Putin: a loucura da nostalgia imperialista

Traduzo um texto de Michel Eltchaninoff publicado na revista philosophie magazine, 21 de março. É sobre as alucinações maléficas de Vladimir Putin, alimentadas por pulsões e narrações do tempo da URSS.

«Desde a invasão da Ucrânia tenho, por vezes, a impressão, ao ouvir Vladimir Putin, de que ele regressou à infância. Este homem, nascido em 1952, Leningrado, fala cada vez mais da forma como se fazia na URSS. Isso marcou-me logo a três de março, quando reconheceu publicamente baixas humanas na sua “operação especial”. Debitou aí uma narrativa de guerra canónica. Contou a história sacrificial de um jovem oficial do Daguestão, Nourmahomed Engelsovitch (sic) Gadjimhomedov, que “ferido, se bateu até ao último sopro de vida e fez explodir com uma granada os soldados que o cercavam, matando-se no ato. Foi até a este extremo porque soube a quem fazia frente: neonazis que humilham os prisioneiros e os matam selvaticamente.” O presidente russo ressuscita as narrativas de guerra que embalaram a sua infância — recompondo a realidade.

Quarta feira, 16 de março, Vladimir Putin carregou noutra tecla, também ela clássica, do teclado soviético: a denúncia dos traidores vendidos à burguesia imperialista. Diante do governo e dos representantes das regiões, voltou às sanções ocidentais. Para lhes fazer frente, cada um deve participar na economia patriótica do putinismo. O presidente deplora a existência de uma “quinta coluna” composta de “nacionais-traidores” que “ganham o seu dinheiro aqui mas vivem acolá, nem sequer num sentido geográfico, mas nos seus pensamentos, na sua consciência de escravos.” Visa simultaneamente os oligarcas, que poderiam ter a tentação de não apoiar o esforço de guerra, mas também a oposição democrática, “que está, na sua cabeça, além”. Ataca “esses que possuem uma moradia em Miami ou na Côte d’Azur, que não conseguem viver sem foie gras, ostras e pretensas liberdades de género.” É quase um Maïakovski, poeta futurista dos anos de 1920: “Come ananás, mastiga perdizes / chegou o teu último dia, burguês!” Vladimir Putin ameaça os novos russos e quem ousa manifestar-se contra a guerra: “O povo russo saberá sempre distinguir os verdadeiros patriotas do lixo e dos traidores, cuspi-los-á muito simplesmente como insetos absorvidos sem querer.” Poético. Putiniano, mas de tendência hardcore. Completamente leninista, também. Foi Alexandre Soljenitsyne quem recordou, no Arquipélago do Gulag (1973), que o líder bolchevique tinha, também, queda para metáfora entomológica. Num artigo de 1918, afirmava que o objetivo da revolução era a de “limpar a terra russa de todos os insetos nocivos.” De quem falaria? Soljenitsyne admite ser impossível “proceder a um estudo exaustivo dos casos incluídos nesta larga denominação de insetos”. A lista seria muito longa, dos professores de liceu aos padres. E segundo Putin? Por enquanto, aponta para as grandes fortunas e a oposição democrática. Mas e amanhã? Acabo de ler no Telegram que os professores que saíram da Rússia mas continuam a dar aulas à distância vão ser demitidos. Quanto aos padres que se opõem aos delírios metafísico-homofóbicos do patriarca Cyrille, são considerados traidores. Foram lançadas as primeiras acusações por “falsas informações” sobre o conflito. Quais serão as seguintes, na lista dos “insetos” a “cuspir”? Irá Putin iniciar repressões em grande escala, nacionalizar empresas, montar uma economia de subsistência, tentar reconstruir uma lógica de blocos, fechar o país, como no tempo da URSS? Nada é impossível, desde que se iniciou a sua aventura bélica na Ucrânia, parecendo embriagar-se com a gesta soviética — acrescentando-lhe uma pincelada de religiosidade e uma exaltação imperial à maneira dos Tzars.

Quem poderia esperar isto, trinta anos depois da URSS autocolapsar? Talvez a escritora, e Prémio Nobel, da literatura Svetlana Alexievitch, cujo livro O Fim do Homem Soviético [extraordinário], em 2013, me retirou do sono histórico. Dando a ler a voz de cidadãos soviéticos banais, ela exprimiu o desatino de milhões de pessoas normais espantadas por acordarem, no início dos anos 90, num mundo que já não era o delas. Em russo, o seu livro chamava-se, aliás, “Uma época de segunda mão”. Antes de toda a gente, a escritora bielorussa, que na época fui visitar a Minsk, tinha apreendido a irreprimível nostalgia do país natal. “O soviético é um bom homem, era capaz de ir à Sibéria, no meio do nada, em nome de uma ideia, e não por dólares.” Hoje, Vladimir Putin faz reviver esse mito, mas numa repetição trágica e sangrenta, contra o “povo irmão” ucraniano. Ele que proibiu qualquer trabalho de memória sobre o século soviético, reativa este último num gesto simultaneamente demiúrgico e suicidário. Faz-me pensar no que dizia o grande dissidente polaco Adam Michnik, que passou vários anos nas prisões do regime. Quando lhe perguntavam o que havia de pior no comunismo, respondia: “O que acontece depois”. Estamos lá.» 

