Discurso da Nobel da Literatura

Discurso proferido na receção do prémio Nobel por Annie Ernaux, 10 de dezembro de 2022.

Tradução de Victor Gonçalves a partir do texto publicado no jornal Le Monde a 7 de dezembro de 2022, aqui.

«Por onde começar? Coloquei esta pergunta dezenas de vezes à página em branco. Como se tivesse de encontrar a frase, a única, que me permitirá entrar na escrita do livro e resolver, de uma só vez, todas as dúvidas. Uma espécie de chave. Hoje, para enfrentar uma situação que, passada a estupefação do acontecimento — “Isto está mesmo a acontecer-me?” —, a minha imaginação me apresenta com um pavor crescente, é a mesma necessidade que me invade. Encontrar a frase que me dará a liberdade e a firmeza para falar sem tremer, neste lugar para o qual me convidam esta noite.

Esta frase, não preciso de procurá-la muito longe. Ela surge. Em toda a sua nitidez, a sua violência. Lapidar. Irrefutável. Foi escrita há sessenta anos no meu diário. “Escreverei para vingar a minha raça”. Ela faz eco do grito de Rimbaud: “Sou de raça inferior desde toda a eternidade”. Tinha 22 anos. Era aluna de literatura numa faculdade de província, entre raparigas e rapazes, muitos deles da burguesia local. Pensava, com orgulho e ingenuidade, que escrever livros, tornar-me escritora, no fim de uma linhagem de camponeses sem-terra, operários e pequenos comerciantes, pessoas desprezadas pelos seus modos, o seu sotaque, a sua falta de cultura, bastaria para consertar a injustiça social de nascimento. Que uma vitória individual apagaria séculos de dominação e pobreza, numa ilusão que a Escola já havia fomentado em mim com o meu sucesso académico. Como poderia a minha realização pessoal redimir o que quer que fosse das humilhações e ofensas sofridas? Eu não me colocava essa pergunta. Tinha algumas desculpas.

Desde que aprendi a ler, os livros foram os meus companheiros, a leitura a minha ocupação natural fora da escola. Esse gosto era mantido por uma mãe, ela mesma grande leitora de romances, entre duas clientes da sua loja, preferindo que eu lesse em vez de costurar e tricotar. O preço elevado dos livros, a desconfiança a que eram submetidos na minha escola religiosa tornavam-nos ainda mais desejáveis ​​para mim. Dom Quixote, As Viagens de Gulliver, Jane Eyre, contos de Grimm e Andersen, David Copperfield, E Tudo o Vento Levou, mais tarde Os Miseráveis, As Vinhas da Ira, A Náusea, O Estrangeiro: era o acaso, mais do que prescrições escolares, que determinava as minhas leituras.

Afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita

A escolha de estudar letras foi a de permanecer na literatura, que se tornou um valor superior a todos os outros, até um modo de vida, que projetava num romance de Flaubert ou de Virginia Woolf e vivê-los literalmente. Uma espécie de continente que inconscientemente opunha ao meu meio social. E só concebia a escrita como possibilidade de transfigurar a realidade.

Não foi a recusa de um primeiro romance por duas ou três editoras — romance cujo único mérito era a procura de uma nova forma — que diminuiu o meu desejo e o meu orgulho. Foram situações da vida, na qual ser mulher pesava muito na diferença de ser homem numa sociedade cujos papéis eram definidos segundo o sexo, a contraceção proibida e a interrupção da gravidez um crime. Casada, com dois filhos, uma profissão de docente e o fardo da gestão familiar, afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita e da promessa de vingar a minha raça. Não podia ler “a parábola da lei” no Processo de Kafka, sem ver nela a figuração do meu destino: morrer sem ter passado pela porta que foi feita só para mim, o livro que só eu podia escrever.

