ao mesmo tempo, ser severamente materialista dialéctico e um hedonista céptico.

[desculpem-me este niilismo mas o escritor deve admitir abertamente as suas preocupações mais obscuras, tanto mais que é nos romances que se aprende o verdadeiro significado da vida. E portanto não se deve saltar estes monólogos adramáticos]

Começou a frequentar o Lourenço na sala de professores (e professoras), e rapidamente houve uma comunhão franca e alegre (embora sempre frugal em Lourenço). Joaquim sabia que Lourenço não dava para muito, mas tinha um mínimo mental e alguma cultura filosófica. Não, Joaquim não era de filosofia, mas de história, um carrancudo professor de história. Lia, porém, sobretudo livros de filosofia, sempre à procura de uma redenção metafísica para a “porcaria da realidade”, que nunca mais avançava em direcção à grande e definitiva Revolução. Além disso, suportava qualquer tipo de desordem, menos a das ideias, e Lourenço podia não ser prolífico, mas era bastante coerente.

– Lourenço, aquele malandro do Kant, a pôr o sublime no religioso, hem?!

– Pois é, devia ter permanecido no campo da arte.

– Qual quê, a religião é mais revolucionária! Olha o Estado Islâmico.

– Mas não conduz à alienação?

– Só quando é mal orientada, só quando é mal orientada. Olha para Jesus, olha para a Teologia da Libertação, olha para Feuerbach, olha para aquele bispo de Setúbal. E não me entendas mal, já sabes que só falo do que pode ser, nunca do que devia ser.

– São excepções. – Lembrou-se de dizer Lourenço, em cima do toque de entrada.

– Excepções paradigmáticas, paradigmáticas.

Joaquim tinha uma enorme vantagem sobre os seus vários inimigos: desde que deixara o haxixe, o estrabismo intensificara-se (normalmente a droga cega ou desdenta, aqui Joaquim teve sorte). A ambivalência inequívoca do olhar desbaratava os seus contendores. Como se pode atacar alguém que parece olhar para dois campos da realidade? É impossível marcar o alvo. Invariavelmente, todos acabavam por desistir, os argumentos pareciam não atingir Joaquim, que, apesar dos 90 quilos, era uma figura evanescente. Vencia, pois, as discussões, mas perdia as pessoas. De todas as contendas emergia uma raiva que armadilhava mais uma ligação.

Estranhamente, isso nunca aconteceu com Lourenço. Uma namorada de adolescência, também estrábica, ensinou-o a concentrar-se apenas num olho, o “olho da amizade”, como lhe chamava. Joaquim, por seu lado, fosse pelo tal livro sobre futebol e moral ou por não ter mais ninguém, engraçou com Lourenço. Não conversavam muito, e até uma certa altura fizeram-no apenas na escola. Mas sentiam verdadeiro prazer quanto trocavam umas palavras sobre os alunos, a actualidade ou a história da filosofia. Agora que Lourenço era solicitado de todos os lados, quase não se viam, mais havia um capital de amizade que se mantinha, à espera de aparecer quando fosse necessário.

Um dia encontraram-se e discorreram sobre o tempo. A páginas tantas, Lourenço perguntou:

– A esperança é o maior dos bens ou a pior das maldições?

– Depende.

– Do quê?

– Da perspectiva.

– Isso quer dizer alguma coisa?

– Pouco, mas é a expressão que se usa nestes casos.

– Joaquim, devo ter esperança? – Perguntou Lourenço, quase em surdina para não ser ouvido pela “malta”.

– Depende.

– Do quê?

– De onde quiseres derramar a esperança.

– Numa vida normal, numa vidinha.

– Todos podem ter esperança numa vidinha, os nossos políticos trabalham com afinco para que isso seja possível.

– E nós, temos que fazer alguma coisa?

– Não, é só mantermo-nos nos eixos, na linha mediana que conduz do nascimento à morte. Se esperares outra coisa...

– O quê?

– Manteres-te no heroísmo, por exemplo.

– Sim, o que devo fazer?

– Gerires bem a esperança, elevá-la e baixá-la consoante as circunstâncias.

– Não percebo.

– No fundo, a esperança, quando se quer alguma coisa além da mediania, deve ser manuseada com muito cuidado. Foi isso que nos ensinaram os gregos. Não ter mais esperança que barriga quando vamos ao restaurante e estamos tesos. Esperar que o coração aguente, apesar dos sinais de querer transformar-se numa pedra. Baixar e subir, respectivamente. No teu caso concreto, as coisas ainda são mais difíceis já que quase nada depende de ti. Lourenço, sabes que sou teu amigo, a sério, mas tenho de te dizer que tudo isto está para lá das tuas forças, tu és uma marioneta nas mãos da turba deprimida e dos jornalistas sem escrúpulos. Devias pôr a Manuela na linha da frente, pouca coisa a perturba, gosta de aparecer, é suficientemente limitada para não deprimir, e, sobretudo, é gira que se farta.

