somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
«Há dez anos que escrevo o mesmo poema», de Raquel Nobre Guerra, lido por Nuno Brito
/O poema pode ser encontrado aqui.
Constará do Caderno 2.
«Enleados» de Isabel Milhanas Machado
/O texto pode ser lido aqui.
Constará do Caderno 2, a ser publicado brevemente.
João Miguel Henriques lê «Terceiro poema húngaro»
/O poema pode ser lido aqui.
Constará do Caderno 2, a ser publicado brevemente.
Atlas do corpo e da imaginação
/Há uma paixão pelo grande. Se exceptuarmos Jerusalém, caso à parte, pelo Prémio Saramago, os livros de Gonçalo M. Tavares [GMT] que a crítica escolheu canonizar foram dois volumes pesados e descaradamente ambiciosos: um épico e um atlas. A sua produção de menor fôlego, salvo, porventura, o projecto O Bairro (mas mesmo este só enquanto colectivo), tem sido relegada para segundo plano.[1] Não que não se reconheça ali o talento do autor, que é admitido; simplesmente, perante um escritor tão efervescente, e que já ingressou no panteão literário, é vertiginosa a tentação de isolar «as grandes obras» – expressão levada à letra – que é dever de todo o cidadão da república das letras conhecer. O novíssimo Atlas apresentava-se como um candidato assaz bem-posicionado para integrar tal grupo, tendo a vantagem de se oferecer como uma súmula do pensamento e temas do autor. De facto, é previsível que, doravante, nenhum trabalho académico sobre GMT deixe de o citar (o Atlas é a tese que todos queriam ter escrito).
Ficou já claro que preferimos a obra breve de GMT, a mais fiel ao seu amor pelo fragmento. O Atlas tem sido descrito precisamente como uma colecção de fragmentos grandes, uma enciclopédia que versa sobre uma mão-cheia de tópicos, avançando poucas conclusões, apesar da síntese final de quase duas dezenas de páginas, incompreensível, porém, senão em diálogo com a obra, bem longe, portanto, de uma lista de teses (podemos compará-la, de alguma forma, com o diagrama que fecha o Uma Viagem à Índia: ambos os suplementos funcionam como pegadas — não por acaso o do épico se subintitulava um itinerário). O Atlas não é um ensaio; tal palavra só se lhe adequa se estivermos não tanto a procurar categorizá-lo – os livros de GMT já há muito se percebeu serem impossíveis de arrumar nas gavetas clássicas – mas a descrever o seu método: tal como um actor tenta acertar com a personagem, experimentando modos diversos de lhe dar corpo (e esta ideia de dar corpo é o movimento central da obra), assim GMT com os seus objectos, numa abordagem vindicada na Parte I. A resultante lassidão[2] do pensamento exposto, com ângulos mortos, não afecta a coerência geral do raciocínio – percebem-se com clareza as linhas de força da mundivisão do autor – ainda que, num certo sentido, lhe diminua a força, prejuízo que a forma pseudo-fragmentária do texto contrabalança, em parte, pelas virtudes inerentes a tal estilo.
Há, como, de resto, já era visível nos romances de GMT, um enorme esforço de tudo tornar carne, em interacção com os planos do tempo e do espaço. Essa tentativa é, dependendo dos casos, mais, ou menos, bem conseguida, mas nunca vã. A noção da incapacidade final em concretizar tal programa é o que está na base de algumas das principais aporias do livro. Porque, porém, como sublinhámos, o Atlas não é um tratado, isso é só marginalmente problemático. Nada do caminho feito se perde. Dois autores, como divindades tutelares, acompanham-nos ao longo de toda a obra: Wittgenstein e Bachelard. Muitos outros são citados em abundância, como Barthes ou Arendt, também do campo da literatura, nomeadamente Clarice Lispector, Vergílio Ferreira e Robert Musil. Ressente-se, porém, uma ausência: Espinosa, o qual só é mencionado a certo ponto, e via Deleuze. Trata-se de uma omissão difícil de explicar: o filósofo serviria impecavelmente o projecto do autor.
O Atlas é atravessado por mil notas (o número redondo é o sinal mais explícito de um rigoroso trabalho de edição). Estas, quando não servem meramente para dar a indicação bibliográfica de um passo citado (há-os a mais, a nossa ver: algumas secções são canibalísticas em demasia), são usadas frequentemente para convocar obras literárias, apresentando a ficção como uma modalidade do pensamento (cf. Platão). Tais cruzamentos são do mais interessante que o Atlas oferece. O rodapé constitui um elemento que, como uma caixa de ressonância, amplifica o texto principal, encetando com este um diálogo próprio. O corpo de texto estabelece ainda uma relação privilegiada com as fotografias que o emolduram, da autoria d’Os Espacialistas. Estas afirmam a singularidade do livro, mais: constituem, em si mesmas, um conjunto passível de leitura autónoma. Tem-se exagerado esta dimensão, contudo: é rara a página em que a imagem não se liga ao texto, ainda que de maneira muito oblíqua, um pouco como as entradas na Biblioteca podiam surgir a partir de uma palavra apenas na obra do escritor. Um exemplo: a capa. Um homem segurando um círculo branco gigante: Atlas, o titã, carregando o mundo e dando o seu nome ao livro. As imagens, por sua vez, relacionam-se não só com o texto mas também com as legendas que GMT elaborou para elas e que, tantas vezes, corrigem o nosso olhar. Por fim, importa sublinhar a ligação entre o Atlas e a tese de doutoramento que lhe deu origem: apesar do facto ser referido em todas as recensões e entrevistas com o autor, falta ainda confrontar a dissertação com o livro publicado, exercício que proporcionará uma janela preciosa para o modus scribendi de GMT. Todas estas ligações, que combatem a fixação de um sentido para a obra pela multiplicação das possibilidades de relação entre as suas partes, não espantam num texto que é uma apologia insistente do emparelhamento exogâmico (se a metáfora não é violenta demais) de todas as realidades do mundo umas com as outras.
O livro, informa-nos a nota final, é dedicado a Bernardo Sassetti. «Gostávamos muito dele; faz muita falta». De uma simplicidade escandalosa, é dos mais intensos elogios fúnebres que conhecemos: na sua brevidade, diz tudo. Nada se lhe poderia juntar sem perda. Talvez seja o fragmento (podemos pensá-lo assim, macabro exemplo do estilo do autor na frase mais pessoal da obra, na concentração de discurso que alcança com palavras tão chãs) mais perturbador de todo o livro: um fragmento para outro fragmento.
João Diogo Loureiro
[1] Lembramo-nos de ouvir uma vez o escritor, há já uns anos, lamentar que tão poucas pessoas pegassem no seu A Perna Esquerda de Paris e…, confessando ser um livro pelo qual tinha um grande carinho. Sintomaticamente, é um dos nossos favoritos.
[2] O termo ‘lassidão’ não pretende ter aqui qualquer carga negativa; serve como simples substantivo para a qualidade do que é solto. É significativo que várias palavras para exprimir esta folga na articulação das coisas – frouxidão, liquidez – tenham um sentido pejorativo, traindo uma censura enterrada de tudo o que não é compacto e definido.