«Dezoito», um pequeno "romance fluvial" de Giorgio Manganelli


Tradução: João Coles

Aquele senhor que comprou uma gabardine usada, um chapéu de aba larga, que fuma nervosamente, e anda para a frente e para trás num quarto de hotel decadente que teve de pagar de antemão, decidiu, há dez anos, que quando crescesse queria ser assassino. Já cresceu, e não há nada de novo, nem os amores, nem os pequenos-almoços saudáveis de manhã, nem os hinos eclesiásticos, modificaram de forma alguma a sua decisão, que não se tratava de um capricho infantil, mas de uma escolha sábia e ajuizada. Ora, um assassino precisa de poucas coisas, mas coisas peculiares. Deve possuir uma arma ao mesmo tempo prestigiosa e elusiva, uma mira perfeita, um comitente, e uma pessoa a quem matar; o comitente, por conta própria, deve possuir ódio e interesse, e muito dinheiro. O difícil é obter todas estas condições ao mesmo tempo. Uma vez que o seu temperamento oscila entre o fatalismo e a superstição, está convencido de que um verdadeiro assassino não poderá senão encontrar-se na situação prevista, mas que, sendo essa uma situação complexa e altamente improvável, pode acontecer não se o assassino for competente, se a arma for a certa, se existir em algum lugar um grande ódio ou um interesse terrível, se houver dinheiro para matar, mas se alguma coisa nos céus, nas estrelas, talvez em Deus em si, se existir, intervir e aglomerar esses fenómenos dispersos e geralmente distantes o suficiente para não conseguir reuni-los.

Ele quer ser digno de uma escolha à qual não hesite em atribuir um carácter fatal. Portanto, depois de ter escolhido um traje qual túnica, decidiu tornar-se uma mira perfeita. É um noviço, mas tem a vocação de um asceta. Apercebeu-se imediatamente de um erro cometido por todos os aspirantes a assassinos; treinam-se com alvos falsos. O alvo falso não põe à prova o ascetismo do assassino. Este princípio, por si só incontestável, induziu o assassino a algumas conclusões: ele estabeleceu que deve aprender a mira perfeita em condições perfeitamente ascéticas. Não deve atingir, deve matar. Não os animais, pois querem ser abatidos. Homens? Mas matar um homem que não por dinheiro é exibicionismo fátuo. Resta-lhe uma única solução, uma verdadeiramente ascética. Deve treinar com a mira a apontar para si próprio. Acaba de posicionar a arma num canto do quarto, numa posição alta, e atou o gatilho a uma corda. O assassino medita. Agora apontará para si. E depois? Se falhar, estará a salvo, mas desclassificado como assassino; se acertar, alguém morrerá: o assassino. Hesita demoradamente: mas sabemos que no final prevalecerá a sua consciência profissional.


"Fim, meio, início", de Anne Sexton

Tradução: João Coles

Havia uma criança indesejada.
Abortada por três métodos modernos
agarrou-se ao útero,
enganchada nele
a construir a sua casa nele,
e de nada servia
boicotá-la.

À nascença
ela não chorou,
levou as palmadas,
mas não berrou -
em vez disso caiu-lhe neve da boca.

Ao crescer, ano após ano,
o seu cabelo tornou-se como uma rosa num vaso,
e sangrou pelo rosto abaixo.
Colocaram-lhe pedras em cima para manter
o crescimento em silêncio,
e embora pisassem,
não matavam,
embora a mortandade nela estivesse enredada desde o início.

Fecharam-na dentro de uma bola de futebol,
mas ela meramente encolheu-se
e fingiu que era uma acolhedora casa de bonecas.
Empurraram para dentro insectos para a comerem às dentadas
e ela deixou-os rastejar para dentro dos olhos
fingindo que eram um espectáculo de fantoches.

Mais tarde, mais tarde,
já crescida, como soem dizer,
deram-lhe um anel,
e ela usou-o como uma raiz
e disse para si própria,
“Não ser amada é a condição humana,”
e estendeu-se na cama como uma estátua.

Então uma vez,
por um terrível acaso,
o amor tomou-a no seu grande barco
e ela escavava o oceano
em escaldante alegria.

E então,
lentamente,
o amor esvaiu-se,
o barco transformou-se em papel
e ela, por fim,
sabia qual o seu destino.
Vira para onde pertences,
para o surdo-mudo
aquela casa de metal,
não deixes que ele te perfure em ninguém.

Do livro póstumo 45 Mercy Street.


End, middle, beginning

There was an unwanted child.
Aborted by three modern methods
she hung on to the womb,
hooked onto it
building her house into it
and it was to no avail,
to black her out.

At her birth
she did not cry,
spanked indeed,
but did not yell-
instead snow fell out of her mouth.

As she grew, year by year,
her hair turned like a rose in a vase,
and bled down her face.
Rocks were placed on her to keep
the growing silent,
and though they bruised,
they did not kill,
though kill was tangled into her beginning.

They locked her in a football
but she merely curled up
and pretended it was a warm doll's house.
They pushed insects in to bite her off
and she let them crawl into her eyes
pretending they were a puppet show.

Later, later,
grown fully, as they say,
they gave her a ring,
and she wore it like a root
and said to herself,
'To be not loved is the human condition,'
and lay like a statue in her bed.

Then once,
by terrible chance,
love took her in his big boat
and she shoveled the ocean
in a scalding joy.

Then,
slowly,
love seeped away,
the boat turned into paper
and she knew her fate,
at last.
Turn where you belong,
into a deaf mute
that metal house,
let him drill you into no one.

"a escrita", por Charles Bukowski



Tradução: João Coles



é amiúde a única
coisa
entre ti e a
impossibilidade.
nem a bebida,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
comparar-se-lhe.
nada te pode
salvar
excepto
a escrita.
ela impede que as paredes
caiam.
que as multidões
se aproximem.
rebenta
com a escuridão.
a escrita é o
derradeiro
psiquiatra,
o mais bondoso
deus de todos os
deuses.
a escrita persegue
a morte.
não sabe o que é
desistir.
e a escrita
ri
de si mesma,
da dor.
é a última
expectativa,
é a última
explicação.
é isso
que ela
é.


in Blank Gun Silencer – 1991


writing

often it is the only
thing
between you and
impossibility
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.


from Blank Gun Silencer – 1991

"Cientificamente me pergunto", de Patrizia Cavalli


Todi, 17 de Abril de 1947 ~~ Patrizia Cavalli ~~ Roma, 21 de Junho de 2022



Tradução de João Coles



Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.


Io scientificamente mi domando
come è stato creato il mio cervello,
cosa ci faccio io con questo sbaglio.
Fingo di avere anima e pensieri
per circolare melgio in mezzo agli altri,
qualche volta mi sembra anche di amare
facce e parole di persone, rare;
esser toccata vorrei poter toccare,
ma scopro sempre che ogni mia emozione
dipende da un vicino temporale.