– E eu?

– Tu ficas na retaguarda, a manusear a esperança com cuidado.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§14 aventuras amorosas)

(cont.)

Manuela atirou-se-lhe ao pescoço e proferiu em tom de máxima: – Estou perdidamente apaixonada por ti, meu amor.

– És totalmente incapaz disso. – Respondeu Lourenço, numa altivez, quase desdém, que ninguém lhe conhecia. Tanto que Manuela começou a chorar copiosamente.

– Não chores, meu amor, não chores. Digo a verdade, tu estás acima do amor, tu foste feita para ser amada, não para amar. São os outros que têm de rastejar atrás de ti – é isso que faz o amor, põe-nos de rastos –, não tu atrás deles. Tu sabes que eu não te mereço, sou tão vulgar, quando este circo passar vais sentir nojo de mim, tenho a certeza.

– Qual quê, não percebes nada, eu amo-te de verdade!

– É uma encenação, Manuela, encenas o amor como se faz nas telenovelas...

– Estás parvo?!

– ... Talvez, desculpa, mas não acredito que estejas assim tão apaixonada por mim, eu não sou homem de provocar isso nas mulheres. Olha bem para mim e terás a certeza.

– Mas eu amo-te, sinto-o, o que queres que faça, que deixe de te amar porque tu desconfias disso?

– Ok, está bem... abraça-me.

E foi assim, sem tirar nem pôr. Lourenço a elaborar um discurso sobre o amor (quem sabe se influenciado pelos Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes), Manuela com o desejo incontrolável de se fundir nele, Tristan und Isolde sem Wagner, de se atirar a ele como alguém se atira da janela porque quer esmagar-se no alcatrão.

Para justificar o seu estilo relacional, Lourenço usava uma frase de O Homem Sem Qualidades: “tudo o que pensamos se resume a simpatia ou antipatia.” Assim, sendo ele essencialmente o mesmo, uma cascata de simpatia tinha alterado radicalmente a maneira como era considerado na escola e no mundo. Estava em ponto-de-rebuçado, podia ter comido todas, ou quase todas, as colegas, não fossem elas em geral pouco apetitosas; colocado todos os colegas debaixo da sua perspectiva. Talvez mesmo pervertido as mais fervorosamente crentes na Transcendência, de Deus, do PCP ou de um cacique de sala-de-professores; tinha agora a força de anular, com um gesto apenas, qualquer grande narrativa de verdade e felicidade, concentrava em si todo o campo épico, trata-se da velha identificação hipnótica entre o chefe ou herói e as massas. A sua paixão pela Manuela exigia, aliás, que multiplicasse as aventuras amorosas. “Trai a tua paixão se não queres que ela te desbarate.”, costumava dizer-me. Mas ficou quieto, ou quase, numa noite de jantar comemorativo, organizado pela escola em sua honra, foi levado para o carro pela Directora, mulher que no século passado era bela e que tinha recomeçado a ir ao ginásio.

– Deixa-me chupar-te, por favor, quero engolir a tua seiva. – Disse ela de rompante, como se todas as convenções do namoro tivessem desaparecido sob a vertigem alcoólica. 

[Nunca bebam álcool se quiserem evitar um engate piroso. Troquem a poesia pela lógica, o whisky pela água, uma feijoada por um prato com arroz. Usem terminologia biológica ou psicanalítica, jamais as metáforas histriónicas da literatura ou a vulgaridade anarrativa dos filmes pornográficos. O álcool armadilha os fragmentos do discurso amoroso]

Anabela, era assim que se chamava a Directora, abriu-lhe as calças e pôs o sexo murcho de Lourenço na boca. As banhas laterais empurravam com força o volante e o seio direito pousou na perna do Lourenço, enquanto a sua mão, também direita, pegava na base do pénis e boca e língua tentavam reanimar o pequeno verme.

Cerca de vinte minutos depois deu-se a conclusão espasmódica. Foi o seio direito que conseguiu a proeza, mais do que a felação em si mesma ou as frases elegíacas e porcas, à vez, que Anabela enviou a Lourenço, embaraçado. Ela continuava atormentada com a morte do marido, a quem enganou alegremente. Não pela morte em si, ele morrera há muito para ela. Mas porque quando decidiu passar ao inorgânico o fez na cama, junto a ela, dizendo estas palavras: “Tu és uma puta, Anabela, és uma puta sem remissão, como o meu amor por ti.” Não que o marido se importasse com as escapadelas da mulher, foi pura vingança, quis fazê-la sofrer pelo menos tanto como ele sofrera por amá-la acima das suas forças, tanto que teve de morrer.

