Dois poemas de Lalla Romano

Tradução de João Coles

Também o ar morreu
o céu é como uma pedra

Os pássaros já não sabem voar
arrojam-se como cegos
da beira dos telhados abaixo.


O sono durante as manhãs
prende-me os joelhos
e cinge a minha testa
com suaves ligaduras

E não invocado então
entras nos meus sonhos
e vencida acaricias-me
com mãos violadoras

A meio do dia claro
uma vertigem me cega
e no obscuro sonho
trémula me impele

O Intelectual Total

 Em 2018, Peter Sloterdijk publicou um artigo no Neue Zürcher Zeitung perguntando pelos amigos da verdade. Depois de conceder que pode haver um justo ato de liberdade na mentira que contém uma «revolta deliberada contra o dever de dizer a verdade», de convocar a super-glosada ideia de Friedrich Nietzsche, segundo a qual felizmente temos a arte para nos salvar da verdade, Sloterdijk conclui, contudo, que perante o cinismo moderno e o éter mentiroso de muita linguagem oficial, sobretudo na Rússia pós-soviética e no entertainer político Donald Trump, cresce a importância dos «amigos da verdade»: «Do seu comportamento dependerá se viveremos um segundo fôlego de democracia ou se a vaga de obscurantismo cínico, neste momento proveniente sobretudo da Rússia e de alguns países muçulmanos, arrastará consigo o Ocidente e o “resto do mundo”.»[1]

Sabemos que uma vontade de verdade acrítica sustentou, e sustenta, visões do mundo redutoras e sectárias. Isso acontece na maioria das religiões totalizantes, mas também, e, pelos vistos, cada vez mais, na política. Recorde-se que o conceito de «fake news» não designa primeiramente «notícias falsas», mas uma falsidade que atua, funciona, como se fosse verdade. Para isso, porquanto a news não se consegue aliar verdadeiramente a factos ou leis científicas, apresentam-se como aquilo que os recetores gostariam que fosse, isto é, faz do «isto devia ser assim» um «isto é assim». É o modo de funcionamento de todos os discursos, ou todos os dispositivos, nacionalistas.

Como é que aparece o intelectual no meio disto tudo? Pretendo pensar se ele é um «amigo da verdade» ou um «prescritor da verdade», se é um filósofo ou um padre. Caminharei principalmente no rasto de Michel Foucault, na distinção feliz que faz entre «intelectual específico» e «intelectual universal». Tentarei depois usar essa analítica para perscrutar o estado da arte intelectual em Portugal (sem pretensões à exaustividade e mantendo sempre muitas dúvidas).

Foucault, pouco inclinado para o autoelogio e dedicado, com alguma maldade, a baralhar as pistas que o pudessem catalogar, aceitou sempre ser um intelectual. Contrariando o declínio da expressão, paralela ao desvanecimento do grande hermeneuta engagé que foi Sartre e à fragmentação dos discursos de autoridade provocada pelo Maio de 68. Mas trata-se de um novo tipo de intelectual: «Durante muito tempo, o intelectual dito de “esquerda” tomou a palavra e viu reconhecerem-lhe o direito de falar enquanto mestre da verdade e da justiça. […] Há já vários anos que não se pede ao intelectual para cumprir esse papel. Estabeleceu-se uma nova forma de “ligação entre a teoria e a prática”. Os intelectuais habituaram-se a trabalhar não no “universal”, no “exemplar”, no “justo-e-verdadeiro-para-todos”, mas em setores mais determinados».[2] A incarnação do intelectual universal, total, seriam Émile Zola e Jean-Paul Sartre, ambos com vocação de profetas, e, como tal, de prescritores morais. Fazendo-o a partir da ideia de humanismo herdada do século XIX, quando, como sabemos, de Nietzsche a Foucault, passando por Freud e o estruturalismo, o homem é mais um centauro, sempre pronto a desaparecer, do que uma realidade fixa. Efetivam-no, também, usando argumentos de autoridade, o «foi Sartre que o disse», por exemplo, tinha um peso muito grande na definição dos «jogos de verdade» da época. Pelo contrário, Foucault gostava de anular o prestígio que pudesse ter para falar mais livre e provisoriamente, por isso escreve: «Sonho com um intelectual destruidor das evidências e das universalidades […], aquele que incessantemente se desloca, não sabendo ao certo aonde estará nem o que pensará amanhã, já que está demasiado atento ao presente.»[3] Na Ordem do Discurso, Lição inaugural do Collège de France, defende que «em vez de ser aquele de onde vem o discurso serei, antes, no acaso do seu desenrolar, uma ínfima lacuna, o ponto do seu desaparecimento possível.»[4]