 

Italiano na Grécia - Um poema de Vittorio Sereni

Vittorio Sereni em Pasturo em 1936

Tradução de Tatiana Faia

De Diario d’Algeria, 1947

 

Primeira noite de Atenas, estende-se o adeus
dos comboios que fogem para as tuas periferias
cheios de agonia no longo poente.
Como uma mágoa
deixei o verão nas curvas
e mar e deserto é o amanhã
sem mais estações.
Europa Europa que me olhas
descendo desamparado e absorto num meu
escasso mito entre multidões de brutos,
sou um teu filho em fuga que não conhece inimigo
que não a própria tristeza
ou alguma rediviva ternura
de lagos de folhas atrás dos passos
perdidos,
estou vestido de pó e sol,
vou amaldiçoar-me cobrir-me de areia por anos.

Pireu, Agosto de 1942

A guerra de Putin, entre a geopolítica e a psicopolítica

Escrever sobre esta guerra, acerca da qual, e até um certo ponto (fenomenológico e retórico), se deve, pelo menos por enquanto, dizer, como no amor, que se pode descrever mas não explicar, só pode ser de modo ensaístico (à maneira de Montaigne, um dos primeiros europeus a genuinamente desconfiar da sua clarividência, exemplo muito pouco seguido). Isto se não padecermos da síndroma da Nato ou tivermos sido inoculados por uma nostalgia imperialista do velho século xx (por vezes andam a par).

Lido Cólera e Tempo (CT) de Peter Sloterkijk, conseguimos, porém, guiar-nos por categorias menos líquidas do que deixava antever o primeiro parágrafo: em vez dos dispositivos eróticos do desejo (combustível do consumismo desenfreado) estamos perante dispositivos timóticos (cólera, ressentimento, vingança…). Sloterkijk relembra-nos que a Europa começou pela cólera de Aquiles (início da Ilíada), a matriz genésica da nossa civilização está na ativação de forças destrutivas desnorteadas, mas não completamente estéreis, que à sua maneira acabaram por construir a mais bela de todas as civilizações (digo isto por amor).

A Atenas clássica será muito mais erótica do que timótica. Aquiles tinha, no fundo, perdido para Ulisses, astúcia em vez de cólera. O movimento que laicizou o saber, os filósofos, idealizando ou observando, nunca radicalizaram o discurso ou a ação (a exceção do movimento cínico é isso mesmo, uma exceção). O regresso do religioso, de um religioso unidimensional e avassalador (que benévola era a multirreligiosidade grega!), contudo, recuperou o princípio timótico e espalhou a cólera divina sobre a humanidade insegura e ansiosa, que aderiu com uma facilidade assustadora a um comandante supremo que a castigava sem porquê (não há qualquer hermenêutica possível para a cólera divina, essencialmente pré-discursiva).

Porém, com o tempo, a vitória do Novo Testamento sobre o Velho e a posterior «morte de Deus» a golpes de crítica racional, a religião foi-se desfazendo dos seus vetores mais coléricos (embora com regressões, as Guerras de Religião do séc. xvii foram incrivelmente destrutivas e cruéis). Até que no século xx apareceu um novo grande banco de cólera (este dispositivo coleta as cóleras individuais e age, em troca, com a força conjunta de todos os seus depositantes): o comunismo (nos formatos históricos do leninismo, estalinismo e maoismo). Este novo messianismo assente na luta de classes (com nuances no caso maoista) arruinou tudo o que se lhe opunha (um Messias não pode aceitar oposição sem cair numa contradição insanável). A timótica comunista acompanhou, segundo Sloterdijk, uma invariável que nasceu na Revolução Francesa de 1789: «a deceção e frustração que produziram sempre, além da renúncia e de uma rejeição cínica das ilusões do passado, formas agudas e actuais de cólera.» (CT, p. 133) Contrariaram, pois, a recomendação aristotélica: «Nunca odiar, mas desprezar muitas vezes». Preferiram vincar a indignação e encorajar metodicamente a cólera, a principal «missão psicopolítica que começa durante a Revolução Francesa.» (Sloterdijk, CT, p. 140)

Finalmente, a década de 90 do séc. xx parecia, agora sim, revogar definitivamente as forças timóticas da cólera, ressentimento ou vingança. A queda do Império Soviético colocava a «A luta continua!» no reino da fantasmagoria (apesar de ainda pontuar os comícios do PCP). Hoje parece só haver fúrias de descontentamento concentradas em atos isolados e sem perspetiva de futuro. É que, como refere Niklas Lhumann, se os conservadores começam pela deceção, os progressistas terminam na deceção. Mesmo o radicalismo do islamismo político parece trabalhar, sem se vislumbrar qualquer redenção, em projetos de autodestruição. Aconteceu, portanto, nas palavras de Sloterdijk «a rejeição do primado do timótico em favor de uma erotização sem limites.» (CT, p. 222) Já não concentrada na líbido sexual (se é que alguma vez se centrou aí totalmente), mas num universal querer-ter e querer-alcançar. Daí que o livro mal-amado de Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, seja, ainda para Sloterdijk, o que melhor resume o zeitgeist do fim do séc. xx.

