Hugo Milhanas Machado, Onde fingimos dormir como nos campismos
/Hugo Milhanas Machado
Onde fingimos dormir como nos campismos
poesia
Enfermaria 6, Lisboa, dezembro de 2014, 80 pp.
Capa de João Alves Ferreira
somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
Hugo Milhanas Machado
Onde fingimos dormir como nos campismos
poesia
Enfermaria 6, Lisboa, dezembro de 2014, 80 pp.
Capa de João Alves Ferreira
I
Ao tocar num longo teclado de impulsos, muitos deles arcaicos, a poesia faz vibrar algumas das placas mais primordiais do campo da subjectividade, os obscuros alicerces do “eu”. Um verdadeiro poema trabalha-nos, pois, por dentro, tão extremadamente que nos excede a partir do que julgávamos ser o núcleo da nossa subjectividade. Mesmo desinteressados de uma teoria do género ou uma ontologia da poesia – essa angústia camuflada sob a capa da procura séria, objectiva do Ser da poesia –, encerra algum sentido atribuir-lhe o poder de nos fragmentar, lacerar, desfazer. Nesta cultura do polegar erguido em sinal de satisfação, totem actual, continuação por outras vias do entusiasmo falocrático, a poesia desmancha o novelo com que se tecem as individualizações, não por um qualquer desejo de devassa, mas para quebrar o círculo de redundâncias com que gostamos de nos apresentar (nome, profissão, clube de futebol, idade, morada, orientação sexual, livros preferidos, ódios de estimação...).
Esta é uma das razões pelas quais amo a poesia, outra é por considerá-la o mais generoso de todos os discursos, ao deixar que cada leitor viva cada poema à sua maneira. Sem ser um placebo, lança o primeiro murmúrio para ser apanhado e amplificado à maneira de cada um. Paul Valéry dizia em 1929, Commentaires de Charmes, que os seus versos continham vários sentidos, porque o dele só se ajustava a si. É um erro, continuava, afirmar que os poemas têm uma verdade, única e conforme ao pensamento do autor, consideração contrária e mesmo mortífera para a poesia.[1]
Esta multiplicidade é, além disso, exercida com forças que geram as metamorfoses de autores e leitores, Jean-François Lyotard defende o privilégio da escrita e leitura intensivas, aquelas em que o autor se aniquila na escritura e a escritura se aniquila no leitor, grande vencedor deste agon criativo porque aposta em último lugar. Aposta meio cega, como se não se lembrasse de grande parte do jogo que saiu antes. Mas estes leitores, especialíssimos, devem estar dispostos, como dizia Nietzsche, ao “êxtase da aprendizagem”, o que no viandante de Sils-Maria significava a descoberta de novas possibilidades de vida.
II
A Fome de João Moita desarranjou-me, desbaratou os meus códigos de leitura, minou as vias possíveis que tinha escolhido para assaltar o texto (assaltar a Fome). Peguei então nele e, alterando o que fui capaz alterar, usei-o orientado pelo que escreveu no final de um poema: “Assim como sou, / resta-me a desolação da travessia.” Não se pense imediatamente numa hermenêutica negativa, ler o João em desolação, numa frugalidade discursiva, foi para mim, afirmativamente, a melhor forma de apanhar o que julgo serem os seus gestos mais autênticos.
A poesia do João que, até pelo que disse, o ultrapassa tanto quanto ele a possui, parece começar por praticar uma pequena incisão epidérmica, como se dissesse: “desculpe, vou só tirar este insignificante quisto benigno mas démodé”, para logo a seguir aproveitar o balanço e obrigar-nos a fazer uma enorme cirurgia, auto-cirurgia, invadindo os órgãos vitais. Isto para “Quando Deus vier com as suas dragas [a Deus só lhe interessa dragar a nossa alma], já nós sondámos tudo, já tudo esgotámos.”