A relação entre Foucault e Sartre foi controversa, alimentando algumas querelas bastante animosas. Rivalidade de opiniões, mas também de gerações e de acesso ao poder. Foucault disse que a Crítica da Razão Dialética era uma forma e um esforço patético de um homem do século XIX (Sartre) para pensar o século XX. Por seu turno, Sartre acusa Foucault de, ao defender a impossibilidade de uma reflexão histórica (marxista), se constituir como mais um daqueles que a burguesia usa para fazer frente a Marx. Maio de 68 mitigará a contenda, Sartre acompanhará Foucault nas críticas ao intelectual universal, Foucault reconhecerá a imensa qualidade da obra de Sartre e a sua capacidade de se comprometer politicamente em causas importantes. Só Émile Zola permanecerá, portanto, na cruz do intelectualismo universal.

Voltando à questão da verdade, para Foucault e o estruturalismo em geral, ninguém se pode apresentar como detentor da verdade porque ela é gerada por estruturas e sistemas prévios e independentes do sujeito. Já os pós-modernistas, onde também cabe Michel Foucault, rejeitam qualquer sistema de categorias a priori que regule só por si os jogos de verdade. O que importa agora, pois, não é descobrir a verdade, mas perceber como funcionam os dispositivos de verdade, profundamente relacionados com os dispositivos de poder. Mas importa também desenvolver uma prática (Foucault prefere este termo, «pratique», ao de comprometimento, «engagement») que exerça publicamente as ideias abstratas defendidas. É assim que Foucault se implica, com muita generosidade, nas ações práticas do G.I.P (Grupo de Informação sobre as Prisões), ou, e aqui juntamente com Sartre, na defesa dos imigrantes tidos como «ilegais». Foucault não gostava muito do termo «militante», mas seria isso que hoje lhe chamaríamos, um intelectual militante. Um intelectual específico militante capaz de mudar as organizações. Nas suas palavras: «Joguei o meu jogo político fazendo aparecer o problema em toda a sua complexidade, provocando dúvidas e incertezas tais que agora nenhum reformador, nenhum presidente de sindicato de psiquiatras se acha capaz de dizer: “Eis o que é preciso fazer.”»[5]

 

Em Portugal, houve as restrições à liberdade de pensamento e uma população maioritariamente analfabeta ou, pelo menos, iletrada (com a magnífica quarta classe do Estado Novo), juntando-se a isso uma pequena elite contestatária demasiado regulada pelas diretrizes marxistas, que censuraram, pela indiferença ou pelo ataque, todos os que se atreveram a pensar fora dos princípios do neorrealismo; Vergílio Ferreira, por exemplo. Portanto, os grandes movimentos ocidentais das ciências vinculadas, com mais ou menos intensidade, ao prosseguimento da modernidade ou à viragem, que nunca foi radical, para a pós-modernidade, e nas artes às oscilações, com diferentes nomes, entre o romantismo e o classicismo (Fernando Pessoa, por exemplo, incarnou, com os seus heterónimos, as duas vias), passaram-nos ao lado. Ainda sofremos disso hoje, faltou-nos uma força motriz dialética que da confrontação tivesse elegido, sem muito Hegel à mistura, por favor, umas quantas estrelas que guiassem, através da admiração ou da contestação, os pensadores aprendizes nascidos, às vezes aos trambolhões, da massificação escolar pós 25 de Abril.

Chegamos, assim, ao primeiro quartel do século XXI menorizados por uma falha evolutiva, que, apesar de tudo, poderíamos ter recuperado um pouco melhor, mas até os mais fervorosos defensores da igualdade social, quando são de «cima», gostam que os descendentes casem no patamar sociocultural onde beneficiam dos privilégios da visibilidade e da obtenção de cargos de poder relevantes (nomeações políticas e postos académicos, sobretudo). Um nepotismo camuflado e toda uma retórica de defesa dos oprimidos mantém-nos em perfeita boa-consciência.