Até que o presidente Vladimir Putin, herdeiro de um país continente, no qual a morte provoca bem menos sobressaltos do que no Ocidente (ao qual, primeiro, quis pertencer e depois deixou de querer). Rússia, cuja história só retém quem consiga o cognome de «grande», compôs um presidente talvez sem muito princípio de realidade (filtrada pelos seus esbirros para que só lhe cheguem as moléculas que confirmam o que ele vai congeminando), talvez paranoico, como muitos pressagiam, talvez encurralado por pesadelos tecidos de ressentimento e vontade de vingança. Talvez outras coisas. É que, ao justo, ninguém faz a mais pálida ideia deste retorno das forças timóticas no reino da infinita e ilimitada erotização, também a da Rússia, dos oligarcas com iates de 100 milhões de dólares à classe média do Iphone de última geração. Há quem diga que nada disto é inesperado, que a guerra se preparava há 20 anos. Mas cheira-me a fazer prognósticos no fim. Tanto mais que o estilo, discursivo e corporal, de Putin se alterou de 2014 para cá: mais colérico, ameaçador, longamente descritivo e messiânico agora.

O que tenho lido na imprensa compõe um emaranhado de descrições e explicações sem linhas de sentido seguras, tudo pode ser uma e outra coisa. As questões geopolíticas pesaram, com certeza, na decisão, as psicopolíticas também, com a elite putiniana a transbordar de hormonas timóticas. Mas talvez devamos acrescentar um stress psicótico ou algum trauma dos habitualmente repertoriados pela psicanálise. Pode ser uma questão estética, enquanto sensibilidade bélica (os aviões de combate são considerados belos por muitos pais de família). Um desafio vindo do além, histórico ou religioso. Mas é seguro que o universo mental de Putin é o da violência, em 2015, quando entrou na guerra síria, terá dito: «As ruas de Leningrado ensinaram-me uma coisa: se a luta é inevitável, bate primeiro.»

Tudo isto apesar, ou por causa, de um contínuo declínio interno. A Rússia não deixou de declinar nos últimos 20 anos, exceto no campo mais estritamente militar (e mesmo este talvez não seja tão florescente como se pensa). Ajudado pelos combustíveis fósseis, Putin fez da Rússia uma «bomba de gasolina com mísseis nucleares», hard power bruto. Mas todos os outros domínios, do económico ao social, estão iguais ou piores do que há 20 anos. O nível de vida, a inovação, a cultura, as liberdades…, tudo isto se deteriorou. Com desigualdades superiores, por exemplo, às da China (estudo de Filip Novokmet, Thomas Piketty e Gabriel Zucman de 2018). País de cientistas, romancistas, músicos, bailarinos…, há agora um presidente que mantém os seus raríssimos convidados a 20 metros de distância, prova do falhanço da vacina Covid-19 Spoutnik.

Por mais que se diga, não interessa a Putin e à elite que o rodeia e se exercita em constantes genuflexões construir um qualquer futuro, mas regressar ao passado, reconstruir, mutatis mutandis, o grande império soviético (cuja queda foi, nas suas palavras, o maior fracasso geopolítico de todos os tempos). E, por isso, vê na Ucrânia virada para o Ocidente, com uma visível vontade de democracia, um desafio insuportável, uma traição. Alia-se a isto a crença, contraditória relativamente ao medo que tem do Ocidente, de que os países democráticos estão decrépitos, em 2019 disse ao Financial Times que o «pensamento liberal se tornou obsoleto».

Esta mistura de impulsos, uns mais timóticos outros fundados na velha teoria política da dicotomia amigo/inimigo de Carl Schmitt, que prolongou a célebre tese de Cal von Clausewitz segundo a qual «a guerra é a continuação da política por outros meios», pôs a Rússia e o seu presidente a sós consigo, isolada e ameaçada pela possibilidade, bem real, de um colapso económico (que, como é habitual, atingirá os mais desfavorecidos). Legado de um homem de 69 anos, ressentido e colérico, egomaníaco, talvez paranoico. Nada mau para alguém que tinha prometido estabilidade e prosperidade aos russos. Como escreve Piotr Smolar no Le Monde de 4 de março, Putin pôs, tudo o indica, uma bomba debaixo da sua poltrona. Ignoramos o comprimento do pavio.