Mas isso não tinha em conta o acaso privado e histórico. A morte de um pai que perece três dias depois de eu chegar a casa de férias, um trabalho como professora em turmas cujos alunos vinham de origens populares semelhantes à minha, movimentos de protesto mundiais: tantos elementos que me trouxeram de volta por caminhos imprevistos e sensíveis ao mundo das minhas origens, à minha “raça”, e que dava ao meu desejo de escrever um carácter de urgência secreta e absoluta. Desta vez, não se tratava de me entregar a este ilusório “escrever sobre nada” dos meus 20 anos, mas de mergulhar no indizível de uma memória reprimida e trazer à tona o modo de existir dos meus. Escrever para compreender os motivos, dentro e fora de mim, que me afastaram das minhas origens.

Precisava de romper com o “escrever bem”

Nenhuma opção de escrita é evidente. Mas aqueles que, imigrantes, já não falam a língua dos pais, e aqueles que, trânsfugas de classe social, já não têm realmente a mesma língua, pensam-se e exprimem-se noutras palavras, todos se deparam com obstáculos suplementares. Um dilema. Sentem, de facto, a dificuldade, até a impossibilidade de escrever na língua adquirida, predominante, que aprenderam a dominar e que admiram nas obras literárias. Tudo o que se relaciona com o seu mundo de origem é um primeiro mundo feito de sensações, de palavras que descrevem o quotidiano, o trabalho, o lugar social. Por um lado, há a língua com que aprenderam a nomear as coisas, com a sua brutalidade, com os seus silêncios, aquela, por exemplo, do encontro face a face entre uma mãe e um filho, no belíssimo texto de Albert Camus Entre o sim e o não [capítulo da primeira novela do autor, L’Envers et l’Endroit, 1937]. Do outro, os modelos de obras admiradas, interiorizadas, aquelas que abriram primeiro o universo e às quais sentem dever a sua elevação, que muitas vezes consideram mesmo a sua verdadeira pátria. Nos meus estavam Flaubert, Proust, Virginia Woolf: [mas] quando chegou a hora de retomar a escrita, não me ajudaram. Tive de romper com o “bem escrito”, a bela frase, aquela mesma que ensinava aos meus alunos, para erradicar, expor e compreender a angústia que me atravessava. Veio-me espontaneamente o alarido de uma língua carregada de raiva e irrisão, até grosseria, uma língua de excesso, insurgente, muitas vezes usada pelos humilhados e ofendidos, como a única forma de responder à lembrança dos desprezos, da vergonha e da vergonha da vergonha.

Muito rapidamente, pareceu-me evidente — a ponto de não conseguir vislumbrar outro ponto de partida — ancorar a história da minha angústia social na situação que tive enquanto estudante, aquela, revoltante, à qual o Estado francês sempre condenou as mulheres, o recurso ao aborto clandestino nas mãos de uma fazedora de anjos. E queria descrever tudo o que tinha acontecido ao meu corpo de menina, a descoberta do prazer, a menstruação. Assim, nesse primeiro livro, publicado em 1974, sem que eu o soubesse então, foi definido o campo em que colocaria o meu trabalho de escrita, um campo simultaneamente social e feminista. Vingar a minha raça e vingar o meu sexo seria doravante uma só coisa.

Como não se questionar sobre a vida sem questionar também a escrita? Sem perguntar se ela reforça ou perturba as representações aceites e interiorizadas sobre os seres e as coisas? Será que a escrita insurgente, pela sua violência e irrisão, não refletia uma atitude de dominada? Quando o leitor era um privilegiado cultural, mantinha a posição de superioridade e condescendência relativamente à personagem do livro e da vida real. Foi, portanto, originalmente, para contrariar esse olhar que, lançado sobre o meu pai cuja vida queria contar, teria sido insuportável e, sentia-o, uma traição, que adotei, no meu quarto livro, uma escrita neutra, objetiva, “plana”, no sentido de que não continha metáforas ou sinais de emoção. A violência já não era exibida, vinha dos próprios factos e não da escrita. Encontrar as palavras que contivessem tanto a realidade quanto a sensação que a realidade proporciona tornou-se, até hoje, a minha preocupação constante na escrita, seja qual for o assunto.