Por isso, estamos hoje meio órfãos de intelectuais específicos, mas não carecemos, numa versão que só pode ser minúscula, de intelectuais totais, faltam-nos filósofos (não os profissionais académicos, por melhor que sejam), sobram-nos padres. Do lado dos intelectuais específicos quero destacar João Barrento e Eduardo Lourenço, aqueles que melhor souberam usar a sua extrema inteligência e erudição para nos elucidar sobre ideias e ações que, devido ou contra a história, montaram uma certa cosmovisão a partir do complexo da portugalidade. José Gil, com o seu Portugal, Hoje, O Medo de Existir e os vários estudos acerca de Fernando Pessoa (o nosso grande viveiro), aproxima-se, bem como Filomena Molder, desse modelo. O primeiro é, contudo, por vezes demasiado específico (com Gilles Deleuze a marcar, talvez excessivamente, o que vai dizendo), e outras demasiado prescritivo (não temos de nos levantar todos de um medo metafísico de existir). A segunda, ficou sempre bastante presa ao mundo académico, mesmo usando bastantes vezes uma linguagem mais poética do que científica. Nesta linha, bastante mais jovem, João Pedro Cachopo, que escreveu sobre uma quase neo-humanidade pandémica na Torção dos Sentidos, Pandemia e remediação digital, apresenta-se como um pensador promissor (só lhe falta obra, na verdade), esperemos que a indiferença com que costumamos brindar quem nos pode fazer sombra seja, desta vez, evitada. Realço também Pedro Mexia, de quem gosto porque além de bom poeta e ensaísta preciso, tem uma disponibilidade incomum para descobrir e apoiar jovens autores. Talvez também se deva mencionar Frederico Lourenço, que nos oferece uma antiguidade inteligível, sem qualquer tique de panegírico. Esqueço alguns? Talvez. Seria bom manter este texto aberto a atualizações.

E depois temos os nossos intelectuais totais. Quase todos escrevem em jornais e revistas, no Público e no Expresso, ainda no Jornal de Letras. Seria fastidioso referi-los a todos, fastidioso para o leitor e, de uma certa forma, doloroso para mim, devemos, como queria Nietzsche, acompanhar aqueles de quem gostamos e afastar-nos dos outros (a isto se resumia a sua moral para além bem e mal). Posso, assim, eleger o representante paradigmático dos nossos intelectuais totais: António Guerreiro. Colunista no jornal Público e, entre outros afazeres, editor da revista Electra. E é total porque emite opiniões sobre os mais diversos assuntos, da arte à política, passando pela filosofia. Crítico da globalização capitalista, assume, contudo, uma visão total do mundo e trabalha em meios de comunicação amigos da acumulação de capital. Além disso, os jogos de linguagem que usa não são acessíveis às classes culturalmente menos emancipadas, com isso priva-as de um possível estímulo para a revolta, mais ou menos jacobina. Finalmente, regressando mais de perto a Foucault, e Sartre, falta-lhe a prática, o compromisso. Em todo o seu processo de crítica cultural, nunca abandona o púlpito, é de lá que, à distância (como Apolo), lança as suas setas (com um veneno cada vez mais ambíguo, um pharmakon que deve proteger os privilégios que inegavelmente alcançou) contra formas de organizar o mundo, através da arte e da política sobretudo, injustas e contra jogos de verdade que não se prestam à grelha hermenêutica que descobriu no neocriticismo alemão ou nos neo-nietzschianos franceses que não abjuraram totalmente a crítica kantiana. Mas não leva nada à prática, não abre a porta a jovens talentosos desfavorecidos, não vem para a rua morder as canelas aos burgueses, não recusa ser patrocinado pelo capitalismo de uma empresa como a EDP, continuar a escrever num jornal assumidamente de direita, ou, vá lá, de centro-direita. Nada disso. Fica no púlpito. E os sermões até são interessantes. Mas são sermões sobre a verdade e o bem, que muitos fiéis, alguns indomáveis revolucionários, bebem como se fosse uma poção de sentido sagrado. Sim, bem sei, estamos longe do paroxismo do livrinho vermelho de Mao, o suprassumo da prescrição, escrito pelo autodesignado maior intelectual do mundo, ou como encerrar o universo em 20 ou 30 páginas. Mas o princípio talvez seja o mesmo.

