Italiano na Grécia - Um poema de Vittorio Sereni

Vittorio Sereni em Pasturo em 1936

Tradução de Tatiana Faia

De Diario d’Algeria, 1947

 

Primeira noite de Atenas, estende-se o adeus
dos comboios que fogem para as tuas periferias
cheios de agonia no longo poente.
Como uma mágoa
deixei o verão nas curvas
e mar e deserto é o amanhã
sem mais estações.
Europa Europa que me olhas
descendo desamparado e absorto num meu
escasso mito entre multidões de brutos,
sou um teu filho em fuga que não conhece inimigo
que não a própria tristeza
ou alguma rediviva ternura
de lagos de folhas atrás dos passos
perdidos,
estou vestido de pó e sol,
vou amaldiçoar-me cobrir-me de areia por anos.

Pireu, Agosto de 1942

A guerra de Putin, entre a geopolítica e a psicopolítica

Escrever sobre esta guerra, acerca da qual, e até um certo ponto (fenomenológico e retórico), se deve, pelo menos por enquanto, dizer, como no amor, que se pode descrever mas não explicar, só pode ser de modo ensaístico (à maneira de Montaigne, um dos primeiros europeus a genuinamente desconfiar da sua clarividência, exemplo muito pouco seguido). Isto se não padecermos da síndroma da Nato ou tivermos sido inoculados por uma nostalgia imperialista do velho século xx (por vezes andam a par).

Lido Cólera e Tempo (CT) de Peter Sloterkijk, conseguimos, porém, guiar-nos por categorias menos líquidas do que deixava antever o primeiro parágrafo: em vez dos dispositivos eróticos do desejo (combustível do consumismo desenfreado) estamos perante dispositivos timóticos (cólera, ressentimento, vingança…). Sloterkijk relembra-nos que a Europa começou pela cólera de Aquiles (início da Ilíada), a matriz genésica da nossa civilização está na ativação de forças destrutivas desnorteadas, mas não completamente estéreis, que à sua maneira acabaram por construir a mais bela de todas as civilizações (digo isto por amor).

A Atenas clássica será muito mais erótica do que timótica. Aquiles tinha, no fundo, perdido para Ulisses, astúcia em vez de cólera. O movimento que laicizou o saber, os filósofos, idealizando ou observando, nunca radicalizaram o discurso ou a ação (a exceção do movimento cínico é isso mesmo, uma exceção). O regresso do religioso, de um religioso unidimensional e avassalador (que benévola era a multirreligiosidade grega!), contudo, recuperou o princípio timótico e espalhou a cólera divina sobre a humanidade insegura e ansiosa, que aderiu com uma facilidade assustadora a um comandante supremo que a castigava sem porquê (não há qualquer hermenêutica possível para a cólera divina, essencialmente pré-discursiva).

Porém, com o tempo, a vitória do Novo Testamento sobre o Velho e a posterior «morte de Deus» a golpes de crítica racional, a religião foi-se desfazendo dos seus vetores mais coléricos (embora com regressões, as Guerras de Religião do séc. xvii foram incrivelmente destrutivas e cruéis). Até que no século xx apareceu um novo grande banco de cólera (este dispositivo coleta as cóleras individuais e age, em troca, com a força conjunta de todos os seus depositantes): o comunismo (nos formatos históricos do leninismo, estalinismo e maoismo). Este novo messianismo assente na luta de classes (com nuances no caso maoista) arruinou tudo o que se lhe opunha (um Messias não pode aceitar oposição sem cair numa contradição insanável). A timótica comunista acompanhou, segundo Sloterdijk, uma invariável que nasceu na Revolução Francesa de 1789: «a deceção e frustração que produziram sempre, além da renúncia e de uma rejeição cínica das ilusões do passado, formas agudas e actuais de cólera.» (CT, p. 133) Contrariaram, pois, a recomendação aristotélica: «Nunca odiar, mas desprezar muitas vezes». Preferiram vincar a indignação e encorajar metodicamente a cólera, a principal «missão psicopolítica que começa durante a Revolução Francesa.» (Sloterdijk, CT, p. 140)

Finalmente, a década de 90 do séc. xx parecia, agora sim, revogar definitivamente as forças timóticas da cólera, ressentimento ou vingança. A queda do Império Soviético colocava a «A luta continua!» no reino da fantasmagoria (apesar de ainda pontuar os comícios do PCP). Hoje parece só haver fúrias de descontentamento concentradas em atos isolados e sem perspetiva de futuro. É que, como refere Niklas Lhumann, se os conservadores começam pela deceção, os progressistas terminam na deceção. Mesmo o radicalismo do islamismo político parece trabalhar, sem se vislumbrar qualquer redenção, em projetos de autodestruição. Aconteceu, portanto, nas palavras de Sloterdijk «a rejeição do primado do timótico em favor de uma erotização sem limites.» (CT, p. 222) Já não concentrada na líbido sexual (se é que alguma vez se centrou aí totalmente), mas num universal querer-ter e querer-alcançar. Daí que o livro mal-amado de Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, seja, ainda para Sloterdijk, o que melhor resume o zeitgeist do fim do séc. xx.

Até que o presidente Vladimir Putin, herdeiro de um país continente, no qual a morte provoca bem menos sobressaltos do que no Ocidente (ao qual, primeiro, quis pertencer e depois deixou de querer). Rússia, cuja história só retém quem consiga o cognome de «grande», compôs um presidente talvez sem muito princípio de realidade (filtrada pelos seus esbirros para que só lhe cheguem as moléculas que confirmam o que ele vai congeminando), talvez paranoico, como muitos pressagiam, talvez encurralado por pesadelos tecidos de ressentimento e vontade de vingança. Talvez outras coisas. É que, ao justo, ninguém faz a mais pálida ideia deste retorno das forças timóticas no reino da infinita e ilimitada erotização, também a da Rússia, dos oligarcas com iates de 100 milhões de dólares à classe média do Iphone de última geração. Há quem diga que nada disto é inesperado, que a guerra se preparava há 20 anos. Mas cheira-me a fazer prognósticos no fim. Tanto mais que o estilo, discursivo e corporal, de Putin se alterou de 2014 para cá: mais colérico, ameaçador, longamente descritivo e messiânico agora.

O que tenho lido na imprensa compõe um emaranhado de descrições e explicações sem linhas de sentido seguras, tudo pode ser uma e outra coisa. As questões geopolíticas pesaram, com certeza, na decisão, as psicopolíticas também, com a elite putiniana a transbordar de hormonas timóticas. Mas talvez devamos acrescentar um stress psicótico ou algum trauma dos habitualmente repertoriados pela psicanálise. Pode ser uma questão estética, enquanto sensibilidade bélica (os aviões de combate são considerados belos por muitos pais de família). Um desafio vindo do além, histórico ou religioso. Mas é seguro que o universo mental de Putin é o da violência, em 2015, quando entrou na guerra síria, terá dito: «As ruas de Leningrado ensinaram-me uma coisa: se a luta é inevitável, bate primeiro.»