Margarita Liberaki

Penso que devia haver um teste psicológico básico que candidatos a políticos deviam ser obrigados a fazer. Só poderiam passar a candidatos a eleições se fossem aprovados nesse procedimento. Às vezes até para os trabalhos mais básicos uma pessoa tem de ir a pelo menos duas entrevistas em que as suas competências são, normalmente num espetáculo triste e pouco dignificante, dissecadas para medir a sua competência na tarefa que pretende exercer. Conversas, exercícios, interacções de grupo. Tentei uma vez demover-me de um emprego para passar para outro bem mais simples, que me deixaria com mais tempo para plantar morangos e escrever versos, as duas únicas actividades que no fundo me interessam, mas não consegui convencer os entrevistadores a darem-me a oportunidade de dar cabo de uma carreira profissional na qual não estava particularmente investida. O que correu mal neste plano? A segunda entrevista, claro. As minhas prioridades erradas transpareceram todas na segunda entrevista. Pela mesma lógica, haveria muito mandato político absolutamente vergonhoso a que este processo simples nos teria poupado. Se não tens um vocabulário de mais de cinquenta palavras ou se és um sociopata narcisístico com uma personalidade pouco colaborativa, e não lidas bem com discussão e crítica, se não te importa o bem comum, se te agradam ataques verbais gratuitos que se destinam a obliterar uma certa empatia por outras pessoas para explorar divisões internas e/ou externas e incitar o ódio, se não queres saber do sistema nacional de saúde, de ajudar a criar as condições que promovem níveis de acesso elevados a educação e cultura, não devias poder ser candidato a dirigente de um pequeno aquário com um par de peixinhos dourados, quanto mais de um país com um arsenal nuclear. Tudo isto é tão óbvio que não devia sequer chegar a ser controverso.

E, contudo, estou a escrever estas linhas que não servem para nada sob o efeito das imagens, bastante surreais, da reunião de Putin com o seu conselho de segurança, em que ele pergunta a cada um dos elementos se querem dar voz a uma opinião dissonante quanto ao projecto de invadir a Ucrânia ou, como ele lhe chama, defender a Rússia e/ou a Ucrânia, embora nem nessa mentira ele seja particularmente sistemático. Enquanto o vídeo destas imagens passava, a amiga que estava sentada ao meu lado tapou instintivamente os olhos com as mãos na cena em que se vê Putin a pressionar o seu chefe do serviço de espionagem, Sergei Naryshkin, como se ele fosse um menino não muito inteligente com quatro anos de idade, para ele dizer se concorda que a Rússia apoie a independência de Lugansk e Donestsk. O chefe dos espiões parece relutante e genuinamente nervoso. Engana-se e diz que apoia a inclusão destes territórios na Rússia, é pressionado de volta por Putin, que lhe diz que não é isso que ele lhe está a perguntar.

Talvez haja qualquer coisa nos momentos de grande mediocridade moral que nos infantilize enquanto adultos, porque estamos a ser diminuídos e porque reconhecemos esse aviltamento. Estou em crer que qualquer coisa na expressão deste homem trai o facto de que ele reconhece a loucura abjecta deste momento. Putin, no entanto, sentado a grande distância do seu conselho de segurança, chamando-os um a um para declararem a sua aliança a esta ideia de merda e incrivelmente estúpida que é invadir um estado soberano a que boa parte da população da Rússia gosta de chamar de país irmão, com um presidente a duras penas democraticamente eleito e que afinal não é palhaço nenhum, deixou ele próprio de sequer tentar manter a aparência de chefe de estado vagamente democraticamente eleito. O que estamos a ver quando vemos esta cena é, então, o tipo de teatro que lembra um pouco as cenas dos juramentos de gangsters em filmes sobre a máfia, um pouco como notava Shaun Walker, cronista do The Guardian, na sua lúcida análise deste momento. E é uma cena decadente, exceptuando que há mais proximidade entre as figuras que aparecem naquele quadro de Thomas Couture, Os Romanos da Decadência, do que entre Putin e o seu conselho de segurança. Enquanto os romanos da decadência estão todos mais ou menos ao molho e com fé nos deuses, à espera de Alarico ou da próxima orgia, julgados moralmente por um par de filósofos que observam à distância, não se confundindo com os restantes, a distância a que Putin se coloca do seu conselho não é certamente a de um rei-filósofo e serve para lembrar quem é que segura os fios destas marionetas. É também a longa distância da irracionalidade e do oportunismo dos autocratas e dos bullies. É horrendo de ver, além de inestético. Significa que nada do que se vai passar a partir daqui obedecerá a grandes lógicas. Basta pensar que a Ucrânia é um país de quarenta milhões de pessoas e que, mesmo que esta invasão corra espetacularmente bem para Putin (no fundo não correrá bem para muito mais gente), é extremamente caro e difícil oprimir quarenta milhões de pessoas a longo prazo. Esta cena lembra então demasiado Calígula ou Nero e dá mesmo vontade de perguntar onde anda a guarda do pretório.  