[1] Cito a partir de Reflexos Primitivos, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D’Água, 2022, p. 43.

[2] Michel Foucault, «Asile. Sexualité. Prisons» [1975], Dits et écrits II,  Paris: Gallimard, 1994, p. 777

[3] «Non au sexe roi» [1977], Dits et écrits III, op. cit., pp. 268-269

[4] L’ordre du discours, Paris: Gallimard, 1971, p. 8. Há uma tradução na Relógio D’Água.

[5] «Entretien avec Michel Foucault» [1980], Dits et écrits IV, op. cit., p. 88.

o despertar da primavera

Milton, Oxfordshire

perto de um escritório de uma corporação
perdido numa vila algures em inglaterra
há um pequeno cemitério onde jazem
soldados da royal air force que morreram
na primeira guerra mas foram transladados
muito mais tarde e já neste século
os seus corpos outrora ágeis
repousam agora debaixo dessas pedras
onde se lê thy will be done 

em tardes a fio
sem mais nada para fazer
do que pontapear a própria consciência
beber muito café olhar pela janela roer as unhas
isto há-de ser o que kierkegaard chamou
o desespero humano 
a função estética do tédio no entanto
é empregar muitas horas a meditar
no sentido da palavra definhar
ou esperar por d. sebastião numa manhã
de névoa e absurdo quando violentos
cavalos cortassem o nevoeiro
e a corte dos teus brilhantes amigos
me acalmasse com alguma frase
proferida na mais profunda liberdade
num assegurar de que a inteligência humana
ainda existe e está de boa saúde neste planeta 

cavalos a uma velocidade de verdadeiros aeroplanos
ou porque falo assim com o meu coração
era o que diziam os soldados de homero
antes dos duelos finais e das últimas palavras
pouco antes de tombarem
pela causa troiana ou por uma mulher
que não era a de nenhum deles nem nunca viria a ser
a guerra como a mais obtusa e esquálida e oportunista
das funções de uma imaginação melodramática 

penso nos dois que repousam no cemitério
da velha igreja em milton
ficaram muito tempo longe de casa
e pode ter sido algum gesto de caridade
nacionalista e populista na pior das hipóteses
talvez algum tory de província entusiasmado
com a possibilidade de ganhar alguns votos
lembrando aos paroquianos uma inglaterra
que se quer orgulhosamente só
de um tempo glorioso em que chegaram
a tombar aos mil
nos vastos campos da frança, da flandres 
nos alpes da suíça
e vencedora porque apoiada pelo
não menos vasto exército norte-americano

pode bem ter sido ou não esse o gesto
que os há-de ter trazido de volta aqui
de volta a casa
ou na melhor das hipóteses
um impulso decente
alguma coisa calculo
ao género de no man is left behind
mas a verdade é que eles jazem
agora em casa no solo pátrio
que os enviou para morrer longe 

ocupa-os agora o silêncio debaixo dos castanheiros
no cemitério da igreja onde de outro modo
lápides do século XIX dão conta das usuais
mortes prematuras de candidatos a byron
que nunca saíram da vila onde nasceram
mortes de parto e mortalidade infantil
mas os meus dois soldados

têm nomes bíblicos peter e simon
peter and simon, caro leitor, were left behind
voltaram a casa em meados de 2000
depois de terem caído em 1916 e 1918
um cadáver trazido de volta a casa
não se confunde com um rapagão alto e atlético
a beber sucessivas canecas de meio litro de cerveja
no pub que fica mesmo em frente ao cemitério
e está aqui há um século 

eu no entanto depois da visita diária
a paul e simon sento-me no meu posto
para esta outra missa de corpo presente
e medito nos mortos que não regressam a casa
nessa antecâmara do terror
que é a possibilidade de alguma força no mundo
reclamar de ti a pound of flesh ou mesmo
toda a tua carne contra a tua vontade
e passo o resto da tarde a ler wedekind
o despertar da primavera  