Uma marca de chocolate, um placebo médico contra o reumatismo, uma editora especializada em livros de auto-ajuda, um produtor de vinho de mesa ou, entre muitos outros, um estofador industrial quiseram contratar Lourenço. Disse-lhe várias vezes que devia arranjar um agente que tratasse disso, enchendo-o de dinheiro. Mas Lourenço era um mole que gostava do imperativo categórico kantiano, um moralista falido e meio banana. Recusou tudo, continuou nas aulas a mandar calar adolescentes ranhosos a quem nem o seu acto heróico impunha respeito. Manteve uma vidinha insuflada provisoriamente de excentricidades. “Os balões cheios esvaziam-se”, dizia-lhe o colega Joaquim, lobo-do-mar da escola, antigo revolucionário capaz de prometer a junção do Céu com a Terra.

– Continua a soprar, Lourenço, não deixes que isso perda gás, olha o que me aconteceu. – Disse Joaquim.

– Está muito cheio, não consigo pôr mais ar dentro, não tenho pulmões para isso. – Respondeu Lourenço.

– Mas continua, vê se continuas, não queiras ficar como eu, um diabético amargurado a quem os miúdos chamam “velho halitose”.

– Não chamam nada, tu és uma referência. – Disse Lourenço, sentindo pena do Joaquim.

– Claro que chamam, vejo pior mas continuo a ouvir bem. E depois, é mesmo assim, Cronos já não come os filhos, são os filhos que o comem a ele. E tu aproveita, come aí as gajas todas, ou então casa com a Manuela, aos 50 ainda será boa, mesmo boa.

[Joaquim era o mais inteligente dos professores, chegava à verdade, seja lá isso o que for, duas vezes mais rapidamente do que os seus colegas. Mas isso sempre o prejudicou mais do que beneficiou. Numa escola, o ecossistema dos professores e funcionários é pequeno, está envelhecido e fixou-se há pelo menos 10 anos, por isso as paixões e os ódios são mais profundos, têm a enorme importância de não se lhe poder escapar]

Lourenço indeciso, a querer voltar à transparência, uma existência de baixa intensidade, contemplativo por preguiça, cansado da vida. 

(cont.)

Mais do que prometia a força humana

Love (2015), Gaspar Noé

Love (2015), Gaspar Noé

 A apudorada Vanessa malbarateava virtus e gravitas, valores abendiçoados pelo romano Cícero, pena padecer de uma anormal esquentação nas pernaças, de uma voragem sexual estimulada por uma propensão natural para a vagabundagem. Patrocinar comezaina em casa de pasto de qualidade superior, furos acima do patamar «o freguês manja a aveia do cavalo», abonava acasalamento ao macho pouco alfa, e tal não surpreendia os mais vigilantes, mormente o filho da garota, adaptado a figuras tristes. Anões, marrecos, pernetas, violadores, agarrados à droga, malabaristas, palhaços de circo, assaltantes e outras sequiosas vedetas locais, cuja certidão de casamento elegia para proteico refogado sexual, entupiam as vias de acesso ao quarto de Vanessa, e frequentes eram as ocasiões em que um valdevinos esbarrava noutro e estrondavam enciumadas altercações, trocas de coices, navalhadas, ossos fracturados, estupidezes derivadas da defesa da honra. A misse barateira, bela de um género verrugoso, floreada por uma rede de rugas, varizes, fungos e cáries, jogava nos botequins com as chagadas pernas cruzadas, olhos libidinosos, semicerrados, e misteriosos sorrisos amarelos, perfumados de cigarro, prenunciadores de cópula. Paga-me um copo, sugeria a sedutora ao ouvido peludo do galã, jumento. Homens com h grande, casados, revestidos de banha e de camisas de flanela aos quadrados atulhadas de resmas de facturas e de recibos nos bolsos, rabiscadores de equações matemáticas ou de versalhada em toalhas de mesa de restaurantes com esferográfica a publicitar logotipos de empresas de construção civil ou de marcas de eletrodomésticos, capacitados de talentos sexuais recém-adquiridos ou redescobertos, somente menorizados por uma flácida ou murcha incapacidade de cumprir os deveres matrimoniais associados ao prazer, arrancadores de cuecas de fio dental às mordiscadelas, lançadores de lapadas ao rosto, dadores de fingidos orgasmos múltiplos, era com esta linhagem de mamíferos que Vanessita se relacionava.