Os órgãos vitais não são músculos animados, sistemas de circulação ou digestão, nervos ou neurónios, fluxos de informação química ou eléctrica, fluidos contaminados..., mas, abrindo para outra anatomia, constituição de campos de forças: “tudo o que sabíamos vinha-nos do cio e do arrependimento, […] E Deus esteve sempre do meu lado, segurando a toalha e o escarrador, e a minha valentia é de teor agrário.” Quem lavra ou vê lavrar a terra percebe esta teologia incarnada, onde o espírito se semeia no sangue, do homem ou do mundo. Depois, as forças crescem, indomáveis algumas, comunicando, numa linguagem exacta e implacável, o jogo dialéctico da vida/morte, jogo sem síntese, apesar de todos os esforços conciliadores do Novo Testamento. Elas pertencem ainda à linha trágica do Testemunho mais antigo, história sem nenhum Deus ex machina, onde em vez de moral há o perigo insondável de se ser sacrificado pela vontade cega e impiedosa da Justiça, a primeira de todas as éticas. Por isso: “Visão de peste, / íntima e incomunicável.”
Se é verdade que este livro, revelado sob um título que resume porventura o maior de todos os desejos (Fome), esboça por vezes uma arte poética, rapidamente a subsume na vastidão teológica: “Começar com minuciosa caligrafia, com a precisão / do traço. Iludir a mão que devias ter mas não tens / nisto. E como o calor que incendeia a noite, ser em / negra combustão o sudário das estrelas.” Ou “Não há autonomia se não se recria / nos caminhos da fé.” São poucas as linhas que evitam a fatalidade, “eu amarei a privação”, diz, porque a ausência é a única certeza. E mesmo os excedentes são uma forma de supressão: “À força de êxtases, / a fé podou o amor. / Quando veio o desejo, / brincámos com a fome dos corações”. Ao mesmo tempo, em vital contradição (“Arrepio: / prazer dos contrastes, / abrangência das contradições.”), a fé combate, de raspão, o grande vazio que se aproxima: “Em instância da penúria, / a tangente da fé”. Ou “Na garganta de Isaac sinto já avermelhar-se a minha faca – / serás tu, Senhor, o sustento da minha culpa. / Como a suportaria se a minha fé não fosse / maior do que tu?”. Como em Nietzsche, as “palavras são aqui francamente sangrentas”.
Esta poesia do João fabrica facas para uma tragédia teológica, em quase todas as frases há cicatrizes, repetidamente abertas e saradas. Não são feridas expostas, hesitam em mostrar-se porque qualquer explicação faz sofrer duplamente. Da mesma forma, a indecisão marca a permanência inapropriada: “Estive pronto e não parti.” Ou então a vertigem da queda dos que vivem nas alturas (“Se falham o primeiro voo, / as aves não chegam a voar.”), pássaros inseguros a pontuar o céu para que nada pareça imaculado. Mas os pássaros são também viajantes irredutíveis, num tempo longo que escapa à nossa noção de esforço, tanto que “No fim das suas vidas terão engolido mais céu que alimento.”
No final, num amor fati que faria corar de inveja os próprios estóicos, “Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.” Por isso, “Pôs-se uma manhã limpa como o escárnio, / estou prestes a ser feliz.”
[1] “Mes vers ont le sens qu’on leur prête. Celui que je leur donne ne s’ajuste qu’à moi, et n’est opposable à personne. C’est une erreur contraire à la nature de la poésie, et qui lui serait même mortelle, que de prétendre qu’à tout poème correspond un sens véritable, unique et conforme à quelque pensée de l’auteur.”
João Moita
Fome
poesia
Enfermaria 6, Lisboa,
junho de 2015, 74 pp.
Capa de João Alves Ferreira
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João Moita. Nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou O vento soprado como sangue (Cosmorama, 2009), Miasmas (Cosmorama, 2010) e Fome (Enfermaria 6, 2015). Traduziu uma antologia de Antonio Gamoneda, Oração Fria (Assírio & Alvim, 2013).
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Fome é o mais recente livro da Enfermaria 6. Será apresentado no próximo sábado, pelas 18h30, na Fyodor Books.
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