uma peça banida da alemanha
no princípio do século
(uma geração antes de peter e simon
tombarem a combater os alemães) 
onde a morte e a paixão se misturam
no veneno de uma comédia de enganos
onde adolescentes que leram talvez
demasiados autores gregos questionam deus
a solidão e o comprimento das saias
que uma rapariga no virar da adolescência
pode usar e morrem tragicamente
por vergonha, desespero, opressão
uma solidão absurda e sem eco
que é o rosto do mundo quando a espaços
nos fita sem olhos e sem boca 

quando a única necessidade absoluta
a única vontade a ser cumprida
são esses momentos de falha humana
por onde entra a luz e a percepção
de que o corpo não é o momento
do seu sacrifício enquanto instrumento
ao serviço de uma vontade que não é a sua
de uma ordem que ignora e oblitera o seu significado
mas antes que um corpo é o seu nome
a mais alta nota da sua mais elevada revolta
tu perdido no teu sono
e no teu suor ao comprido intacto
perfeitamente sagrado na transcendência que é a tua:
o chiaroscuro, o teu corpo e o teu tempo
o toque dos vivos

 

Oxford, 11 de Agosto de 2018

 

 

 

 

 

 

 

 

n.g. despede-se de l.g.

Natalia Ginzburg, Roma, s.d.

pensei em escrever-te para te dizer
que estou sã e salva
com todos os meus demónios no paraíso 

a tempestade da história
despenhou-se contra as janelas
estilhaçando todos os vidros
e arrancando todas as portas e passou
com o seu cortejo de camisas negras
com as suas danças obscenas
de destruição e massacre
com a sua louca sede de sangue
e deixou-me agora em paz para sobreviver 

mas esta noite sonhei que tornava a abraçar-te
toda a gente que nos importa estava presente na sala
e desta vez era eu quem ia partir por longo tempo
e penso que os teus braços à volta do meu torso
paravam completamente o tempo
que ainda assim entretanto acelerava loucamente
em todas as estações de onde partem comboios 

desde que te abracei pela última vez
calada da noite
prisão de regina coeli
evito tornar a tocar em pessoas  

é de perto que o teu rosto é um mapa
com as suas três constelações de incêndio
e a memória não explica isso
é só quando ele se aproxima
que me lembro que é preciso parar de procurar
nos olhos dos outros a morte que virá e terá os teus olhos
e nada me devolve essa inocência
que perdi e que quando ameaça voltar
aprendi a amordaçar violentamente
a troça e cinismo 

há muito que não perturbo ninguém
para não procurar impressões que me torturem 
às vezes vejo claramente os teus pés descalços no chão
as tuas mãos nuas sobre os livros
penso que os teus gestos apagam as datas
tornam inúteis todos os calendários
vou e volto do trabalho
que fica perto de casa
enviei os nossos filhos para turim  

arrasto comigo o peso de todas as tuas ideias
a minha claríssima memória da tua voz invade tudo
e as tuas ideias na minha cabeça
vão continuar a ter para sempre
a duração de uma interminável página acesa
impressa com uma pequeníssima fonte
muito difícil de ler
sob um candeeiro clandestino 

é preciso que me lembre sem suspeita
sem medo de viver
que nos livros e no que escreveste
procuravas ocupar-te
dos incertos recomeços dos vivos
os seus barcos de regresso
depois das diversas mortes

Nimborio, Simi

10 de Agosto de 2021

Putin: a loucura da nostalgia imperialista

Traduzo um texto de Michel Eltchaninoff publicado na revista philosophie magazine, 21 de março. É sobre as alucinações maléficas de Vladimir Putin, alimentadas por pulsões e narrações do tempo da URSS.

«Desde a invasão da Ucrânia tenho, por vezes, a impressão, ao ouvir Vladimir Putin, de que ele regressou à infância. Este homem, nascido em 1952, Leningrado, fala cada vez mais da forma como se fazia na URSS. Isso marcou-me logo a três de março, quando reconheceu publicamente baixas humanas na sua “operação especial”. Debitou aí uma narrativa de guerra canónica. Contou a história sacrificial de um jovem oficial do Daguestão, Nourmahomed Engelsovitch (sic) Gadjimhomedov, que “ferido, se bateu até ao último sopro de vida e fez explodir com uma granada os soldados que o cercavam, matando-se no ato. Foi até a este extremo porque soube a quem fazia frente: neonazis que humilham os prisioneiros e os matam selvaticamente.” O presidente russo ressuscita as narrativas de guerra que embalaram a sua infância — recompondo a realidade.

