three man walk into a dream

p/ ricardo domeneck

caro poeta, 

three men walk into a dream1 (não, isso não é uma piada!) e nós os assistimos: de nomes os três: capitão coronel e suj. desc. e caminham até o pé duma árvore (enquanto nós os assistimos) o capitão senta numa pedra o suj. desc. em pé dá as costas ao coronel e olha o nada (o suj. desc. aliás é uma espécie de contorno ele não tem voz não tem corpo não tem rosto é mais uma presença que deixamos sentir) o coronel também de pé saca uma arma !tudo isso vemos e não ouvimos! até que começam as seguintes falas: cor – “[inaudível]” cap – “[inaudível]” cor – “[inaudível]” cap – “ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha” e pronto acabou acendem-se as luzes você olha pra mim e diz que a poesia é isso: “a fala do coronel representa precisamente aquilo que entendo por poesia, ou seja, não há nenhuma dificuldade, para nenhuma pessoa, em compreender o sentido da frase ‘ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha’. todavia, pelo modo como é composta a estrutura do sonho não nos é dado saber a que se refere esse encadeamento de signos, em qual parte de qual discurso está inserida esta simples sentença. com isso, quero dizer que à poesia se assemelha precisamente pelo fato de optar por discurso e conferir a ele uma potencialidade de sentidos tal que nos permite inferir, porém nunca precisar, quem é o empregador do coronel. i.e., com isso, o sentido pleno da frase não possui outro pertencimento que não aquele do sonho. é preciso ser absolutamente contemporâneo, todavia, e perceber que essa forma do sonho não uma poética possível mais (você é pós-utópico? se o é, você é também trans-histórico? que dia é hoje no seu poema?). digo tão somente sonho em condição de símile, matéria da qual me aproveito para mostrar que linguagem, seja qual ela, nunca é compreendida em sua totalidade e todo discurso, seja qual ele, mantém um estreito laço com a insuficiência – tanto política quanto poética – da expressão. graças a deus tudo é mistério (cf. rosa 1937 apud 2014 apud 2016). portanto, para encerrar a questão, quero apenas ressaltar que o que houve aqui, com essa frase, foi a instauração de um mundo – um mundo lançado no mundo –, uma brecha lançada, e a nós fica cabendo apenas duas coisas: 1) interpretar hermeneuticamente essa promessa do capitão/poeta através de uma contrapromessa sem fim que funda um sentido no vago e 2) incorporar esse empregador-obra (ainda desconhecido, pois fragmentário) ao nosso próprio corpo, assumindo o lugar do próprio capitão (à beira da morte?), entregando nosso corpo ao risco desse desconhecido. a busca por um sentido pleno é precisamente referida na presença do suj. desc., ou seja, como algo que nos vira as costas, que possui apenas uma forma metafísica, uma presença alheia ao acontecimento e, sobretudo, inalcançável” assim me disse embora voz alguma atestasse que alguém sobre meu sonho a outro alguém noturno e miserável em colóquio se estava dirigindo

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Este texto faz parte do livro de estreia do autor, Ratzara.

Dicas para ler Paul Auster

Como tempo é algo que as pessoas dizem não gostar de perder, ler um livro de Paul Auster é melhor do que ler todos os livros de Paul Auster. Eis algumas dicas para ler os livros deste autor sem ficar deprimido ou apenas entristecido com este poço negro e vazio chamado existência. Passo 1: ler dez páginas. Passo 2: saltar as cinquenta páginas seguintes porque a vida é demasiado breve para prestar atenção a banalidades. Passo 3: ler mais dez páginas e saltar as cinquenta páginas seguintes. Passo 4: beber água em abundância após a leitura de cada página (ou frase, no caso de não ser leitor experiente). Passo 5: aceitar que Auster nunca será tão interessante quanto imaginara antes de ler os seus livros. Passo 6: assumir que um só parágrafo pode resumir um livro e evitar desnecessárias desilusões ou irritações (sem esquecer que Auster é um belíssimo autor para citar no caso de, na ausência de chazinho de camomila que apascente a alma agitada, se querer manifestar em termos semi-apocalítpticos em rede social à escolha) . Passo 7: não culpar o mundo ou mesmo Deus pela incrivelmente imerecida fama de Auster. 
 

"On Chesil Beach", um livro sem acontecimentos

On Chesil Beach, de Ian McEwan, não é, ao contrário do que se diz na capa, um livro de cortar a respiração. A bem dizer, pouca literatura corta a respiração. O processo a partir do qual se obtém prazer da literatura está ligado a algo que se poderia apelidar de cansaço. A literatura cansa e derruba o animal, a frase deliciosa convence, sossega o estômago, e desta maneira se vai de livro em livro, a lutar contra a selvajaria de estar vivo,  a preparar o olho vencido para o dia seguinte. Um dia, num concerto de Carlos do Carmo a que por acaso assisti, reparei que o artista detestava as palmas do público e exigia silêncio. Retirar prazer da literatura tem um pouco que ver com a irritação contra as palmas manifestada por Carlos do Carmo. Não há palmas nem paragens de respiração na literatura. O êxtase é silencioso e comedido. O que encontramos nesta novela é intensidade psicológica, cenas, momentos, pedaços de vida descritos a partir do que se sentiu. Estados de alma, sensações, como o nojo sentido pela rapariga ao ser assaltada pelo linguarudo beijo do marido. Longas e belas são as linhas que nos contam que aquele beijo e aquela língua são tão bem-vindas na boca da mulher como uma martelada nos dentes. É disto que este livro a lembrar Stefan Zweig trata, portanto, de sentimentos, de delírios. A história é simples e só um grande escritor conseguiria mantê-la durante duzentas páginas. Um jovem casal recém-casado, e aparentemente muito apaixonado, parte em lua de mel. Ele quer perder a virgindade, ela nem suporta a palavra sexo, a língua e a mão dele pousadas na sua perna nauseiam. Duzentas páginas de avanços e recuos mentais. Houve uma vez alguém que resumiu uma obra de Hemingway como a história de um velho que sai de manhã para pescar e regressa com um balde vazio. Pois bem, esta é a história de um casal que se casa e separa no mesmo dia por a noiva repudiar qualquer contacto físico. Uma história que sugere que o casamento pode ser uma experiência a dois, que pode excluir o sexo mas incluir amor. 

"Perhaps I should be psychoanalyzed. Perhaps what I really need to do is kill my mother and marry my father."

Listen up Philip (2014)

Desde os nomes aos comportamentos das personagens (Jason Schwartzmann é Philip, um jovem promíscuo escritor que acaba de se tornar famoso, Jonathan Price é Ike Zimmerman, escritor jubilado que vive no campo, enterrado em frustrações e preconceitos), tudo em Listen up Philip (2014)  aponta para Philip Roth. Mas se este filme de Alex Ross Perry é uma paródia sobre o escritor, ou sobre aquilo que achamos ser parte da vida do escritor criado em Newark, vai para além disso. Philip Roth e um mundo de recalcamentos e ódios levam-nos à cabeça de alguém que sempre sonhou com a glória literária, que só sonhou com a fama e prescindiu de tudo o que era humano, começando pela empatia e pelo respeito pelo outro. Este filme começa por parecer uma comédia e transforma-se num cruel retrato de dois escritores a viverem distintas etapas da vida, mas ligados pela raiva, pela frustração e pela sensação, muito rothiana, de que as grandes lutas humanas não valem a pena, nem podem ser saboreadas, já que no fim tudo se reduz a uma patética velhice.