            A minha amiga de mãos a tapar olhos que viram, tudo considerado, bastantes coisas, em diferentes continentes do mundo, ao longo de umas quantas décadas, lembrou-me, no entanto, a imagem de outra amiga, há uns anos, sentada numa fila central num pequeno teatro em Oxford, a tapar os olhos com as mãos no final de uma peça que tínhamos ido ver, levada a palco por um grupo de alunos gregos. A peça chamava-se No 10 de Junho e o dramaturgo era Yiorgos Iliopoulos. O texto da peça é baseado num evento histórico de que nunca tínhamos ouvido falar, nem eu nem a minha amiga que é grega, um daqueles eventos tão brutais e tão traumáticos, mas ao mesmo tempo tão remotos, que ficaram enterrados na memória de um século. Distomo era em 1944, e ainda é hoje em dia, uma pacata vila no sopé do monte Hélicon. Fica a duas horas de carro de Atenas e a meia hora de Delfos.  Em 1944, nas imediações da vila, uma coluna de soldados alemães foi atacada pela resistência grega, três soldados alemães foram mortos, num ataque que eles assumiram ter vindo da direcção daquele lugarejo. O que se seguiu foi de uma barbaridade absolutamente atroz. Os soldados alemães tomaram a direcção da vila, com um comandante de apenas vinte seis anos à cabeça, e, na noite de 10 de Junho, assassinaram brutalmente, numa espiral de loucura absoluta e absurda, cerca de 200 pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e anciãos. A disputa prolonga-se ainda hoje, em tribunais italianos, gregos e alemães, sobre se o ataque de facto terá partido da vila, a maior parte das evidências sugere que não, e mesmo entrar neste nível de discussão é já um erro repugnante. Assume que é aceitável ou que em algum mundo pode fazer sentido ou ser justificável que alguém armado até aos dentes entre gratuitamente em casa de outra pessoa e a surpreenda para a matar na sua quietude doméstica e indefesa.

O que me leva ao ponto, não particularmente relevante em face do nível de terror deste evento histórico, de explicar porque é que, apesar da audiência daquele teatro se encontrar bastante emocionada no final da peça, a peça me pareceu falhada, com qualquer coisa de uma chantagem emocional predatória e imatura, que diz qualquer coisa, porém, da relação da minha geração, educada no lado pacífico e confortável da Europa, com níveis de violência para os quais a maior parte de nós não tem – e eu, pelo menos, preferia continuar a não ter – uma empatia que permita entender intimamente, com uma clareza que não pode ser esteticizada ou adornada de forma nenhuma, o indizível nível de horror que deu origem à relativa estabilidade social da Europa em que crescemos. Neste sentido, o motivo por que acho que esta peça falha torna-se, então, bastante simples de explicar. Nenhuma das personagens que o dramaturgo coloca em cena chega a ser, em momento nenhum, mais do que uma função da sua própria morte, nunca chegam a habitar qualquer coisa que se pareça com uma individualidade plena, são apenas o que em convenções narratológicas se chama personagens-tipo: o padre da aldeia, que está ali para ser decapitado pelos nazis, ou a rapariga prestes a casar-se que está ali para ser violada por todo o regimento, ou a mulher grávida, cujo destino final, terminados os primeiros quinze minutos da peça, aguardamos com grande desconforto e terror. A instrumentalização que o texto faz das suas personagens acaba por repetir a instrumentalização que os nazis fizeram dos corpos capazes de sentir dor, e das emoções, capazes de serem completamente monopolizadas pelo horror, daquelas pessoas. Todos os textos literários, claro, usam as suas personagens, porque todas elas têm sempre de funcionar a um nível que é puramente retórico, o de passar a mensagem para que a arquitetura desse texto em particular converge, a agenda do escritor. O dramaturgo que escreveu esta peça, Yiorgos Iliopoulos, não é particularmente jovem, mas é aqui autor de um texto que me parece particularmente imaturo. E é-o em parte pela dificuldade de falar complexamente de uma coisa que é particularmente vital que um bom dramaturgo não perca de vista, o facto de que as vidas humanas, as históricas, as ficcionais, a do mais humilde figurante – se o texto não for uma sátira – não podem ser completamente instrumentalizadas pela sua função retórica no texto, tem de haver um equilíbrio qualquer, aquilo que no fundo é a poesia que se encontra nos textos, como existe de resto no mundo real, entre o que é geral acerca das nossas vidas, que é tão transparente nas convenções sociais nas quais vivemos, e o que é único, a forma como uma vida humana não contém mais nada que não exactamente essa vida, o que começa na singularidade de um rosto e continua a manifestar-se em todos os momentos na idiossincrasia de gestos, emoções, maneiras de falar, de responder, dos afectos que cultivamos, dos espaços que construímos e são os nossos e de alguma forma nos expressam, todas essas coisas que explicam a nossa singularidade, o que permite entender indirectamente porque é que o nosso amor pelas pessoas que amamos é singular, porque está vitalmente ligado a essas particularidades. A peça de Iliopoulos falha então, a meu ver, porque ele não consegue nunca mostrar isto. A nossa empatia é manipulada de uma maneira formulaica, que vai simplesmente acumulando o genérico sobre o previsível, de modo que aquele texto nunca se converte no exercício de empatia profunda e radical que um texto que se proponha a falar sobre este tipo de facto histórico tem de ser. Em vez disso, fiquei mesmo a coçar a cabeça e a perguntar-me uma coisa da qual normalmente não duvido: se podíamos ter continuado a escrever poesia depois de Auschwitz.  