O desejo de me servir do “eu”

Para mim, era necessário continuar a dizer “eu”. A primeira pessoa — aquela pela qual, na maioria das línguas, existimos, desde o momento em que sabemos falar até à morte — é muitas vezes considerada, na sua utilização literária, como narcisista quando se refere ao autor, que não se trata de um “eu” apresentado como fictício. É bom lembrar que o “eu”, até então privilégio dos nobres que contavam grandes feitos de armas nas suas Memórias, foi em França uma conquista democrática do século xviii, a afirmação da igualdade dos indivíduos e do direito de ser sujeito da sua história, como o reivindica Jean-Jacques Rousseau neste primeiro preâmbulo das Confissões: “E que ninguém objete que, sendo apenas um homem do povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos leitores. (…) Nalguma obscuridade que possa ter vivido, se pensei mais e melhor do que os reis, a história da minha alma é mais interessante do que a deles.”

Não foi esse orgulho plebeu que me motivou (embora…), mas a vontade de usar o “eu” — forma simultaneamente masculina e feminina — como uma ferramenta exploratória que capta as sensações, aquelas que a memória recalcou, aquelas que o mundo à nossa volta não cessa de nos dar, em tudo e sempre. Este pré-requisito da sensação tornou-se para mim ao mesmo tempo o guia e a garantia de autenticidade da minha pesquisa. Mas com que propósito? Para mim, não se trata de contar a história da minha vida nem de me libertar dos seus segredos, mas de decifrar uma situação vivida, um acontecimento, uma relação amorosa, e assim revelar algo a que só a escrita pode dar existência e transmitir, talvez, a outras consciências, outras memórias. Quem consegue dizer que amor, dor e luto, vergonha não são universais? Victor Hugo escreveu: “Nenhum de nós tem a honra de ter uma vida que lhe pertença.” Mas todas as coisas sendo vividas inexoravelmente de modo individual — “acontece comigo” —, só podem ser lidas da mesma forma se o “eu” do livro se tornar, de alguma forma, transparente e o do leitor ou leitora vierem ocupá-lo. Que esse “eu” seja, em suma, transpessoal, que o singular alcance o universal.

Assim concebi o meu compromisso com a escrita, que não consiste em escrever “para” uma categoria de leitores, mas “a partir” da minha experiência de mulher e imigrante do interior, da minha memória, doravante cada vez mais longa, dos anos atravessados, desde o presente, incessantemente provisores de imagens e palavras de outros. Este compromisso como penhor de mim mesma na escrita é sustentado pela crença, que se tornou certeza, de que um livro pode contribuir para mudar a vida pessoal, para quebrar a solidão das coisas sofridas e recalcadas, para se pensar diferentemente. Quando o indizível vem à tona, é político.

A forma mais violenta e mais arcaica

Vemos isso hoje com a revolta dessas mulheres que encontraram as palavras para inquietar o poder masculino e se ergueram, como no Irão, contra a sua forma mais violenta e arcaica. Escrevendo num país democrático, continuo, porém, a questionar-me sobre o lugar ocupado pelas mulheres, inclusive no campo literário. A sua legitimidade para produzir obras ainda não está adquirida. Existem em França e em todo o mundo intelectuais masculinos para quem simplesmente não há livros escritos por mulheres, nunca os citam. O reconhecimento do meu trabalho pela Academia Sueca é um sinal de justiça e esperança para todas as escritoras.

Ao trazer à tona o indizível social, essa interiorização das relações de dominação de classe e/ou racial, também de sexo, que é sentida apenas por quem é seu objeto, há a possibilidade de uma emancipação individual, mas também coletiva. Decifrar o mundo real despojando-o das visões e dos valores que a língua, qualquer língua, carrega, é perturbar a ordem estabelecida, perturbar as hierarquizações.

