Um pai florido

Eu e as minhas irmãs nascemos na praia e ali vivemos até a irmã mais nova fazer um ano: aprendeu a dar os primeiros passos em cima da areia e a nossa mãe resolveu que a sua educação estava completa. Que tinha dentro dela toda a praia que podia ter. E se ela tinha, que era a mais nova, a acabada de nascer, com mais razão teríamos nós.

Quando depois da nossa mãe morrer vendemos a casa na cidade, podíamos ter escolhido outro sítio qualquer para morar que não este. Podia não ter sido um lugar de colinas verdes; uma quinta; patos e galinhas, tudo coisas e seres que não estão inscritos no nosso código. No nosso código está a areia e o mar. Conchas e pedras. Peixes e algas. Uma extensão de areia e mar.

Não temos memória dessa praia onde nascemos e crescemos. Só a conhecemos pelas histórias da mãe. Ela conta que vivíamos numa cabana de madeira, precária, que todos os anos se desmoronava; os nossos vizinhos eram pescadores. Vivíamos de comer peixe e marisco. Ela pescava. Tinha uma traineira. Outras vezes, um barquinho chamado Verde Mar ou Rosa AnaMaria; outras, apenas uma cana de pesca. Outras ainda, as mãos nuas.

Nunca conta sobre o pai. Quanto ao pai há estas hipóteses: temos as três o mesmo pai  - as duas mais velhas têm o mesmo pai e a mais nova outro- a do meio e mais nova têm o mesmo pai e a mais velha outro – a mais velha e a mais nova tem o mesmo pai e a do meio outro -  cada uma tem o seu.

Apesar de o pai poder ser três, nós imaginamo-lo com um único rosto e uma barba florida.

Nunca voltámos a essa praia onde começámos a vida e onde nos alimentávamos de peixe e conquilhas.

Nem nunca mais vimos mar algum, só em filmes e fotografias. Mas há quanto tempo não vemos um filme! A irmã do meio pintou um mar, diz que é para não se esquecer. Nada prova que o mar seja aquilo. A mãe diz que somos feitas de areia, que pelos sítios onde passamos deixamos pegadas.

Comprámos para viver uma quinta que se situa a quatro quilómetros da praia onde nascemos.

A mãe diz que o mar nos corre por dentro, que o sal nos há-de matar. Antes de comprarmos a quinta, comprámos um mapa. Localizámos a praia, espetámos um alfinete amarelo, aqui é a praia onde nascemos.

Mesmo ao pé havia uma mancha verde, espetámos um alfinete vermelho. Nessa mancha, informámo-nos depois, encontrava-se esta e outras quintas enfiadas entre colinas, a aldeia da taberna, havia os velhos e o cão zarolho, as árvores e as raposas, lebres e escalavardos, um ou dois javalis, cães selvagens, rosas moribundas, flores silvestres de perfeita saúde; alguém a caminhar na direção do verde, era Dimitri o jardineiro.

Vivemos a exatamente quatro quilómetros da praia onde nascemos, mas nunca lá fomos. A praia significa para nós o mesmo que para outra pessoa o país natal distante, situado em um outro continente, onde nunca mais voltará. Ou por ser demasiado longe, ou por medo de que seja realmente tão longe que mesmo que volte ultrapassando a distância, já não há de encontrar o que procura. Tão longe como as coisas que não existem.

Como para nós a praia da memória das histórias da mãe.

De vez em quando chega até aqui, à nossa casa em ruínas, o cheiro familiar do mar. É um cheiro que nos confunde, nos alegra e enche de melancolia. O ar torna-se húmido e ouve-se o barulho das ondas. O barulho das ondas que não vemos enerva-nos: não sabemos se tivemos um, dois ou três pais, se algum deles nos ensinou a andar enquanto a mãe andava no mar atirando a rede.

Nesses dias de neblina em que o nosso país nos chama, passeamos profundamente, cegamente pelo campo. O cheiro da maresia tudo cobre.

Pensamos naquilo que fomos, temos um passado, sabemo-lo bem, ele vem ter connosco em forma de cheiro e som - envolve-nos, tortura-nos, amargura-nos, adoça-nos - mas nós nunca vamos ter com ele.

Somos presente e futuro.