Tudo isto apesar, ou por causa, de um contínuo declínio interno. A Rússia não deixou de declinar nos últimos 20 anos, exceto no campo mais estritamente militar (e mesmo este talvez não seja tão florescente como se pensa). Ajudado pelos combustíveis fósseis, Putin fez da Rússia uma «bomba de gasolina com mísseis nucleares», hard power bruto. Mas todos os outros domínios, do económico ao social, estão iguais ou piores do que há 20 anos. O nível de vida, a inovação, a cultura, as liberdades…, tudo isto se deteriorou. Com desigualdades superiores, por exemplo, às da China (estudo de Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman de 2018). País de cientistas, romancistas, músicos, bailarinos…, há agora um presidente que mantém os seus raríssimos convidados a 20 metros de distância, prova do falhanço da vacina Covid-19 Spoutnik.

Por mais que se diga, não interessa a Putin e à elite que o rodeia e se exercita em constantes genuflexões construir um qualquer futuro, mas regressar ao passado, reconstruir, mutatis mutandis, o grande império soviético (cuja queda foi, nas suas palavras, o maior fracasso geopolítico de todos os tempos). E, por isso, vê na Ucrânia virada para o Ocidente, com uma visível vontade de democracia, um desafio insuportável, uma traição. Alia-se a isto a crença, contraditória relativamente ao medo que tem do Ocidente, de que os países democráticos estão decrépitos, em 2019 disse ao Financial Times que o «pensamento liberal se tornou obsoleto».

Esta mistura de impulsos, uns mais timóticos outros fundados na velha teoria política da dicotomia amigo/inimigo de Carl Schmitt, que prolongou a célebre tese de Cal von Clausewitz segundo a qual «a guerra é a continuação da política por outros meios», pôs a Rússia e o seu presidente a sós consigo, isolada e ameaçada pela possibilidade, bem real, de um colapso económico (que, como é habitual, atingirá os mais desfavorecidos). Legado de um homem de 69 anos, ressentido e colérico, egomaníaco, talvez paranoico. Nada mau para alguém que tinha prometido estabilidade e prosperidade aos russos. Como escreve Piotr Smolar no Le Monde de 4 de março, Putin pôs, tudo o indica, uma bomba debaixo da sua poltrona. Ignoramos o comprimento do pavio.

Margarita Liberaki

Penso que devia haver um teste psicológico básico que candidatos a políticos deviam ser obrigados a fazer. Só poderiam passar a candidatos a eleições se fossem aprovados nesse procedimento. Às vezes até para os trabalhos mais básicos uma pessoa tem de ir a pelo menos duas entrevistas em que as suas competências são, normalmente num espetáculo triste e pouco dignificante, dissecadas para medir a sua competência na tarefa que pretende exercer. Conversas, exercícios, interacções de grupo. Tentei uma vez demover-me de um emprego para passar para outro bem mais simples, que me deixaria com mais tempo para plantar morangos e escrever versos, as duas únicas actividades que no fundo me interessam, mas não consegui convencer os entrevistadores a darem-me a oportunidade de dar cabo de uma carreira profissional na qual não estava particularmente investida. O que correu mal neste plano? A segunda entrevista, claro. As minhas prioridades erradas transpareceram todas na segunda entrevista. Pela mesma lógica, haveria muito mandato político absolutamente vergonhoso a que este processo simples nos teria poupado. Se não tens um vocabulário de mais de cinquenta palavras ou se és um sociopata narcisístico com uma personalidade pouco colaborativa, e não lidas bem com discussão e crítica, se não te importa o bem comum, se te agradam ataques verbais gratuitos que se destinam a obliterar uma certa empatia por outras pessoas para explorar divisões internas e/ou externas e incitar o ódio, se não queres saber do sistema nacional de saúde, de ajudar a criar as condições que promovem níveis de acesso elevados a educação e cultura, não devias poder ser candidato a dirigente de um pequeno aquário com um par de peixinhos dourados, quanto mais de um país com um arsenal nuclear. Tudo isto é tão óbvio que não devia sequer chegar a ser controverso.

E, contudo, estou a escrever estas linhas que não servem para nada sob o efeito das imagens, bastante surreais, da reunião de Putin com o seu conselho de segurança, em que ele pergunta a cada um dos elementos se querem dar voz a uma opinião dissonante quanto ao projecto de invadir a Ucrânia ou, como ele lhe chama, defender a Rússia e/ou a Ucrânia, embora nem nessa mentira ele seja particularmente sistemático. Enquanto o vídeo destas imagens passava, a amiga que estava sentada ao meu lado tapou instintivamente os olhos com as mãos na cena em que se vê Putin a pressionar o seu chefe do serviço de espionagem, Sergei Naryshkin, como se ele fosse um menino não muito inteligente com quatro anos de idade, para ele dizer se concorda que a Rússia apoie a independência de Lugansk e Donestsk. O chefe dos espiões parece relutante e genuinamente nervoso. Engana-se e diz que apoia a inclusão destes territórios na Rússia, é pressionado de volta por Putin, que lhe diz que não é isso que ele lhe está a perguntar.

Talvez haja qualquer coisa nos momentos de grande mediocridade moral que nos infantilize enquanto adultos, porque estamos a ser diminuídos e porque reconhecemos esse aviltamento. Estou em crer que qualquer coisa na expressão deste homem trai o facto de que ele reconhece a loucura abjecta deste momento. Putin, no entanto, sentado a grande distância do seu conselho de segurança, chamando-os um a um para declararem a sua aliança a esta ideia de merda e incrivelmente estúpida que é invadir um estado soberano a que boa parte da população da Rússia gosta de chamar de país irmão, com um presidente a duras penas democraticamente eleito e que afinal não é palhaço nenhum, deixou ele próprio de sequer tentar manter a aparência de chefe de estado vagamente democraticamente eleito. O que estamos a ver quando vemos esta cena é, então, o tipo de teatro que lembra um pouco as cenas dos juramentos de gangsters em filmes sobre a máfia, um pouco como notava Shaun Walker, cronista do The Guardian, na sua lúcida análise deste momento. E é uma cena decadente, exceptuando que há mais proximidade entre as figuras que aparecem naquele quadro de Thomas Couture, Os Romanos da Decadência, do que entre Putin e o seu conselho de segurança. Enquanto os romanos da decadência estão todos mais ou menos ao molho e com fé nos deuses, à espera de Alarico ou da próxima orgia, julgados moralmente por um par de filósofos que observam à distância, não se confundindo com os restantes, a distância a que Putin se coloca do seu conselho não é certamente a de um rei-filósofo e serve para lembrar quem é que segura os fios destas marionetas. É também a longa distância da irracionalidade e do oportunismo dos autocratas e dos bullies. É horrendo de ver, além de inestético. Significa que nada do que se vai passar a partir daqui obedecerá a grandes lógicas. Basta pensar que a Ucrânia é um país de quarenta milhões de pessoas e que, mesmo que esta invasão corra espetacularmente bem para Putin (no fundo não correrá bem para muito mais gente), é extremamente caro e difícil oprimir quarenta milhões de pessoas a longo prazo. Esta cena lembra então demasiado Calígula ou Nero e dá mesmo vontade de perguntar onde anda a guarda do pretório.  