Mas não confundo essa ação política da escrita literária, condicionada na sua receção pelo leitor ou leitora, com as posições que me sinto compelida a assumir em relação aos acontecimentos, conflitos e ideias. Cresci na geração do pós-guerra, onde era natural que escritores e intelectuais se posicionassem relativamente à política francesa e se envolvessem nas lutas sociais. Ninguém pode dizer hoje que as coisas teriam sido diferentes sem as suas palavras e os seus compromissos. No mundo atual, no qual a multiplicidade das fontes de informação, a rapidez da substituição das imagens por outras acostumam a uma forma de indiferença, concentrar-se na sua arte é uma tentação. Mas, ao mesmo tempo, assiste-se na Europa — ainda mascarada pela violência de uma guerra imperialista travada pelo ditador que governa a Rússia — a ascensão de uma ideologia de ensimesmamento e fechamento, que se alastra e ganha cada vez mais espaço nos países até agora democráticos. Fundada na exclusão dos estrangeiros e imigrantes, no abandono dos economicamente débeis, na vigilância dos corpos das mulheres, impõe-me, a mim, como a todos aqueles para quem o valor do ser humano é o mesmo, sempre e em todo o lado, um dever de vigilância. Quanto ao peso do resgate do planeta, em grande parte destruído pelo apetite do poder económico, não pode pesar, como é de se temer, sobre os que já estão na miséria. O silêncio, em certos momentos da história, não é apropriado.

Uma vitória coletiva

Ao conceder-me a mais alta distinção literária que existe, é um trabalho de escrita e uma pesquisa pessoal realizada na solidão e na dúvida que aparecem na grande luz. Ela não me deslumbra. Não considero que a atribuição do prémio Nobel a mim seja uma vitória individual. Não é orgulho nem modéstia pensar que se trata, de alguma forma, de uma vitória coletiva. Partilho o meu orgulho com aqueles e aquelas que, de uma ou de outra forma, querem mais liberdade, igualdade e dignidade para todos os seres humanos, independentemente do seu sexo e género, da sua pele e da sua cultura. Os que pensam nas futuras gerações, em salvaguardar uma Terra que a ânsia de lucro de um pequeno número continua a tornar cada vez menos habitável para o conjunto das populações.

Se olhar para trás, para a promessa feita com 20 anos de vingar a minha raça, não saberei dizer se a cumpri. Foi dela, dos meus antepassados, homens e mulheres duros, com tarefas que os fizeram morrer cedo, que recebi a força e a raiva suficientes para ter o desejo e a ambição de lhe abrir espaço na literatura, neste conjunto de múltiplas vozes que, desde muito cedo, me acompanhou, dando-me acesso a outros mundos e outros pensamentos, inclusive ao de me rebelar contra ela e querer modificá-la. Registar a minha voz de mulher e de trânsfuga social naquilo que se apresenta sempre como um lugar de emancipação, a literatura.»

Futebol Totémico

David Lopes

Um artigo de Javier Rodriguez Marcos para a «Babélia» do jornal El País, com o título «Balón envenenado, libro redondo», traz esta citação de Goebbels: «Ganhar uma partida [de futebol] era mais importante para nós do que invadir uma cidade da Europa de Leste».

Ora aí está uma ideia que põe em perspectiva o que o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse sobre os direitos humanos, a falta deles, no Qatar, é bom citar: «O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal. Mas, enfim, esqueçamos isto, é criticável, mas concentremo-nos na equipa.» (quinta feira 17 de novembro, enquanto comentava o jogo de «preparação» Portugal-Nigéria).

