As tias velhas, os primos rudes

Todos ali ao redor da mesa grande, feita da emenda de três ou quatro pequenas: as tias velhas e os primos rudes que fazia tempos não via. As tias velhas com os resmungos lá delas e os primos rudes com os assuntos sobre cachorros, cavalos e exército, bailes, brigas e mulheres. As tias velhas envolvidas com rabugices. Os primos rudes com a rudeza da comilança: feijões, carnes e batatas. A dança das cervejas num eterno abrir de garrafas. Os cuscos, sob a improvisada mesa, rosnando na disputa pelos ossos pelados que os rudes primos, para total contrariedade das velhas tias, jogavam ao chão. As conversas lá deles em palavras atiradas à mesa, calando na madeira encarquilhada, com suas ranhuras disfarçadas pela tinta verde carregada: pintura das velhas. O assunto lá deles em palavras fáceis e não-pensadas, jogadas ao léu. Conversa lá deles, coisas lá deles que me entravam num ouvido e me saíam no outro. A revoltante dança das comidas nas bocas abertas ao comer, nas bocas cheias ao falar. O comprido dia que não passava, com seu interminável almoço: domingo. Na cabeceira, o velho Albano olhava a todos, que nem o notavam – seria seu último almoço no seio do que restava daquilo que por convenção ou comodismo, chamávamos família. Eu, que por outros e óbvios motivos também não era notado, percebi que ele se despedia: olhava com vagar e olhos úmidos um a um, enquanto todos se preocupavam em destrinchar as carnes, pelar os espetos, secar as garrafas… Depois, à tarde, os rudes primos, ou pelo menos a maioria deles, iria se entregar à rudeza do futebol lá deles, na várzea lá deles, e as velhas se entregariam a fuxicos – não de roupas – do viver alheio, e ao tricô. Tricotavam também o viver do próximo, mas aí, só se o próximo estivesse longe… Ah, as tias velhas! O que dizer das tias velhas? Ainda agora fechei os olhos e tudo o que me veio das velhas foi o falar dos outros, o tricô e um cheiro enjoativo de talco. Ah, os primos rudes! O que dizer dos primos rudes? Fechando os olhos o que vem são as peladas no campinho de terra vermelha – naquele tempo, tempo lá da nossa infância, não percebia os maus modos que hoje me saltam aos olhos. Minha presença naqueles almoços foi se escasseando cada vez mais até que… não mais apareci. E ficou por isso mesmo. O velho Albano olhava a todos, que nem o notavam – morreria dois dias depois daquele churrasco de domingo. Ele não percebeu que eu notei a despedida silenciosa. A morte do velho e a vidinha lá dos outros. Tudo ao mesmo tempo. Tudo se misturando ali na mesma mesa enjambrada, pintada com sobras de tinta esmalte. As tias velhas pintavam tudo o que desse na telha lá delas com o que sobrava da pintura anual das casas: mesas, cadeiras, cristaleiras, tudo. Da mesma cor das paredes. Terça-feira no final da tarde foi-se o velho Albano. Na quarta, no enterro, chovia chuva fina fininha que entranhava nos ponchos e nos chapéus, umedecia bombachas e lustrava botas. As tias choravam copiosamente com outras velhas conhecidas, e os primos, com outros rudes conhecidos, planejavam caçadas e jogos de bola e bocha em meio à pilhéria mal e porcamente disfarçada. Era início de julho e o vento no alto do campo-santo zunia-me nas orelhas. Quando baixaram o esquife joguei uma rosa branca pro velho, e como ele fez no domingo, em silêncio me despedi.


Obediência 

Haviam-lhe dito que um descanso. E Pedro que sim, que uma paz, embora qualquer som, mesmo que só a antecipação, o arrastar miúdo que vem antes de falarem, o fizesse embater em estranheza. 

Na noite, ninguém que uma palavra. Percebera-o a um toque de batuta que ninguém deu, mas que é o que há quando a mínima suspeição. A busca azeda do fim em que se metera o avô findara. E que com isso um descanso. À reação de Pedro, uma mão toda decisão com um hipnótico, com um apagão. 

Acordara na manhã seguinte montada, igual. Gente como se marioneta, carros rotineiros, ponteiros no sentido comandado de sempre. E com isso a ida para a escola, como se dia. Como se dia, imagine-se. 

(O meu avô morre, procura-se na morte, e há quem coma, quem trabalhe, quem como se nada, como antes de tudo.) 