            A minha amiga de mãos a tapar olhos que viram, tudo considerado, bastantes coisas, em diferentes continentes do mundo, ao longo de umas quantas décadas, lembrou-me, no entanto, a imagem de outra amiga, há uns anos, sentada numa fila central num pequeno teatro em Oxford, a tapar os olhos com as mãos no final de uma peça que tínhamos ido ver, levada a palco por um grupo de alunos gregos. A peça chamava-se No 10 de Junho e o dramaturgo era Yiorgos Iliopoulos. O texto da peça é baseado num evento histórico de que nunca tínhamos ouvido falar, nem eu nem a minha amiga que é grega, um daqueles eventos tão brutais e tão traumáticos, mas ao mesmo tempo tão remotos, que ficaram enterrados na memória de um século. Distomo era em 1944, e ainda é hoje em dia, uma pacata vila no sopé do monte Hélicon. Fica a duas horas de carro de Atenas e a meia hora de Delfos.  Em 1944, nas imediações da vila, uma coluna de soldados alemães foi atacada pela resistência grega, três soldados alemães foram mortos, num ataque que eles assumiram ter vindo da direcção daquele lugarejo. O que se seguiu foi de uma barbaridade absolutamente atroz. Os soldados alemães tomaram a direcção da vila, com um comandante de apenas vinte seis anos à cabeça, e, na noite de 10 de Junho, assassinaram brutalmente, numa espiral de loucura absoluta e absurda, cerca de 200 pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e anciãos. A disputa prolonga-se ainda hoje, em tribunais italianos, gregos e alemães, sobre se o ataque de facto terá partido da vila, a maior parte das evidências sugere que não, e mesmo entrar neste nível de discussão é já um erro repugnante. Assume que é aceitável ou que em algum mundo pode fazer sentido ou ser justificável que alguém armado até aos dentes entre gratuitamente em casa de outra pessoa e a surpreenda para a matar na sua quietude doméstica e indefesa.

O que me leva ao ponto, não particularmente relevante em face do nível de terror deste evento histórico, de explicar porque é que, apesar da audiência daquele teatro se encontrar bastante emocionada no final da peça, a peça me pareceu falhada, com qualquer coisa de uma chantagem emocional predatória e imatura, que diz qualquer coisa, porém, da relação da minha geração, educada no lado pacífico e confortável da Europa, com níveis de violência para os quais a maior parte de nós não tem – e eu, pelo menos, preferia continuar a não ter – uma empatia que permita entender intimamente, com uma clareza que não pode ser esteticizada ou adornada de forma nenhuma, o indizível nível de horror que deu origem à relativa estabilidade social da Europa em que crescemos. Neste sentido, o motivo por que acho que esta peça falha torna-se, então, bastante simples de explicar. Nenhuma das personagens que o dramaturgo coloca em cena chega a ser, em momento nenhum, mais do que uma função da sua própria morte, nunca chegam a habitar qualquer coisa que se pareça com uma individualidade plena, são apenas o que em convenções narratológicas se chama personagens-tipo: o padre da aldeia, que está ali para ser decapitado pelos nazis, ou a rapariga prestes a casar-se que está ali para ser violada por todo o regimento, ou a mulher grávida, cujo destino final, terminados os primeiros quinze minutos da peça, aguardamos com grande desconforto e terror. A instrumentalização que o texto faz das suas personagens acaba por repetir a instrumentalização que os nazis fizeram dos corpos capazes de sentir dor, e das emoções, capazes de serem completamente monopolizadas pelo horror, daquelas pessoas. Todos os textos literários, claro, usam as suas personagens, porque todas elas têm sempre de funcionar a um nível que é puramente retórico, o de passar a mensagem para que a arquitetura desse texto em particular converge, a agenda do escritor. O dramaturgo que escreveu esta peça, Yiorgos Iliopoulos, não é particularmente jovem, mas é aqui autor de um texto que me parece particularmente imaturo. E é-o em parte pela dificuldade de falar complexamente de uma coisa que é particularmente vital que um bom dramaturgo não perca de vista, o facto de que as vidas humanas, as históricas, as ficcionais, a do mais humilde figurante – se o texto não for uma sátira – não podem ser completamente instrumentalizadas pela sua função retórica no texto, tem de haver um equilíbrio qualquer, aquilo que no fundo é a poesia que se encontra nos textos, como existe de resto no mundo real, entre o que é geral acerca das nossas vidas, que é tão transparente nas convenções sociais nas quais vivemos, e o que é único, a forma como uma vida humana não contém mais nada que não exactamente essa vida, o que começa na singularidade de um rosto e continua a manifestar-se em todos os momentos na idiossincrasia de gestos, emoções, maneiras de falar, de responder, dos afectos que cultivamos, dos espaços que construímos e são os nossos e de alguma forma nos expressam, todas essas coisas que explicam a nossa singularidade, o que permite entender indirectamente porque é que o nosso amor pelas pessoas que amamos é singular, porque está vitalmente ligado a essas particularidades. A peça de Iliopoulos falha então, a meu ver, porque ele não consegue nunca mostrar isto. A nossa empatia é manipulada de uma maneira formulaica, que vai simplesmente acumulando o genérico sobre o previsível, de modo que aquele texto nunca se converte no exercício de empatia profunda e radical que um texto que se proponha a falar sobre este tipo de facto histórico tem de ser. Em vez disso, fiquei mesmo a coçar a cabeça e a perguntar-me uma coisa da qual normalmente não duvido: se podíamos ter continuado a escrever poesia depois de Auschwitz.  

Em discussão com a audiência no final da peça, o dramaturgo caiu naquele cliché imperdoável, que nos transporta automaticamente de volta a momentos medíocres em salas de aula de história de adolescências confortavelmente ocidentais, em que a Segunda Guerra Mundial se misturava com a nossa profunda e indiferente urgência mecânica de ouvir a campainha tocar, para voltarmos a ser livres de novo. O cliché era o de que ele tinha escrito aquela peça para a morte daquelas pessoas não ter sido em vão, o que a meu ver expôs outro problema que me pareceu estar patente naquele texto, o de se tratar um pouco de pornografia histórica, da do género que é produzida não para examinarmos com cuidado algo que nos deixa atónitos, mas para nos sentirmos satisfeitos com quão bonzinhos somos.

Digamos então que o massacre de Distomo, a 10 de Junho de 1944, foi completamente em vão e não serviu para mais nada do que tornar o mundo um buraco mais negro e deplorável do que ele precisa de ser e nisso é paradigmático da forma de doença colectiva que todas as guerras são. Temos de nos libertar desta crença de que a memória do terror é profilática e nos converte em testemunhas indirectas e entendidas do que esse terror significa, não converte. Essa pretensão é nociva e errada. A boa historiografia devia era dar-nos a dimensão daquilo que a nossa experiência não pode entender completamente e que se prende com a proporção subjectiva do horror que certos eventos infligem nas pessoas que os têm de viver, que não é, pelo menos ainda, parte da nossa experiência. É o tipo de coisa que explica porque é necessária a dose de empatia que Ésquilo no século V a.C. sentiu pelo exército invasor persa, contra o qual ele próprio tinha combatido, e cuja derrota é o tema de Os Persas. A ficção desse ponto de vista pode ser bem mais eficaz do que a historiografia. Pense-se num filme muito mal recebido à época em que estreou, que nem sequer é bem um filme, é quase uma colecção de apontamentos sobre algo que não pode ser completamente comunicado por um acto narrativo, Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini (1948), passado numa Berlim completamente arrasada pela guerra, que segue a luta pela sobrevivência, e sem redenção, de uma criança.

Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini, 1948

A morte precoce da mais insignificante das criaturas, por exemplo, lembrando um poema de Cesariny de uma extraordinária e estranha dignidade, um rato morto com que nos cruzamos num parque, não nos serve para nada. É apenas e só um invólucro de dor tremenda e sem sentido que não pode servir a ninguém para absolutamente porra nenhuma. A experiência disso é o que um poeta grego, Yiorgos Seferis, definiu, num poema escrito nesse mesmo ano de 1944 que talvez seja de reler com cuidado, pedindo uma expressão emprestada a um verso do Agamémnon de Ésquilo, como a memória da dor que perpetua a dor (μνησιπήμων πόνος). Toda a didática da memória é detestável se o seu propósito é mascarar-se de mecanismo de compensação desonesta por uma perda que deixa no seu lugar uma escuridão total que nunca nada, ninguém, poderá compensar. A morte precoce de pessoas, que é parte fundamental do negócio que uma guerra é, deixa apenas uma dor interminável e um vazio tremendo para quem terá de viver com essa perda. É tudo. E dá vontade de citar aqui um ensaio de Natália Ginzburg em As Pequenas Virtudes, escrito no pós-guerra, em que ela diz que não podemos mentir nem nos nossos livros nem nas coisas que fazemos, que isso era a única coisa decente que tinha saído da guerra que a sua geração tinha acabado de viver.

Margarita Liberaki

Em 1946, a então muito jovem romancista grega Margarita Liberaki publicou o seu segundo romance, Τα Ψάθινα Καπέλα, cujo título à letra significa Os chapéus de palha, mas que em inglês foi traduzido (por Karen van Dyck) como Three Summers e republicado em 2019 pela NYRB. O romance é sobre três irmãs que crescem numa casa num subúrbio de Atenas ao longo de três verões. É um romance sobre a passagem para a idade adulta, sobre a relação entre as irmãs e a mãe e a tia, sobre a ausência misteriosa de uma avó polaca, que desapareceu um dia sem deixar rasto ou dar explicação, sobre a curiosidade que nos faz amar estar vivos. Contra o fundo do que é o mundo encantado do verão, as colheitas crescem, constrói-se um observatório para olhar as estrelas, há longas caminhadas, surgem os primeiros amores, os amigos que chegam e partem, encontros e conversas intermináveis e há segredos que se revelam à medida que as irmãs passam de raparigas a mulheres. O centro da narrativa é a irmã mais nova, Katerina, uma personagem maravilhosa e louca, capaz de no final fazer algo verdadeiramente inesperado e surpreendente, que nos deixa de lágrimas nos olhos, e que muda mesmo o mundo, sugere outro modo de viver. O que é mais surpreendente para além desse gesto, que rejeita vitalmente perpetuar uma versão patriarcal do mundo, é que não há qualquer alusão ao período da guerra em que o romance foi escrito, exceptuando num ou noutro pequeno pormenor (há uma família inglesa que parte e regressa mais tarde) e numa longa sequência onírica que tem qualquer coisa das sequências oníricas desenhadas por Dalí que se podem ver num filme que estreou um ano antes de Three Summers ser publicado, Spellbound de Hitchcock. Tirando estes pormenores oblíquos, Margarita Liberaki exclui completamente esse evento histórico da sua narrativa, é como se ele não existisse e não tivesse acontecido. A carreira subsequente de Liberaki enquanto romancista acabaria por clarificar que este gesto é mais da ordem de uma preferência por arcos narrativos que são na sua totalidade metáforas fortes e eficazes sobre os contextos históricos em que ela escreveu do que o tipo de escapismo fácil que viria de uma fraca consciência política ou histórica. Margarita Liberaki é uma grande romancista. O seu romance sobre a guerra civil grega, O Outro Alexandre, é construído a partir de uma ideia mirabolante, sobre um pai que tem duas famílias, e dá aos filhos exactamente os mesmos nomes, até que os filhos supostamente legítimos descobrem a existência dos irmãos, num crescendo de paranoia que terá consequências para todos.

Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que em Os Chapéus de Palha se torna tão conspicuamente um comentário ao período histórico em que ele foi escrito. E é isto. Os Chapéus de Palha enumera cuidadosamente todas as coisas que uma guerra ameaça e destrói, tudo o que nela pode ser perdido e é vital para uma vida bem vivida, tudo o que é digno do nosso amor, do nosso cuidado e deve ser protegido a todo o custo, e na verdade acaba por sê-lo neste romance a partir da sua evocação e da sua nomeação em aparência perfeitamente natural mas no fundo insistente e sistemática. Nós, que felizmente não sabemos o que é o horror de uma guerra, conhecemos afinal essas coisas demasiado bem. É para as protegermos que a memória histórica devia servir, não para termos a pretensão de que o horror de uma guerra serve para outra coisa qualquer que não mutilar e destruir pessoas e que por isso o espetáculo horrendo de tanques a avançar sobre carros de civis, numa cidade até há apenas alguns dias pacífica, nos poderia dar jeito para alguma coisa em termos da nossa consciência histórica ou moral.

A Psicopolítica segundo Byung-Chul Han - Nota de Leitura

Em Psicopolítica. Neoliberalismo e novas técnicas de poder (Pschopolitik, 2014, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), Byung-Chul Han, pensador prolífico e bem-amado (europeu tardio, veio para a Alemanha depois de abandonar um curso superior relacionado com a metalurgia na Correia do Sul, de onde é originário), defende que a biopolítica, de Michel Foucault e Giorgio Agamben, se transformou em psicopolítica. Nesta nova forma de organização do poder, «O sujeito do rendimento, que se pretende livre, é na realidade um escravo. É um escravo absoluto, na medida em que sem qualquer senhor se explora a si próprio de forma voluntária. Não tem diante de si um senhor que o obrigue a trabalhar.» (p. 12) Além disso, a universalização do smartphone, alvo de uma profunda «devoção digital», universalizou o «exame e controle de si». Este livro prolonga Topologie der Gewalt, 2011, (Topologia da Violência, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), no qual observa que a violência deixou de ser exercida do exterior, passando a ser autoengendrada: ela «afasta-se cada vez mais da negatividade do outro ou do inimigo e incide cada vez mais sobre o próprio sujeito.» (p. 11) Passando de uma «deformação» da sociedade disciplinar para uma «depressão» da sociedade do rendimento. A pior das violências não é a da negatividade e do visível, mas a da positividade e do invisível, «exercida sem necessidade de inimigos nem dominação.» (idem, p. 10) Mas acrescenta também linhas de sentido a Was ist Macht? de 2005 (Sobre o Poder — não percebo porque alteraram tanto o título —, tradução Miguel Serras Pereira, Relógio D’Água, 2017), por vezes tanto que parecer ser outro Byung-Chul Han. Neste livro trata-se sobretudo, a partir de Michel Foucault, de criticar a ideia de que o «poder opera unicamente inibindo ou destruindo.» (p. 16) Pelo contrário, ele funciona como um catalisador que influencia ou acelera determinados processos, ele é produtivo. Claro que também há o poder destrutivo, o da opressão de um ditador, que retira liberdade ao sujeito. E talvez seja até maioritário. Mas, o que Han quis fazer neste livro foi realçar o poder como possibilidade de autoafirmação e a sensação de prazer e liberdade que daí emerge.