Em discussão com a audiência no final da peça, o dramaturgo caiu naquele cliché imperdoável, que nos transporta automaticamente de volta a momentos medíocres em salas de aula de história de adolescências confortavelmente ocidentais, em que a Segunda Guerra Mundial se misturava com a nossa profunda e indiferente urgência mecânica de ouvir a campainha tocar, para voltarmos a ser livres de novo. O cliché era o de que ele tinha escrito aquela peça para a morte daquelas pessoas não ter sido em vão, o que a meu ver expôs outro problema que me pareceu estar patente naquele texto, o de se tratar um pouco de pornografia histórica, da do género que é produzida não para examinarmos com cuidado algo que nos deixa atónitos, mas para nos sentirmos satisfeitos com quão bonzinhos somos.

Digamos então que o massacre de Distomo, a 10 de Junho de 1944, foi completamente em vão e não serviu para mais nada do que tornar o mundo um buraco mais negro e deplorável do que ele precisa de ser e nisso é paradigmático da forma de doença colectiva que todas as guerras são. Temos de nos libertar desta crença de que a memória do terror é profilática e nos converte em testemunhas indirectas e entendidas do que esse terror significa, não converte. Essa pretensão é nociva e errada. A boa historiografia devia era dar-nos a dimensão daquilo que a nossa experiência não pode entender completamente e que se prende com a proporção subjectiva do horror que certos eventos infligem nas pessoas que os têm de viver, que não é, pelo menos ainda, parte da nossa experiência. É o tipo de coisa que explica porque é necessária a dose de empatia que Ésquilo no século V a.C. sentiu pelo exército invasor persa, contra o qual ele próprio tinha combatido, e cuja derrota é o tema de Os Persas. A ficção desse ponto de vista pode ser bem mais eficaz do que a historiografia. Pense-se num filme muito mal recebido à época em que estreou, que nem sequer é bem um filme, é quase uma colecção de apontamentos sobre algo que não pode ser completamente comunicado por um acto narrativo, Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini (1948), passado numa Berlim completamente arrasada pela guerra, que segue a luta pela sobrevivência, e sem redenção, de uma criança.

Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini, 1948

A morte precoce da mais insignificante das criaturas, por exemplo, lembrando um poema de Cesariny de uma extraordinária e estranha dignidade, um rato morto com que nos cruzamos num parque, não nos serve para nada. É apenas e só um invólucro de dor tremenda e sem sentido que não pode servir a ninguém para absolutamente porra nenhuma. A experiência disso é o que um poeta grego, Yiorgos Seferis, definiu, num poema escrito nesse mesmo ano de 1944 que talvez seja de reler com cuidado, pedindo uma expressão emprestada a um verso do Agamémnon de Ésquilo, como a memória da dor que perpetua a dor (μνησιπήμων πόνος). Toda a didática da memória é detestável se o seu propósito é mascarar-se de mecanismo de compensação desonesta por uma perda que deixa no seu lugar uma escuridão total que nunca nada, ninguém, poderá compensar. A morte precoce de pessoas, que é parte fundamental do negócio que uma guerra é, deixa apenas uma dor interminável e um vazio tremendo para quem terá de viver com essa perda. É tudo. E dá vontade de citar aqui um ensaio de Natália Ginzburg em As Pequenas Virtudes, escrito no pós-guerra, em que ela diz que não podemos mentir nem nos nossos livros nem nas coisas que fazemos, que isso era a única coisa decente que tinha saído da guerra que a sua geração tinha acabado de viver.