Quarta feira, 16 de março, Vladimir Putin carregou noutra tecla, também ela clássica, do teclado soviético: a denúncia dos traidores vendidos à burguesia imperialista. Diante do governo e dos representantes das regiões, voltou às sanções ocidentais. Para lhes fazer frente, cada um deve participar na economia patriótica do putinismo. O presidente deplora a existência de uma “quinta coluna” composta de “nacionais-traidores” que “ganham o seu dinheiro aqui mas vivem acolá, nem sequer num sentido geográfico, mas nos seus pensamentos, na sua consciência de escravos.” Visa simultaneamente os oligarcas, que poderiam ter a tentação de não apoiar o esforço de guerra, mas também a oposição democrática, “que está, na sua cabeça, além”. Ataca “esses que possuem uma moradia em Miami ou na Côte d’Azur, que não conseguem viver sem foie gras, ostras e pretensas liberdades de género.” É quase um Maïakovski, poeta futurista dos anos de 1920: “Come ananás, mastiga perdizes / chegou o teu último dia, burguês!” Vladimir Putin ameaça os novos russos e quem ousa manifestar-se contra a guerra: “O povo russo saberá sempre distinguir os verdadeiros patriotas do lixo e dos traidores, cuspi-los-á muito simplesmente como insetos absorvidos sem querer.” Poético. Putiniano, mas de tendência hardcore. Completamente leninista, também. Foi Alexandre Soljenitsyne quem recordou, no Arquipélago do Gulag (1973), que o líder bolchevique tinha, também, queda para metáfora entomológica. Num artigo de 1918, afirmava que o objetivo da revolução era a de “limpar a terra russa de todos os insetos nocivos.” De quem falaria? Soljenitsyne admite ser impossível “proceder a um estudo exaustivo dos casos incluídos nesta larga denominação de insetos”. A lista seria muito longa, dos professores de liceu aos padres. E segundo Putin? Por enquanto, aponta para as grandes fortunas e a oposição democrática. Mas e amanhã? Acabo de ler no Telegram que os professores que saíram da Rússia mas continuam a dar aulas à distância vão ser demitidos. Quanto aos padres que se opõem aos delírios metafísico-homofóbicos do patriarca Cyrille, são considerados traidores. Foram lançadas as primeiras acusações por “falsas informações” sobre o conflito. Quais serão as seguintes, na lista dos “insetos” a “cuspir”? Irá Putin iniciar repressões em grande escala, nacionalizar empresas, montar uma economia de subsistência, tentar reconstruir uma lógica de blocos, fechar o país, como no tempo da URSS? Nada é impossível, desde que se iniciou a sua aventura bélica na Ucrânia, parecendo embriagar-se com a gesta soviética — acrescentando-lhe uma pincelada de religiosidade e uma exaltação imperial à maneira dos Tzars.

Quem poderia esperar isto, trinta anos depois da URSS autocolapsar? Talvez a escritora, e Prémio Nobel, da literatura Svetlana Alexievitch, cujo livro O Fim do Homem Soviético [extraordinário], em 2013, me retirou do sono histórico. Dando a ler a voz de cidadãos soviéticos banais, ela exprimiu o desatino de milhões de pessoas normais espantadas por acordarem, no início dos anos 90, num mundo que já não era o delas. Em russo, o seu livro chamava-se, aliás, “Uma época de segunda mão”. Antes de toda a gente, a escritora bielorussa, que na época fui visitar a Minsk, tinha apreendido a irreprimível nostalgia do país natal. “O soviético é um bom homem, era capaz de ir à Sibéria, no meio do nada, em nome de uma ideia, e não por dólares.” Hoje, Vladimir Putin faz reviver esse mito, mas numa repetição trágica e sangrenta, contra o “povo irmão” ucraniano. Ele que proibiu qualquer trabalho de memória sobre o século soviético, reativa este último num gesto simultaneamente demiúrgico e suicidário. Faz-me pensar no que dizia o grande dissidente polaco Adam Michnik, que passou vários anos nas prisões do regime. Quando lhe perguntavam o que havia de pior no comunismo, respondia: “O que acontece depois”. Estamos lá.»