Declarar, com este ânimo leve e festivo, que a «equipa» é mais importante do que os direitos humanos e as questões ambientais provocou algum embaraço, político e social. Mas a Assembleia da República vai autorizar a viagem do Presidente República, do Primeiro-ministro e do Presidente da Assembleia da República ao país, Qatar, que se esteve nas tintas para os direitos mais básicos (vida, liberdade e segurança, por exemplo) de milhares de trabalhadores, a maioria estrangeiros, que construíram as instalações nas quais a «equipa» vai jogar.

Com igual leviandade, o nosso Primeiro-ministro, um experiente futbolítico (conceito de Ramon Usall), disse que não quer fugir à questão sobre os problemas que se levantam em torno do mundial, mas acaba por ser mais rápido do que Lucky Luke a fugir dessa mesma questão. Ora vejam: «Não quero fugir à questão do campeonato do mundo, que é onde é. Todos temos posição sobre o que é o Qatar, mas o que faz com que a nossa selecção esteja no campeonato do mundo é que é uma das poucas selecções que conseguiram apurar-se.» (declaração de sexta feira à noite, 18 de novembro. Cito a partir deste artigo do Jornal Público, respeitando a desconstrução da língua portuguesa).

E, assim, o vencedor é… a «equipa». Tudo pela «equipa», nada contra a «equipa». Um novo totem (mistura de Freud e Lévi-Strauss) e uma nova narrativa de alienação. Se sabíamos que o futebol era estridente, discursivamente incandescente e um reduto inabalável de desigualdade social (quem se atreve a questionar os vencimentos estratosféricos de 100 ou 200 eleitos?), agora, contra os princípios da Modernidade, devemos acrescentar que a «equipa» é o novo valor dos valores, oscilando facilmente entre o furor e o analgésico, as massas precisam de gritar e de ir andado com a cabeça entre as orelhas.

Age, pois, de tal forma que a tua ação seja sempre boa e nunca má para a «equipa» (não é kantiano, mas quase).

As meninas revolucionárias

Uma mecha de cabelo fora do véu e Mahsa Amini, que visitava Teerão com os pais, é abordada pela «polícia da moralidade» (zeladores dos «bons costumes», ditados por Maomé no recente século VII e reeditados ontem, 1979, pela revolução islâmica anti-iluminista da República — a sério? — Islâmica do Irão) no dia 13 de setembro, abordada e detida. Ao fim de três dias, foi levada em coma profundo para um hospital, morreu pouco depois.

O país, uma parte significativa dele, entrou, entretanto, em ebulição, efervescência combatida com mão de ferro pelos velhos sábios do autoritarismo islâmico, detentores do monopólio da violência legal (mistura de leis positivas e religiosas, com muita corrupção institucional à mistura). Apesar do controlo mortífero — atirar a matar contra as manifestantes, penas de prisão arbitrárias e massivas, prepotência da justiça institucional (cada vez mais ideológica) —, as manifestações continuam, pagas com cerca de 300 mortes e 15 000 detenções. Em geral, protagonizadas por jovens, sobretudo adolescentes, que querem, de acordo com o slogan, «Mulher. Vida. Liberdade.», um futuro com sentido, futuro imaginado sem o fanatismo patriarcal. No jornal online Jadaliyya.com, uma jovem iraniana refere que as manifestações são feitas arriscando a própria vida, inscrevem no corpo a possibilidade real de uma morte incrível e absurdamente prematura. Mas diz mais, as pessoas vão para a rua também com o corpo que desejam ter, com um imaginário próprio, incarnam o ato revolucionário com esta imaginação.

