Um mapa da cidade

 Thom Gunn

Tradução de Tatiana Faia

 

Estou no cimo de uma colina e vejo
abaixo de mim um luminoso país onde revejo
que nele pelas duas tem o marinheiro ébrio de tecer;
a pausa transiente, o seu marinheiro desaparecer.  

Reparo, ao descer o olhar pela colina
em braços pousados numa janela de esquina;
E na teia de escadas de incêndio segundo as normas;
Move-se o possível, as cinzentas formas. 

Aí agarro a cidade, completa;
E cada forma de luz repleta
É minha, ou corresponde a minha,
Aquela intermitente aquela outra firme brilha. 

Este mapa é território do meu deleite.
Entre os limites, noite após noite,
Observo o avanço da doença que traz a morte,
Reconheço o meu amor da sorte. 

Vejo nas luzes recorrentes
Possibilidade sem limites,
O apinhado, estropiado e inacabado!
Por nada quereria esse risco mitigado.   


A MAP OF THE CITY

I stand upon a hill and see
A luminous country under me,
Through which at two the drunk sailor must weave;
The transient's pause, the sailor's leave.

I notice, looking down the hill,
Arms braced upon a window sill;
And on the web of fire escapes
Move the potential, the grey shapes.

I hold the city here, complete;
And every shape defined by light
Is mine, or corresponds to mine,
Some flickering or some steady shine.

This map is ground of my delight.
Between the limits, night by night,
I watch a malady's advance,
I recognize my love of chance.

By the recurrent lights I see
Endless potentiality,
The crowded, broken, and unfinished!
I would not have the risk diminished.

Sobre o terramoto, à distância

Marija Dejanović
Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

Metade do edifício colapsou
Aquelas paredes que deram asma ao meu irmão 

A outra metade foi de onde
há vinte anos
um vizinho atirou o cão
e um par de anos mais tarde, a si próprio também 

Nos corredores
brinquei com Barbies
e cuspi aguarelas
para pintar a porta do quintal
quando ficava sozinha em casa

Ainda acredito
que não merecíamos os castigos
que se abateram sobre nós

Nas entranhas sinto o pássaro que voa sobre
as casas arruinadas
as traves fendidas
o pranto das bicicletas e as costas curvadas das pessoas

Atravessam em pijamas e chinelos
um mal estar que partilham
como que passando por águas profundas

Lendo
um amigo de infância escrever
que alguém devia finalmente deitar abaixo aquele velho
edifício
porque os seus tijolos caem no telhado da sua casa
sempre que a terra estremece
alguma coisa dentro de mim cai como um tijolo
e fica em silêncio

CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.

A mudança (um poema de Marija Dejanović)

Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

a mudança do nosso organismo aconteceu
durante a noite 

deitámos fora a nossa armadura de carne
e esquecemo-nos de como nos sentir oprimidos 

isto não nos incomodou grande coisa 

o corpo vibra ao deitar-se junto ao lago

um lírio cresce das suas orelhas
e a sua espinha
é uma seta
apontada a sul 

para onde vão as cores
quando as pétalas caem e regressam ao abraço do chão? 

para dentro do teu nariz

elas vão para dentro do teu nariz


O perfil de Marija Dejanović na Enfermaria 6 pode ser lido aqui.
A tradução inglesa do livro A Gentileza Separa a Noite do Dia está disponível aqui. Recomendamo-la vivamente.

"On weakened legs I walked around the town the whole day. I took photographs"

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

Durante trinta anos, o fotógrafo húngaro André Kertész esgotou, caminhando,
a rede das ruas de pelo menos três cidades. Aos oitenta e cinco anos,
confinado pela tristeza ao seu apartamento da Quinta Avenida de Nova Iorque,
fotografa com uma Polaroid tudo o que encontra à sua volta.
Com os movimentos subtis de uma estátua de vidro, muda posições no quarto.
Altera o eixo de focagem do seu olhar.
Não precisa de ir a lado nenhum.
E diz: «Esquecia-me de comer. Tirava fotografias. Começava com a luz do sol
de manhã e esperava pela tarde. Fotografava e fotografava. Esquecia-me de tomar os
[medicamentos.»
Dois anos mais tarde, no livro que intitulou «Da minha janela», podemos ver
a cidade dissolver-se para lá do vidro, podemos ver a sombra duma mão ameaçar uma
luzidia maçaneta sem nunca a alcançar, um transparente busto de vidro digerir
devagar as árvores nuas do jardim, as torres gémeas acima do parapeito.
Podemos observar o que não vemos.
Depois voltou a sair. Fotografou no jardim o espasmo de uma menina a correr
e meia silhueta de um homem vestido de preto a desaparecer. Fotografou-se em Paris
a si mesmo, duplo, de olhos fechados, e uma porta branca espatifada e entreaberta [reflectida num espelho.
Todos os dias recolhe frágeis vespeiros sem mel
inquietos favos de zumbido.
Todos os dias os despeja para dentro do seu infindável arquivo.
Não tem modo de parar com isso
Não é um lugar donde lhe seja permitido fugir.
Cada formulação, cada fabricação da morte
ressuscita dentro do zumbido que pede mais.
Mais neve, mais uma rede de vestígios
Mais um reflexo da sombra na cal
Mais uma caminhada numa estranha suspensão de alegria
quando deixa que o ferrão o morda sempre mais uma vez.


O outro poema de Katerina Iliopoulou na tradução de José Luís Costa nesta série pode ser lido aqui.