Regressando à Psicopolítica, não há qualquer tipo de revolução que a partir da incubadora marxista (refere-se sobretudo às ilusões de Antonio Negri com a sua «multidão cooperante») consiga estancar este novo modo de servidão, auto-servidão, auto-exploração. A «sociedade neoliberal do rendimento» abafou toda a resistência possível. Os mecanismos de contrapoder e de escrutínio são tão reduzidos que quase se resumem a um vago imperativo de transparência (criticado, contra a vox populi, pelo autor)[1] para denunciar escândalos políticos (atacam-se as pessoas mais do que as ideias).

Durante o século xx, o poder foi sobretudo disciplinar e dominado pela negatividade. Este poder, seguindo Foucault (Surveiller et punir, 1975; Histoire de la sexualité Vol. 1. La volonté de savoir, 1975; e, do mesmo ano, o curso no Collège de France, Il faut défendre la société),  surgiu no século xvii e deixou de ser o poder de morte que detinham os soberanos, como se fossem Deus, sobre os súbditos: «Em vez de torturar o corpo, o poder disciplinar fixa-o a um sistema de normas.» (Psicopolítica, p. 29) É um poder normativo que atua sobre o corpo e a mente do sujeito da obediência e do dever. Mas esse poder, coagindo com alguma violência através de preceitos e proibições, foi substituído por um muito mais eficaz: amável, manipulador, afirmativo e sedutor. «Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades.» (idem, p. 24) «O neoliberalismo é o capitalismo do “Gosto”. Distingue-se substancialmente do capitalismo do século xx, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares.» (idem, p. 25) E Foucault (morreu em 1984, com 57 anos), segundo Han, não efetuou a passagem, apesar dos vários indícios que se podiam ler na realidade social, da biopolítica (poder disciplinar sobre a vida) à psicopolítica. Tal teria acontecido, ainda segundo Han, se Foucault não tivesse morrido precocemente. Han não concede a mesma lucidez a Giorgio Agamben.

Se o capitalismo do século xx se preocupava, em primeiro lugar, com o biológico, o neoliberalismo atende à psique. Para o conseguir, «A psicopolítica neoliberal é uma política inteligente que procura agradar em vez de submeter.» (idem, p. 46) É por isso que se trabalha tanto o campo das emoções do «sujeito narcísico», a sociedade de consumo compra emoções e significações, muito mais o valor emotivo do que o de uso: «O capitalismo do consumo introduz emoções para estimular a compra e engendrar necessidades.» (idem, p. 55) Daí que, no mercado de trabalho, as competências emocionais quase tenham destronado as cognitivas. E tudo isto se joga ao nível pré-reflexivo, o que dificulta ainda mais a denúncia e a resistência. Tanto mais que o Big Data consegue, a partir das interações digitais, representar com extrema exatidão a «nossa pessoa, [a] nossa alma — uma representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de nós próprios.» (idem, p. 71) Essa «lupa digital» favorece uma psicopolítica capaz de ler os nossos desejos mais profundos (talvez ininteligíveis para nós).

É preciso regressar a Topologia da Violência para sabermos o que a sociedade do rendimento, com os seus princípios de liberdade e desregulação, provocou na sociedade. Um campo patológico, vasto e profundo, governa uma grande parte dos indivíduos: na depressão vê-se o «fracasso de sujeito forçado à iniciativa perante o incontrolável» (p. 45); no burnout «é a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos.» (ibidem) Duas formas de autoagressão que não estavam inscritas na sociedade disciplinar. Para um dos seus principais teóricos, Karl Schmitt, a política vive da luta contra o inimigo, a possibilidade real da violência é a essência do político. Agora, o sujeito do rendimento, sem a negatividade do inimigo, vira-se para e contra si, «compete consigo mesmo e procura superar-se a si mesmo. Entra assim numa competição fatal consigo mesmo, num círculo infinito que, a certo momento, caba num colapso.» (idem, p. 62)

[1] Fundamentalmente porque, no fim de contas, pretende eliminar o estranho, forçando à conformidade.

Um casamento no inferno: sobre romãs e poemas

Korê com Romã, Museu da Acrópole, Atenas, séc. VI a.C.

1.      

Ultimamente dou com romãs em toda a parte. Estão em caixas de madeira à porta de todas as mercearias que não ficam longe da rua onde vivo ou aparecem de todos os tamanhos, em cores castanhas e vermelhas, embaladas em esferovite, nas bancas do mercado às quartas-feiras. Em Atenas, de onde voltei há poucos dias, havia-as de quase todas as cores nas lojas de comida em Exarcheia, ou no enorme mercado da Praça do Teatro, ou moldadas em cerâmica nas lojas de recordações de turistas que se multiplicam por todos os bairros da cidade. Vi umas quantas nas mãos de estátuas nos museus dedicados à antiguidade clássica e até completamente secas e ainda a pender da sua árvore junto às ruínas do teatro em Delfos. Durante boa parte da viagem esperei cruzar-me com a mítica romã azul que Yiorgos Seferis descreve na segunda parte de um poema intitulado “Tordo,” um poema que ele escreveu acerca da paisagem da ilha de Poros, pouco depois de ter regressado à Grécia durante a Segunda Guerra Mundial. Esta romã é a noite, e a obscuridade de um seio, e um pouco um talismã que permite uma estranha metamorfose, a de preencher alguém de estrelas. A romã desse poema é, enfim, um objecto misterioso e inexplicável, um pouco perigoso, como acontece com a maior parte das coisas que Seferis escreveu sobre o desejo. “Não te esqueces,” diz o último verso do excerto que cito aqui, mas aquilo de que cada um não se esquece é aquilo que as sucessivas imagens deste poema evocam em cada um, ao mesmo tempo algo privado e partilhado, com a sua própria profundidade.

— ‘Maybe the night that split open, a blue pomegranate,
a dark breast, and filled you with stars,
cleaving time.
                     And yet the statues
bend sometimes, dividing desire in two,
like a peach; and the flame
becomes a kiss on the limbs, then a sob,
then a cool leaf carried off by the wind;
they bend; they become light with a human weight.
You don’t forget it.’

(Tradução de Edmund Keeley)

2. 