A luta, que parece influenciada por valores ocidentais (os mais compatíveis com uma vida humana digna, já agora), opõe-se à cartilha de «bons» costumes de um país que se transformou, depois da revolução de 1979, rapidamente numa ditadura militar, que responde às objeções com aquilo que conhece: violência e morte. É por isso que o politólogo Farhad Khosrokhavar fala de «tanatocracia», um regime que governa «pela morte e pelo medo da condenação à morte». Isto tem, é bem claro, o propósito de manter o país relativamente isolado, o ódio ao Ocidente, especialmente aos USA, é a forma de consolidar um statu quo que privilegia exponencialmente a classe dirigente: militares e religiosos. Khamenei necessita de se confrontar quase permanentemente com o Ocidente, é esse inimigo que facilita a narrativa do nacionalismo e do contínuo estado de exceção, esse inimigo é o seguro de vida da teocracia, ou tanatocracia iraniana (cujos modelos foram o fascismo e o estalinismo). A integração do Irão no mundo global, pela multiplicação de influências que quase de certeza conduziriam à reforma do atual regime, continuará a ser adiada enquanto prevalecer um poder patriarcal sustentado numa ditadura militar.

Era bom que regressássemos mais vezes a Pierre Bourdieu, La domination masculine (Paris, Seuil, 1998), para percebermos melhor por que razão, na sequência do que acabei de escrever, por trás da violência física, dos castigos sobre o corpo, vive uma violência simbólica que «constitui o essencial da dominação masculina». A obrigatoriedade do uso do véu pelo sexo feminino, instaurada pouco depois da revolução de 1979 (a tal que iria libertar os e as iranianas), é uma parte importante dessa violência, responsável por um apartheid de género, de facto e de jure. Ora, é contra esta primeira, e primordial, usurpação da liberdade feminina que hoje se levantam muitas mulheres iranianas (também alguns homens, é verdade). Sobretudo jovens, algumas ainda na primeira fase da adolescência. Com a audácia e a coragem que falta aos acomodados no «para mal já basta assim» (sim, porque só os alucinados ou os oportunistas do regime julgam viver bem no Irão). E que nos falta a nós também. Quem detém o monopólio do protesto em Portugal (partidos políticos e produtores de opinião) pouco fez, não houve qualquer gritaria e os artigos nos meios de comunicação social contaram-se pelos dedos de uma mão.

Mas se há uma revolução, larvar, que hoje importa, é a do Irão. Pela inteligência e a coragem (de me fazer corar de vergonha) que demonstram as meninas iranianas (é uma expressão de carinho com sociologia e demografia à mistura). Não vejo outra que contenha tanta esperança num mundo melhor, não vejo outra que contenha tão poucas forças revanchistas, tão pouca apetência para se metamorfosear em ditadura. Isto deve-se, tenho esta convicção profunda, à motivação feminina que informa os protestos, é contra a sacralização das descriminações e violências sexistas da ordem islâmica que o feminino lidera as manifestações, nas quais muitas tiram o véu, nas quais muitas arriscam a prisão ou a morte. Se vencerem, o Irão será mais justo, livre e igual, porque elas querem ser livres e iguais, não superiores, arrumadoras e castradoras.

Se pensarmos que o Irão é, na realidade, um estado «zombie» (conceito de Zygmunt Bauman), porque estamos enganados quando julgamos que o país tem uma burocracia funcional, com linhas vermelhas claras, que as elites inspiram, medo e confiança, que as instituições têm um real poder. Tudo, ou quase, está moribundo. Mesmo que dure ainda algum tempo (que será sempre tempo a mais), acabará por morrer, desaparecer, fará parte da história espúria do país. Em Homo Sacer, Giorgio Agamben usa a noção «resto» para designar uma parte do real que escapa ao poder. Será deste «resto», do que escapou à tentativa de monopolização das ideias, narrativas, imaginário… que, a partir da indignação justa, se fará o novo Irão.  Os «restos» são, hoje, mais vitais do que os sentidos que permitem a alguns dizer: «a República Islâmica do Irão é a nossa casa e vamos lutar por ela, tal como está, petrificada numa sagração pífia». Estes poucos que ainda dominam não percebem que são prisioneiros dessa mesma dominação, que o medo de abrirem as suas próprias celas os aliena e apodrece aquilo que julgam ser salvífico. Por isso, cairão. E as meninas sem véu serão professoras, médicas, políticas, mães, amantes, músicas, engenheiras... Livres, justas e inteligentes, com esse pleno de vida que por vezes nos cabe em sorte e que nelas será a conquista mais exemplar da história.