Margarita Liberaki

Em 1946, a então muito jovem romancista grega Margarita Liberaki publicou o seu segundo romance, Τα Ψάθινα Καπέλα, cujo título à letra significa Os chapéus de palha, mas que em inglês foi traduzido (por Karen van Dyck) como Three Summers e republicado em 2019 pela NYRB. O romance é sobre três irmãs que crescem numa casa num subúrbio de Atenas ao longo de três verões. É um romance sobre a passagem para a idade adulta, sobre a relação entre as irmãs e a mãe e a tia, sobre a ausência misteriosa de uma avó polaca, que desapareceu um dia sem deixar rasto ou dar explicação, sobre a curiosidade que nos faz amar estar vivos. Contra o fundo do que é o mundo encantado do verão, as colheitas crescem, constrói-se um observatório para olhar as estrelas, há longas caminhadas, surgem os primeiros amores, os amigos que chegam e partem, encontros e conversas intermináveis e há segredos que se revelam à medida que as irmãs passam de raparigas a mulheres. O centro da narrativa é a irmã mais nova, Katerina, uma personagem maravilhosa e louca, capaz de no final fazer algo verdadeiramente inesperado e surpreendente, que nos deixa de lágrimas nos olhos, e que muda mesmo o mundo, sugere outro modo de viver. O que é mais surpreendente para além desse gesto, que rejeita vitalmente perpetuar uma versão patriarcal do mundo, é que não há qualquer alusão ao período da guerra em que o romance foi escrito, exceptuando num ou noutro pequeno pormenor (há uma família inglesa que parte e regressa mais tarde) e numa longa sequência onírica que tem qualquer coisa das sequências oníricas desenhadas por Dalí que se podem ver num filme que estreou um ano antes de Three Summers ser publicado, Spellbound de Hitchcock. Tirando estes pormenores oblíquos, Margarita Liberaki exclui completamente esse evento histórico da sua narrativa, é como se ele não existisse e não tivesse acontecido. A carreira subsequente de Liberaki enquanto romancista acabaria por clarificar que este gesto é mais da ordem de uma preferência por arcos narrativos que são na sua totalidade metáforas fortes e eficazes sobre os contextos históricos em que ela escreveu do que o tipo de escapismo fácil que viria de uma fraca consciência política ou histórica. Margarita Liberaki é uma grande romancista. O seu romance sobre a guerra civil grega, O Outro Alexandre, é construído a partir de uma ideia mirabolante, sobre um pai que tem duas famílias, e dá aos filhos exactamente os mesmos nomes, até que os filhos supostamente legítimos descobrem a existência dos irmãos, num crescendo de paranoia que terá consequências para todos.

Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que em Os Chapéus de Palha se torna tão conspicuamente um comentário ao período histórico em que ele foi escrito. E é isto. Os Chapéus de Palha enumera cuidadosamente todas as coisas que uma guerra ameaça e destrói, tudo o que nela pode ser perdido e é vital para uma vida bem vivida, tudo o que é digno do nosso amor, do nosso cuidado e deve ser protegido a todo o custo, e na verdade acaba por sê-lo neste romance a partir da sua evocação e da sua nomeação em aparência perfeitamente natural mas no fundo insistente e sistemática. Nós, que felizmente não sabemos o que é o horror de uma guerra, conhecemos afinal essas coisas demasiado bem. É para as protegermos que a memória histórica devia servir, não para termos a pretensão de que o horror de uma guerra serve para outra coisa qualquer que não mutilar e destruir pessoas e que por isso o espetáculo horrendo de tanques a avançar sobre carros de civis, numa cidade até há apenas alguns dias pacífica, nos poderia dar jeito para alguma coisa em termos da nossa consciência histórica ou moral.

A Psicopolítica segundo Byung-Chul Han - Nota de Leitura

Em Psicopolítica. Neoliberalismo e novas técnicas de poder (Pschopolitik, 2014, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), Byung-Chul Han, pensador prolífico e bem-amado (europeu tardio, veio para a Alemanha depois de abandonar um curso superior relacionado com a metalurgia na Correia do Sul, de onde é originário), defende que a biopolítica, de Michel Foucault e Giorgio Agamben, se transformou em psicopolítica. Nesta nova forma de organização do poder, «O sujeito do rendimento, que se pretende livre, é na realidade um escravo. É um escravo absoluto, na medida em que sem qualquer senhor se explora a si próprio de forma voluntária. Não tem diante de si um senhor que o obrigue a trabalhar.» (p. 12) Além disso, a universalização do smartphone, alvo de uma profunda «devoção digital», universalizou o «exame e controle de si». Este livro prolonga Topologie der Gewalt, 2011, (Topologia da Violência, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), no qual observa que a violência deixou de ser exercida do exterior, passando a ser autoengendrada: ela «afasta-se cada vez mais da negatividade do outro ou do inimigo e incide cada vez mais sobre o próprio sujeito.» (p. 11) Passando de uma «deformação» da sociedade disciplinar para uma «depressão» da sociedade do rendimento. A pior das violências não é a da negatividade e do visível, mas a da positividade e do invisível, «exercida sem necessidade de inimigos nem dominação.» (idem, p. 10) Mas acrescenta também linhas de sentido a Was ist Macht? de 2005 (Sobre o Poder — não percebo porque alteraram tanto o título —, tradução Miguel Serras Pereira, Relógio D’Água, 2017), por vezes tanto que parecer ser outro Byung-Chul Han. Neste livro trata-se sobretudo, a partir de Michel Foucault, de criticar a ideia de que o «poder opera unicamente inibindo ou destruindo.» (p. 16) Pelo contrário, ele funciona como um catalisador que influencia ou acelera determinados processos, ele é produtivo. Claro que também há o poder destrutivo, o da opressão de um ditador, que retira liberdade ao sujeito. E talvez seja até maioritário. Mas, o que Han quis fazer neste livro foi realçar o poder como possibilidade de autoafirmação e a sensação de prazer e liberdade que daí emerge.