Paestum, Parque Arqueológico, ca. 2018

Devo ter visto muito poucas árvores de romãs na vida e sei quanto disso é a tristeza de uma adolescência e idade adulta urbanas, por isso acho as romãzeiras as mais surpreendentes das árvores. Por isso também raramente esqueço as que vi. Sinto que são sempre um pouco minhas. Algumas destas míticas árvores estavam (estão? estarão?) num campo que é cortado pela estrada que vai dar ao parque arqueológico de Paestum, entre Nápoles e Salerno, onde se podem ver alguns dos mais bem conservados e mais monumentais templos da Antiguidade. Os templos são massivos e gregos, foram erigidos no tempo em que esta região era a colónia da Magna Grécia. Gente de quem sabemos pouco ali os contruiu entre o século VI e o século V a.C. Mal vemos os templos, sentimo-nos pequenos. Mal vi essas árvores senti-me contente de me livrar da monumentalidade, a alegria de ser perecível. Era o princípio do outono e elas estavam alinhadas como vinhas até perder de vista, com as romãs ainda não bem maduras. Os gregos e os romanos acreditavam que as romãs eram o fruto dos mortos. Um fruto amargo e doce, com uma mitologia ambivalente a acompanhá-lo. Nos frescos que estão no museu do parque arqueológico há romãs por toda a parte.

Frescos com Romãs, Museu Arqueológico de Paestum, 340 a.C.

Uma outra romãzeira de que me lembro bem está plantada numa campa bem mais recente e mais discreta do que qualquer templo, num cemitério em Roma. A árvore foi deixada mesmo ao lado da lápide e começa a florescer na estação em que a terra começa a morrer. Não penso nesta árvore sem pensar em Deméter e Perséfone. Não há muitos deuses gregos que morram e permaneçam mortos, ou que ao morrer adquiram poderes formidáveis, mas Perséfone é uma excepção. Há muitas coisas para dizer sobre esta deusa que morre jovem porque um deus se apaixona por ela.

Romãzeira, Roma

3.

Morta de fome no Hades, recusando-se a comer há vários dias, depois de ter sido raptada e violada pelo deus dos mortos, Hades, que se quer casar com ela, o fruto que Perséfone por fim come é uma romã. Mais tarde, assim é contado no Hino Homérico a Deméter, um desses primeiros poemas que nos chegaram em que a mitologia dos gregos foi cifrada em poesia, Perséfone contará à mãe, a deusa das colheitas e da agricultura, Deméter, como comeu esse fruto. É um dos momentos mais estranhos e mais extraordinários na história da poesia arcaica, um daqueles raros instantes na literatura desse período que chegou até nós em que duas mulheres têm uma conversa a sério.

Depois de Deméter ter percorrido toda a terra à procura da filha, a deusa esconde-se num subúrbio de Atenas, Elêusis, para se afastar dos deuses e deixar tudo o que estava na terra perecer. Zeus entende o lado impiedoso da raiva de Deméter e envia Hermes ao mundo dos mortos para pedir a Hades que traga Perséfone de volta. O deus deixa-a voltar, mas não sem antes lhe dar uma semente de romã. Quando a mãe e a filha se encontram, mal se abraçam, a mãe imagina o que aconteceu:

Enquanto [segurava a filha querida nos braços]
[de súbito o seu coração suspeitou de algum engano. Com um medo terrível,]
soltou-se [do abraço e logo lhe perguntou:]
“Minha filha, tu não [comeste nada enquanto estiveste lá em baixo,]
pois não? Fala [e não cales nada, para que ambas fiquemos a saber.]
Pois se não o fizeste, podes estar [entre os demais imortais]
e comigo e com o teu pai, [o filho de Crono de negra nuvem,]
viver honrada por todos [os imortais,]
mas se provaste algo tens de voltar lá para baixo e [as profundezas da terra]
habitar durante a terça parte [do ano]
e as outras duas junto de mim e dos [demais imortais.]
Quando na perfumada Primavera a terra florescer
com flores de todo o género, então da sombria escuridão
ressurgirás, para grande espanto dos deuses e dos homens mortais.  

Perséfone responde:

... às escondidas,
ele pôs-me na boca uma semente de romã, alimento doce como o mel,
e obrigou-me a comê-la contra a minha vontade.[i]

É com esta frase que Perséfone diz a Deméter que ficará para sempre ligada ao mundo dos mortos, que não pode exactamente voltar nunca, que nada tornará a ser como antes.

Perséfone é uma daquelas personagens da mitologia que tem dois nomes, que em certo sentido apontam para duas identidades, Perséfone, que é o nome por que é mais conhecida, e Korê, que significa simplesmente moça. Alguns estudiosos associam a mudança do nome à mudança de estado de Perséfone, de solteira para casada, de filha de uma deusa (Korê) para rainha do mundo dos mortos (Perséfone). As interpretações deste mito que olham para ele como metáfora de um ritual de transição na vida de jovens mulheres não resolvem a sua carga misteriosa e negativa: casada, Perséfone, que tinha sido Korê, não está exactamente viva. A passagem é, pelo menos da perspectiva de Deméter, brutal, dolorosa e acontece em aparência contra a vontade das duas mulheres. Podíamos dizer que há neste mito qualquer coisa da amargura e da acidez da semente, que traduz o lado inevitável da vida. À excepção da lírica de Safo e das tragédias de Eurípides, textos mais tardios, poucas obras da antiguidade estão tão interessadas na mentalidade das mulheres gregas da Antiguidade como este hino. E, contudo, não conseguimos entrar dentro da cabeça de Perséfone, não a conseguimos nunca entender perfeitamente.

Talvez isto ajude a perceber porque é que os gregos e os romanos usavam este mito para explicar outra coisa, a passagem das estações do ano. A terra morre no inverno, quando Perséfone tem de partir para o Hades e começa a renascer na primavera, quando ela regressa para junto da mãe. Mas Perséfone permanece tão impenetrável quanto todas as outras personagens à sua volta podem ser explicadas.

Num dos poemas de A Beleza do Marido, um livro sobre um casamento quase tão ambivalente e estranho como aquele que uniu Perséfone e Hades, Anne Carson comenta este poema num poema seu: 

Alguma vez ouviste falar do Hino Homérico a Deméter?
Lembras-te de como Hades cavalga para fora da luz do dia
nos seus cavalos imortais no meio de um pandemónio.
Leva a rapariga para um aposento frio lá em baixo
enquanto a mãe dela vagueia pela terra causando dano a tudo o que vive.
Homero narra-o
como a história de um crime contra a mãe.
Porque o crime de uma filha é aceitar as regras de Hades
coisa que ela sabe que nunca vai ser capaz de explicar
e assim despreocupadamente diz
a Deméter:
“Mãe, esta é a história toda.
Com malícia ele depositou
nas minhas mãos a semente de uma romã doce como o mel.
Depois pela força e contra minha vontade obrigou-me a comer.
Conto-te a verdade com pesar.”
Fê-la comer como?[ii]

A semente que Perséfone por fim come, contra sua vontade ou não, é um símbolo de muitas coisas no poema homérico: de núpcias, dolo, posse, juventude, inexperiência, sangue, fertilidade, morte. O gesto de Hades de alimentar Perséfone confirma o casamento mas lembra indirectamente os mortais que na terra estão a morrer de fome enquanto Deméter se recusa a fazer o seu trabalho, a voltar à normalidade. E todo o luto de Deméter está concentrado nesta pequena semente. Na cronologia do hino e na cronologia do desaparecimento de Perséfone, o casamento de Hades e Perséfone não se tinha tornado real e irreversível justamente até ao momento em que lhe é dada a possibilidade de voltar para junto da mãe, que é o momento em que ela come a semente e torna impossível um regresso permanente.