A taberna da aldeia

Queixamo-nos a Dimitri das nossas idas desgastantes à taberna da aldeia.

Vamos lá uma vez por mês para socializar, embora a aldeia só tenha velhos, oito velhas e dois velhos e nenhum goste de nós.

Socializar é importante e difícil, mas nós não somos bichos e perseveramos. Neste caso é particularmente difícil, a hostilidade é manifesta. Quando estamos quase a chegar ao largo da fonte, sentimos tanto medo que nos agarramos umas às outras para não cair. Dizemos boa tarde aos velhos perfilados à entrada da taberna, não ouvimos resposta, só sentimos o rancor.

Nós as três juntas não somamos nem de perto a idade da velha mais nova da aldeia.

Levamos sempre uma lista das coisas que fingimos precisar. Quando uma de nós tira o papel da bolsinha bordada e o estica para ler, treme tanto que faz pena às outras duas. O taberneiro nunca tem nada do que pedimos. A mais corajosa de nós, às vezes aponta para a coisa em questão que estamos a ver mesmo à nossa frente, mas ele diz furando-nos as caras com os olhar “já está vendida” e nós saímos de lá sempre de mãos vazias. Os velhos zelosos à porta confirmam que não levamos nada. O cão, de três patas e zarolho, rosna à nossa passagem, que é de longe a coisa mais simpática que nos acontece quando vamos à aldeia.

Dimitri o jardineiro sossega-nos e invariavelmente nos diz que é por sermos jovens e bonitas. Uma questão de inveja e ressentimento. Hoje, contudo, acrescentou: bem podiam retirar da lista das compras os tampões higiénicos. É uma afronta que fazem às mulheres idosas, como se para além da óbvia beleza ainda lhes quisessem atirar à cara a juventude perdida. Uma arrogância desnecessária. Claro que a taberna não tem tampões, porque haveria de ter, é uma aldeia que não precisa deles. E deu uma sprayada de água nas rosas.

Dimitri cuida das rosas e agora deu mostra de querer cuidar de nós, corrigir-nos os defeitos, aumentar-nos a beleza interior.

Chamei as irmãs para uma reunião urgente.

Podíamos nós despedir Dmitri? Era ele nosso empregado? Não tínhamos já chegado à conclusão que as rosas não eram nossas, mas delas próprias? Nesse caso, ele não trabalhava para nós mas para si mesmo, para sua satisfação pessoal, não sendo as rosas senão um meio de alcançar um certo grau de felicidade. Assim sendo, Dimitri perdia o estatuto de trabalhador, tendo de nos devolver não só o dinheiro que lhe havíamos pago ao longo destes anos como ainda acrescentar o valor justo por todo o tempo que tem usufruído na nossa quinta do prazer de cuidar das rosas. Um valor alto, obviamente, porque as rosas são de grande qualidade e ele retira alegria bastante do trabalho que faz. E se quiser continuar por cá terá de continuar a pagar. Deve querer. Mas virá como cliente, como alguém que frequenta um templo de meditação ou usufrui de um spa.

Feitas as contas descobrimos que Dimitri nos deve uma pequena fortuna, com a qual podemos saldar parcialmente a dívida ao pretendente da irmã do meio para que ele deixe de nos importunar.

Findo o plenário, a irmã do meio recolheu ao quarto agarrada à cabeça, a irmã mais nova ficou a olhar para o ar e eu saí para o jardim.

As rosas estavam impecáveis, direitas, firmes, com espinhos agressivos a proteger-lhes a beleza. Bem cuidadas, eram de facto a melhor coisa da quinta. Parti o caule da mais alta e com a corola gorda na mão, arranquei-lhe as pétalas uma a uma e deixei-as cair, manchando o chão de vermelho.

Se eu e as minhas irmãs quisermos atirar o sangue à cara de alguém, atiramos, ainda mais se for para atirá-lo a velhas ameixas secas, ventres murchos. Não viemos para o campo mais longínquo para alguém nos chamar a atenção. Muito menos um homem. Menos ainda um cliente.

Amanhã temos de fazer outra reunião para decidir quem irá dar todas estas novidades a Dimitri.


Eu e as Minhas Irmãs: Meditação sobre Dimitri

Do lado de dentro espio Dimitri, o jardineiro. Há muito que o observo. Ele é incansável no modo como trata as rosas. Constante, paciente, não espera nada em troca a não ser a beleza e a saúde delas.  Nem mesmo sei se lhe pagamos. É um homem como deve ser. 