Regressando à Psicopolítica, não há qualquer tipo de revolução que a partir da incubadora marxista (refere-se sobretudo às ilusões de Antonio Negri com a sua «multidão cooperante») consiga estancar este novo modo de servidão, auto-servidão, auto-exploração. A «sociedade neoliberal do rendimento» abafou toda a resistência possível. Os mecanismos de contrapoder e de escrutínio são tão reduzidos que quase se resumem a um vago imperativo de transparência (criticado, contra a vox populi, pelo autor)[1] para denunciar escândalos políticos (atacam-se as pessoas mais do que as ideias).

Durante o século xx, o poder foi sobretudo disciplinar e dominado pela negatividade. Este poder, seguindo Foucault (Surveiller et punir, 1975; Histoire de la sexualité Vol. 1. La volonté de savoir, 1975; e, do mesmo ano, o curso no Collège de France, Il faut défendre la société),  surgiu no século xvii e deixou de ser o poder de morte que detinham os soberanos, como se fossem Deus, sobre os súbditos: «Em vez de torturar o corpo, o poder disciplinar fixa-o a um sistema de normas.» (Psicopolítica, p. 29) É um poder normativo que atua sobre o corpo e a mente do sujeito da obediência e do dever. Mas esse poder, coagindo com alguma violência através de preceitos e proibições, foi substituído por um muito mais eficaz: amável, manipulador, afirmativo e sedutor. «Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades.» (idem, p. 24) «O neoliberalismo é o capitalismo do “Gosto”. Distingue-se substancialmente do capitalismo do século xx, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares.» (idem, p. 25) E Foucault (morreu em 1984, com 57 anos), segundo Han, não efetuou a passagem, apesar dos vários indícios que se podiam ler na realidade social, da biopolítica (poder disciplinar sobre a vida) à psicopolítica. Tal teria acontecido, ainda segundo Han, se Foucault não tivesse morrido precocemente. Han não concede a mesma lucidez a Giorgio Agamben.

Se o capitalismo do século xx se preocupava, em primeiro lugar, com o biológico, o neoliberalismo atende à psique. Para o conseguir, «A psicopolítica neoliberal é uma política inteligente que procura agradar em vez de submeter.» (idem, p. 46) É por isso que se trabalha tanto o campo das emoções do «sujeito narcísico», a sociedade de consumo compra emoções e significações, muito mais o valor emotivo do que o de uso: «O capitalismo do consumo introduz emoções para estimular a compra e engendrar necessidades.» (idem, p. 55) Daí que, no mercado de trabalho, as competências emocionais quase tenham destronado as cognitivas. E tudo isto se joga ao nível pré-reflexivo, o que dificulta ainda mais a denúncia e a resistência. Tanto mais que o Big Data consegue, a partir das interações digitais, representar com extrema exatidão a «nossa pessoa, [a] nossa alma — uma representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de nós próprios.» (idem, p. 71) Essa «lupa digital» favorece uma psicopolítica capaz de ler os nossos desejos mais profundos (talvez ininteligíveis para nós).

É preciso regressar a Topologia da Violência para sabermos o que a sociedade do rendimento, com os seus princípios de liberdade e desregulação, provocou na sociedade. Um campo patológico, vasto e profundo, governa uma grande parte dos indivíduos: na depressão vê-se o «fracasso de sujeito forçado à iniciativa perante o incontrolável» (p. 45); no burnout «é a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos.» (ibidem) Duas formas de autoagressão que não estavam inscritas na sociedade disciplinar. Para um dos seus principais teóricos, Karl Schmitt, a política vive da luta contra o inimigo, a possibilidade real da violência é a essência do político. Agora, o sujeito do rendimento, sem a negatividade do inimigo, vira-se para e contra si, «compete consigo mesmo e procura superar-se a si mesmo. Entra assim numa competição fatal consigo mesmo, num círculo infinito que, a certo momento, caba num colapso.» (idem, p. 62)

[1] Fundamentalmente porque, no fim de contas, pretende eliminar o estranho, forçando à conformidade.