Anne Carson, no entanto, vê no gesto de Hades e na aceitação de Perséfone não o dolo ou o engano, mas cumplicidade, se não aceitação social. A semente exclui Deméter, cria um mundo que só pertence a Hades e Perséfone. Do que sabemos dos casamentos dos gregos antigos, a noiva partilhar uma refeição com o marido, em sua casa, era sinal da sua aceitação da união. Se Hades não enganou Perséfone e se ela sabia o significado da semente quando a aceita (sabia ou não?), então este casamento só existe a partir de um gesto de mútuo entendimento, da tácita negociação da regra que permite a Perséfone passar a existir entre dois mundos.

Este poema que é sobre sementes interroga-nos então sobre outra coisa: quanto daquilo que liga Hades e Perséfone é escolha, quanto disso é deliberado ou irracional, assente na paixão da curiosidade, na ignorância, no medo? Mas o hino não resolve nada disso, estende-nos uma semente, que para Perséfone é um símbolo de uma liberdade comprada (porque a inteligência de Hades é cobarde e canalha como costuma ser cobarde e canalha a inteligência dos patriarcas e a escolha que ele lhe dá não é escolha nenhuma, porque não é exactamente negociada), é também símbolo de desejo e morte e, sobretudo, de inexperiência, do peso de um futuro que ela não entende bem, mas que já não pode ser travado porque alguma coisa na silenciosa Perséfone mudou. A semente da romã é terrível e extraordinária, como as esperanças pouco razoáveis, as paixões tóxicas, e como o que é imprevisível e inesperado, as coisas que mudam a vida de um instante para o outro. Perséfone será a partir daqui aquela deusa que tem o poder formidável de decidir quem pode voltar do mundo dos mortos. Quando Hades, este deus das coisas mais tristes, a viu ainda viva, ele já sabia que ela era capaz disso ou não? E se sim, foi isso que lhe disse que eram iguais e se podiam entender? Mas e o que fazer da mocidade perdida de Perséfone? Da crueldade do inverno sobre a terra?

Então podemos dizer que o Hino Homérico a Deméter é baseado num mito que é sobre aprender a negociar com a dor, a solidão, o aborrecimento da monotonia de um tempo sem esperança, que existe em todas as vidas e não pode ser evitado, sobre deixar tudo morrer para deixar tudo renascer de novo, maniacamente, como acontece com Deméter na sua dor, talvez como aconteça com Perséfone quando ela aceita, ou escolhe, este corte.

4.

Havia outro dos mais jovens dos deuses gregos que tinha uma relação desastrosa com romãs. Numa tradição que não remonta nem a Homero nem a Hesíodo (onde o deus é filho de Zeus e Sémele), Dioniso é filho de Zeus e Perséfone. Nessa versão, o deus é despedaçado por titãs e do sangue dele, derramado no chão, brota uma romãzeira. Normalmente, a árvore e o fruto de Dioniso são outros, a vinha e a uva. Mas fará pelo menos um pouco de sentido que este fruto fosse visto como tendo alguma ligação, mesmo na mais obscura das tradições, ao mais misterioso dos deuses, aquele deus andrógino que conhecia o coração dos homens nos seus impulsos mais irracionais e que, como acontece com Penteu em As Bacantes de Eurípides, os podia levar a ver intoleravelmente um lado de nós próprios que às vezes preferimos negar ou fingir que não existe. Penteu pagará o mais terrível dos preços pela sua negação do mais tresloucado e divertido dos deuses, o deus do desvario. A vingança de Dioniso sobre Penteu, no entanto, não tem nada a ver com romãs. 

5.

Em 1887 foi escavada na Acrópole, não longe do pórtico do templo onde estavam as Cariátides, uma estátua de uma Korê a segurar uma romã. Essa Korê perdeu a cabeça literalmente. O mármore em que ela foi esculpida não veio de longe, de Penteli, ainda na Ática, o que quer dizer que esta Korê não tem uma origem exótica. O corpo elegante, as vestes, o tipo de penteado, colocam a escultura entre estátuas de uma estética que está entre o período pré-clássico e o clássico. Alguém a esculpiu algures no século VI a.C. Há ainda traços de tinta vermelha na romã, que é mais ou menos contemporânea dos templos monumentais que estão em Paestum, à volta dos quais alguém plantou campos de romãs.

D. H. Lawrence, que nasceu dois anos antes de esta estátua ser encontrada, ocupou-se no início da década de 20 de escrever um poema que é sobre encontros com romãs. É também sobre a progressão do desejo, sobre tentativa e erro. O poema desenrola-se em três partes de Itália, na Sicília, não assim tão longe dos tais templos monumentais, em Veneza e na Toscana.

D. H. Lawrence era bom a escrever sobre a natureza e não só por causa do guarda de caça que ele coloca no campo inglês no mais famoso dos seus romances. Um poemário onde se vê isso bem é em Birds, Beasts, Flowers, publicado em 1923. “Pomegranate” tem um tom provocatório, um narrador seguro de si, mas não há nele nem o mais leve traço do tipo de astúcia de Hades, da habilidade para a contemporização e para o jogo, há talvez exactamente o contrário disso, o lado corajoso, um pouco cego e um pouco temerário, de alguém capaz de se apaixonar e se perder de verdade, sem grande medo de errar ou ser julgado. Isto é particularmente notável tendo em conta a moralidade opressiva do contexto em que Lawrence começou a escrever (basta pensar que Lady Chatterley’s Lover acabaria em tribunal):

You tell me I am wrong.
Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?
I am not wrong. 

In Syracuse, rock left bare by the viciousness of Greek women,
No doubt you have forgotten the pomegranate trees in flower,
Oh so red, and such a lot of them. 

Whereas at Venice,
Abhorrent, green, slippery city
Whose Doges were old, and had ancient eyes,
In the dense foliage of the inner garden
Pomegranates like bright green stone,
And barbed, barbed with a crown.
Oh, crown of spiked green metal
Actually growing! 

Now, in Tuscany,
Pomegranates to warm your hands at;
And crowns, kingly, generous, tilting crowns
Over the left eyebrow.

Em D. H. Lawrence, Selected Poems, p. 89. Também aqui.