Nunca entrou em nossa casa. Nem ele pediu nem nós o convidámos. Espio Dimitri, que alisa as pétalas de uma rosa; não sabe que eu o observo ou, se sabe, não o demonstra.  

Não está escrito em lado nenhum que não o possamos convidar. Imagino um primeiro dia em que isso acontecerá. Dir-lhe-emos que temos a casa em pedaços e é verdade e ele sabe que sim. Ocupar-se-á de pequenos arranjos: tapar rachas, arranjar portas, substituir janelas, reparar torneiras, essas pequenas coisas que sempre são precisas e nós não sabemos nem queremos fazer. Podemos confiar nele, na sua delicadeza masculina para saber que respeitará o trabalho laborioso das aranhas, os caminhos por onde passa a pequena osga, o rato que se aninha atrás do frigorífico, nada fará nada que nos desgoste.

Com tanta coisa partida, pedir-lhe-emos mais do que uma vez para entrar. Ele apanhará os vidros espalhados pelo chão, consertará, remendará, tornará a nossa vida mais fácil. 

E um dia convidá-lo-emos para jantar. Poremos a mesa com desvelo: abriremos as gavetas e tiraremos de dentro a toalha e os guardanapos de linho. Os copos de cristal, o melhor faqueiro. Velas vermelhas em castiçais de prata. Haverá carne e vinho para Dimitri.  Sentar-nos-emos à mesa e, como boas anfitriãs, fingiremos que o acompanhamos. Debicaremos as batatas que não tiverem tocado na carne. 

Repetiremos o convite. Uma noite, a irmã do meio tocará piano e cantaremos.

Outra noite, eu poderei dançar. Recitaremos poesia. Uma de nós nunca deixará esvaziar o seu copo.

Nessa noite será já muito tarde para Dimitri regressar a casa. Ele estará tonto, deitá-lo-emos no quarto de hóspedes.

E haverá uma noite, em que depois do jantar, da poesia e do vinho, Dimitri me acompanhará ao quarto. 

Assim se repetirá por outras noites. Até que um dia se irá deitar com a irmã do meio. E uma noite virá em que a passará com a mais nova.

E depois trocaremos, voltamos ao princípio. Comigo, com a do meio, com a mais nova. Comigo, com a do meio, com a mais nova. Sempre a rodar. Para que Dimitri desfrute de nós por igual e nós de Dimitri.

Nós abraçámos a vida parca. Um homem para as três chega perfeitamente.

A lebre na barriga

Quando fugi da colina sem o aviso prévio dos 15 dias, sem dar um ciao aos animais 

o homem do monte, aliado à Liga dos Direitos dos Bichos 

pôs a polícia no meu encalço por abandono premeditado. 

Desse modo, antes de mergulhar no doce anonimato da cidade, tive de mudar algumas das minhas características pessoais. Para começar, não que isso interesse, tornei-me platinada e mudei de nome. 

No centro de emprego onde me desloquei perguntaram-me o que sabia fazer,  

olhar e escutar, venho do campo, acrescentei envergonhada. 

Não havia nada para quem chega do campo e sabe olhar e escutar, falaram-me da crise. 

Imaginava lá que a crise era argumento, na colina, no campo é sempre crise, não há fins-de-semana, há sempre o que fazer, todos os dias são luta pela sobrevivência. 

Aí ela lembrou-se: tenho vidros para lavar se achar que pode usar os braços,  

eu achava e usei-os tão bem que me recomendou a outras senhoras. 

Pagam-me em arroz e embalagens de comida que sobram dos jantares que dão. 

Nada me atinge. 

Boas senhoras, oferecem-me por pura gentileza, para além do pagamento que me é devido, outro suplementar e afogam-me em écharpes de seda coloridas azuis verdes laranjas estampadas 

a minha saudade traduz: asas de colibri borboleta bico de lacre 

lavo com elas os vidros. 

Quando me encontro pensativa e me interrogo sobre o tão famigerado sentido da vida sinto uma coisa na barriga aos pulos, mas logo passa 

quem comeu a companheira das caminhadas não tem nada que pensar. 

 

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