O absurdo, implodido em elasticidade, prolongara-se anos atrapalhados em anos. E nunca a certeza do que acontecera porque a mão em ordem com o hipnótico e com isso os músculos travados. E a manhã como se fosse possível voltar a ser dia depois de o avô. 

(E a terra? Que restos? Braços ainda que abraçar? Olhos que conforto?) 

Mais anos enovelados noutros numa incerteza de traça de ter de facto havido morte, porque só a ausência, só o nunca mais o ter visto, vendas, partilhas, uma força centrífuga em tios, primos. 

É hoje 8 de dezembro de 2013. Agora o corpo em resignação de uma escrita. Estático. Alguns movimentos desde 23 de março de 1997, mas só coisa de ir passando. Haviam-lhe dito que também Deus e que com isso alguma coisa, mas Pedro que Não, que Se Deus, refinadíssimo, a um deslize, criara a morte, por que motivo a destruiria? Se os despojos de um corpo criação Dele, por que motivo a reconstrução do que está dentro? Por penitência Sua?! E que fazer com o absurdo de tudo isso? 

(Avô?) 

Agora nenhuma paz, todos os sons. Com isso a escrita. 

(Des)sincronia 

Que tinha vindo do lado em que as coisas (não) são de facto, em que os contornos (pouco) exatos porque a criação, daí a festa, a ordem certa, certa, cega, cega, na fila para os braços à volta do corpo da cabeça que chegara. 

Um estremecer das unhas dos pés ao cimo estendia-se. Minto, não se estendia, tremia todo um com o susto de tantos dentes a afastarem lábios. Um, outro, outro e outro, num encaixe perfeito, arestas sólidas. Diferentes em tudo do sítio de onde viera, julgo, moldados, imitados, ao contrário de no outro lado, onde tudo único porque o espaço da invenção. 

Numa euforia estridente, quase em crise, juro-te, que deste lado, do real, sim, é que o queriam, que agora sim, um como os outros. Ah, sim, com isso a meta cortada de estar só. De modo que as felicitações, os dentes de arraial na infância, os braços à roda da cabeça entorpecida. 

Conto-te isto porque fui enchendo o balão de compaixão pelo homem a ponto de não conseguir agora sozinha, porque até na compaixão há diâmetro limite. Eu sentada, as pernas moles da surpresa, e isto tudo na minha sala, acredita. Conto-te como se agora, que é o que se faz quando a teimosia da memória, quando um guizo constante do que se passou. 

De súbito, volta-se e a indignação começa a inchar na multidão que ele, estou certa, não reconhece, porque as feições em pedra inerte de quem na indiferença. Dá as costas, o pescoço na sua missão de segurar a cabeça, a esforços sisifianos, decerto porque o desânimo da repetição dos outros aos outros, do real, corcunda de exatidões a uma medida certinha. Costas dadas porque, penso, a repugnância pelos braços de quem felicita a vinda do fantástico para o real. Estou certa de que lhe pesa a certeza de neste lado não poder ser por inteiro, de no despertar todos escorregarem para a indignação um dia. 

Eu de pernas e braços obedientes de gravidade. Já não bem neste lado, já um adormecimento. Sim, eu já no outro lado, penso. Ouves-me ainda? Dizia-te que eu já não aqui, de modo que a história só isto. E eu em preces para que o homem de novo no adormecimento porque a minha compreensão possível do fantástico como o espaço em que ninguém a sós. Ouves-me? 


Revoada de trinta-réis

O cheiro das goiabas invadia a casa, de assalto, como enxame de vespas. Era um cheiro doce de arder as narinas e dar água na boca. Sara havia arrumado tudo com esmero redobrado. Varrera a casa com vassoura de alecrim, passara pedra na chapa do fogão Venax nº 2, ariara a chaleira onde mais tarde aqueceria a água pro mate, juntara, ao redor da casa, gravetos para o fogo, e do paiol trouxera palhas, algumas das quais amaciara, passando por várias vezes as costas da faca. Quanto mais macias melhores são para a feitura dos cigarros. Flores do campo, brancas, amarelas e azuis, sobre a tosca mesa da sala. Ranhuras disfarçadas pela surrada, porém limpinha, toalha xadrez. Agora era sentar no alpendre, na cadeira de balanço de encosto alto e imponente e esperar. Faria crochê contornando uns panos de copa duplamente alvejados com Quiboa, e esperaria. Alaor não tardaria a chegar, suado, cansado, poeira nos vincos do rosto e do pescoço, cabelos ensebados sob o chapéu de palha. Traria pra ela algumas pitangas das grandes ou algumas guabirobas, um ovinho colorido de passarinho, que não chocou… Ele sempre tinha um carinho nas mãos calejadas. Era só esperar. Não tardaria a casa teria vida. Lampião aceso, fumaça na chaminé, conversas e cheiro de comida que ela prepararia com amor. Depois, era lavar a louça, passar a lixa nos garrões dele e com a pontinha do canivete de cortar fumo desencardiria-lhe as unhas. Deitariam, e na cama-de-vento, conversariam um pouco mais sobre o dia que passou e o próximo que viria. O cheiro das goiabas parece agora está no colchão de palhas, no travesseiro de penas e nos lençóis. No alpendre, sentada na cadeira de balanço de encosto alto e imponente, Sara esperou por três noites e dois dias até ser visitada pelo delegado. Da cozinha, o cheiro das goiabas podres infestava a casa, de assalto, como enxame de vespas… Ao longe, ao movimento dos homens que traziam o corpo na padiola improvisada por galhos de guamirim, revoada de trinta-réis.