Esta pergunta “Who are you, who is anybody to tell me I am wrong?” é quase da ordem de um primeiro corte, de uma primeira incisão. A recusa impaciente de qualquer coisa. Digamos que essa recusa é a de deixar que outros julguem por ele como escolher as suas romãs, se é que isso é uma escolha e se é que é de romãs que estamos a falar. O que se segue são descrições de encontros com romãs em três paisagens diferentes. Estas romãs evocam e são também elas gente nessas paisagens, das mulheres gregas tão viciosas na Sicília que apagam a memória de romãzeiras em flor até às romãs que na Toscana aquecem as mãos. Podíamos dizer que a estrutura de tentativa e erro que dá ao poema a sua forma lembra um pouco a interacção entre as personagens de O Banquete de Platão, que é o diálogo platónico sobre o amor e a origem da filosofia. O poema vai progredindo, numa linguagem cada vez mais sexual, cada vez mais provocatória, desarmante e cómica em face do que sabemos da moralidade inglesa à data em que D. H. Lawrence escreveu este poema:

And, if you dare, the fissure!

Do you mean to tell me you will see no fissure?
Do you prefer to look on the plain side? 

For all that, the setting suns are open.
The end cracks open with the beginning:
Rosy, tender, glittering within the fissure. 

Do you mean to tell me there should be no fissure?


Mas o final não tem nada de sobranceria, é antes de uma lucidez e vulnerabilidade deslumbrantes:
 

For my part, I prefer my heart to be broken.
It is so lovely, dawn-kaleidoscopic within the crack.

A metáfora nestes dois últimos versos transforma-se em metamorfose: o coração é uma romã, precisa de ser partido para ser aberto. Aceitando isso, lá dentro há um caleidoscópio.  

(6.

Há uma irmandade de atitude entre este poema e outro que não tem nada a ver com romãs, escrito por Auden em 1957, sobre estrelas, “The more loving one,” onde aparece qualquer coisa desta atitude fraturada, contraditória e irresolúvel, que une desejo e decepção, prazer e dor, vida e morte. A aceitação lúcida e lúdica de Auden deste estado de contradição não é nem um pouco menos espetacular do que no poema de Lawrence:  

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.) 

 

7.

Odysseas Elytis nasceu em Creta em 1911 e uma das primeiras coisas por que ele se deve ter apaixonado na vida foi a paisagem da Grécia. Esta paisagem é um motivo constante e quase omnipresente nos seus poemas. Às vezes na limpidez exagerada e quase estereotipada das suas descrições da paisagem grega, imagino o mesmo tipo de olhar com que uma poeta que nasceu apenas um pouco mais tarde e noutro país as viu, Sophia.

O primeiro livro de Elytis continha já um dos seus poemas que iam ficar mais famosos, “A romãzeira enlouquecida,” um dos grandes poemas da tradição surrealista grega. Não é bem certo quem é esta romãzeira enlouquecida. Um pouco como as romãs com que D. H. Lawrence se encontra ela é em parte romãzeira e em parte talvez uma rapariga metamorfoseada em romãzeira, como sugere o tradutor inglês de Elytis, Jeffrey Carson. Há qualquer coisa de uma dança extraordinária na descrição desta árvore, com o narrador constantemente a descrever e a perguntar se a romãzeira enlouquecida corresponde àquela descrição.

Proud, full of danger, tell me is it the mad pomegranate tree
Who mid-world breaks the demon's storms with light
Who spreads from end to end the saffron bib of day
Richly embroidered with sown songs, tell me is it the
             mad pomegranate tree
Who hastily unhooks the silks of day?

In petticoats of April first and cicadas of August fifteenth
Tell me, she who plays, she who rages, she who seduces
Casting off from threat its evil black glooms
Pouring intoxicating birds on the sun's bosom

Tell me, she who opens her wings on the breast of things
On the breast of our deep dreams, is it the mad

             pomegranate tree?

Há nesta árvore que tem uma natureza dionisíaca qualquer coisa de irresolúvel, inexplicável, que se traduz na energia que o narrador atribui a todas as coisas que ele pensa que esta árvore pode fazer. Esta personificação da árvore é um subterfúgio retórico que recorda um pouco uma quadra de Pessoa, para as quais as edições críticas não têm uma data definitiva, mas que talvez tenha sido escrito por volta de 1935, em que uma romã é uma metáfora para descrever uma boca (sendo que o mecanismo aqui corre ao contrário, é o elemento humano que é assimilado ao mundo vegetal):

Boca de romã perfeita
Quando a abres p’ra comer,
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver? 

Podia-se dizer que a enumeração das múltiplas possibilidades deste fruto, nos dois poemas, corresponde a um estado de observação apaixonada. Aquelas asas que se abrem na profundidade dos sonhos podem ser um motivo freudiano que lembra Dalí, mas são também a descrição transfigurada – na visão de um pintor, como Elytis também era – da coroa de uma romã. A relação entre riso e romã no poema de Pessoa torna transparente uma coisa que existe em todos estes poemas, o lado um pouco misterioso deste fruto, metáfora que não se quer explicar de diferentes seduções. Isto é particularmente verdade no caso do Hino Homérico: tentar explicar como e porquê Perséfone come aquele fruto é como embater contra uma parede. Vai continuar a ser um dos momentos mais inexplicáveis de toda a história da poesia. Tentar explicá-lo pelo ângulo da mansa aceitação ou da simples coerção parece-me sempre demasiado óbvio e parece-me sempre reduzir o poder de deliberação de Perséfone, uma forma de a simplificar planamente. São leituras possíveis, claro, mas aquele momento no poema continua a ser mais inexplicável do que tudo isso. É um pouco como supor que as éticas dos gregos antigos não tinham as ferramentas para falar da agência complicada de uma rapariga, da sua formidável vontade, se não dos seus complicados poderes de decisão, quando não de escolha. Se pensarmos em Nausícaa, Cassandra, Antígona, Electra, sabemos que isso não é bem verdade. Então?

8.

Então. De vez em quando é preciso apaixonarmo-nos irracionalmente por poemas inexplicáveis, se por mais nada, por causa desse modo de ver em profundidade que deixa uma romã ser uma romã, uma rapariga, a chave que prende a rapariga no mundo dos mortos e a deixa voltar ao mundo dos vivos, que permite que se descreva uma romãzeira como uma coisa que dança ou a anotação da extraordinária cor azul num fruto normalmente vermelho.  

Não sei se há outro modo de ler poemas difíceis que não são solução para nada e que nenhuma paráfrase pode explicar definitivamente se não admitindo à partida que eles são uma espécie de viagem, que deles não tiramos quase mais nada para além do caminho que fazemos com eles. É por isso que ler certos poemas, tanto quanto rever certas paisagens, é capaz de ser uma maneira de resistir ao tempo. 

As últimas romãs em Delfos, Janeiro de 2022


[i] “Hino Homérico a Deméter,” Tradução de José Pedro Moreira em Hinos Homéricos, Introdução de João Diogo Loureiro, Tradução e Notas de Tatiana Faia, Miguel Monteiro, José Pedro Moreira, Imprensa da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.

[ii] Anne Carson, “IX. Mas que palavra era?,” A Beleza do Marido: Um ensaio ficcional em 29 Tangos, tradução minha, não edições, Lisboa, 2019.