Prece

O cão tinha desaparecido na manhã anterior. Ele só percebeu ao fim da tarde. Procurou-o pelo bairro e até ao porto, entrou pelas plantações e desceu até ao canal. Sem saber porquê intuiu que o animal estava morto, que tinha desaparecido de vez. Ao crepúsculo caminhou ao longo da estrada e esperou dar com o corpo na berma mas não encontrou nada. No caminho de volta ocorreram-lhe imagens dos cães de Pompeia, paralisados nos seus moldes de gesso, com os resíduos das coleiras que atravessaram os séculos à volta do pescoço, a marca de terem ficado acorrentados durante a erupção. O seu cão nunca seria encontrado preso a uma corrente. Tinha-o deixado sempre solto, mesmo se não esperava um cataclismo. Seu talvez fosse um exagero. Quem é de quem vai sendo cada vez mais difícil de dizer. No calor sufocante encheu duas tigelas de água e uma de comida. Sentou-se ao computador, procurou as fotografias mais adequadas, imprimiu cartazes. Deitou-se ao comprido no sofá e tentou não pensar no desaparecimento do cão. Pensou que se distraísse talvez queimasse tempo até ele voltar. Onde poderia ter ele ido ou quem o podia ter levado. Imaginou que tivesse sido o vizinho, por causa do cão ladrar à noite, ou que alguém o tivesse visto na rua, sem coleira e sem nada que o identificasse como pertencendo a alguém, e que o pudesse simplesmente ter levado. Mas ali toda a gente conhecia o cão. Toda a gente sabia que cão era aquele. Um cão não se esvanece simplesmente no ar, o seu desaparecimento não é o da ordem do desaparecimento de um fruto ou de insecto ou de um peixe. Um cão é uma presença funda e o seu desaparecimento é o da ordem do das criaturas vivas. O dano causado pelo seu desaparecimento é então da ordem da destruição. Marco Aurélio escreve nas Meditações que todas as criaturas morrem às carradas todos os dias, no vasto universo, que o desaparecimento de uma só vida, dada a imensidão do tempo e do cosmo, é insignificante. Que, até, sendo o universo tão vasto e não sendo a vida o que dela se espera, o melhor é buscar o seu fim, sem grande angústia, com uma certa dignidade natural. Enquanto se encaminhava para a casa de banho pensou se um imperador de Roma, autor de um livro não muito original e nem sequer particularmente imaginativo ou bem escrito, que ainda por cima desenvolvia circularmente apenas dois ou três argumentos limitados, alguma vez tinha cometido a íntima fraqueza de ter um cão preferido. Pois é. Aquela coisa. A ferida que o amor dos outros deixa em nós, que é, no tempo em que eles estão perto, essa antecipação que precede a longa aprendizagem da sua ausência. Ao mesmo tempo celebração e dor. No calor pontuado pelo canto das cigarras ouviu, ao longe, na mina, o vento a assobiar nas gruas. O alarme de um carro disparou ao longe. Ouviu as portas baterem. No interior da casa, as mãos tocaram o frio da torneira e água fria correu no chuveiro. Água fria lembrava-o sempre da infância, de tardes passadas a nadar no rio, irmãos e bicicletas. No silêncio do crepúsculo aquela pequena casa tinha ficado mesmo vazia. Nem sequer tinha dado pelas horas passarem. Fechou os olhos com força e esperou ouvir o som familiar do cão lá fora ao redor da água e da comida.