Annie Ernaux, uma entrevista

Na Enfermaria gostamos muito de Annie Ernaux, foi, pois, com grande felicidade que soubemos do Nobel da Literatura, prémio que não desdenhamos, como agora é de bom tom fazer-se nos círculos restritos da mais alta inteligência literária. Há sempre «uvas verdes».

Depois de uma brevíssima introdução, deixamos-vos com uma entrevista ao jornal Le Monde, da jornalista Sandrine Blanchard, com cerca de 6 anos, julgamos que é uma boa maneira de ficarmos um pouco juntos dela, de partículas da sua realidade. A tradução é de Victor Gonçalves

Elena Medel, poeta e romancista, refere, num artigo ao El País (8/10/2022), que Annie Ernaux «transcende as etiquetas de “autobiografia” ou “autoficção”», ela própria recorreu, antes, ao conceito de «auto-socio-biografia», ela que gosta tanto de Bourdieu. Gosta também, o seu feminismo não é secreto , de Simone de Beauvoir, e, por razões agora ligadas às questões de mobilidade social e vergonha de classe, de Dédier Éribon, do seu magnífico Retours à Reims. A própria autora disse, numa entrevista a Mará Sonia Cristoff, Clarín, que «classe de origem e feminismo são dois eixos cruciais na hora de escrever, atravessam tudo o que escrevo.»

Há muito onde ir buscar na sua obra uma frase síntese, que, como é habitual em situações semelhantes, relevará tanto quanto esconderá, gostamos e optamos por esta: «Et je crains toujours de laisser échapper quelque chose d’essentiel. L’écriture, en somme, jalousie du réel.» [Temo sempre deixar escapar alguma coisa de essencial. A escrita, em suma, ciúme do real.] (Annie Ernaux, L’occupation)

 Je ne serais pas arrivée là si… [não teria chegado aqui se…],
… Se a minha mãe! E é sem hesitação possível! Foi fundamental. Pela sua personalidade, a sua força, a sua visão do mundo e em particular do mundo social. Tudo isso me suportou, e também me levou à revolta. Ela queria traçar o meu próprio destino. É largamente responsável por ele.

Esta mãe sempre a empurrou para a frente. Ela queria dar-lhe aquilo que não tinha tido?
Acima de tudo, ela queria dar-me uma vida interessante, uma vida independente — este termo era muito importante. Era menos o sucesso material do que o sucesso intelectual que importava para ela. Quando percebe que a escola está a resultar, fará tudo para me facilitar esse percurso e nomeadamente — o que era bastante excecional para as raparigas da época — impedir-me literalmente de me entregar a uma ocupação feminina. Ela tinha uma espécie de condescendência, quase desprezo, pelas mulheres que ficavam em casa porque os maridos podiam sustentá-las. Fui criada nessa imagem negativa do lar. Quando o meu pai morreu, disse-me, pouco depois, uma frase que achei terrível: «Vou limpar-te a casa». Era para me libertar desses afazeres. Isto significava «ainda estou aqui». É enorme.

Quando pensa na sua mãe, qual é a primeira imagem que aparece?
Materialmente, é a imagem do fogo. É uma mulher que, como dizia, nunca se deixou pisar. O meu feminismo vem dela. A minha mãe não tinha medo de nada. Estava sempre revoltada. Com espantosos excessos de violência. Não vivíamos na doçura na família Duchesne! Recebi muitas chapadas. Neste campo, eu sou a lenda da família!

Porquê?
Porque era fresca! Opus-me rapidamente à autoridade. Só pensava em desobedecer. Estava bastante inclinada para as questões sexuais. A minha mãe achava que eu continha todas as possibilidades do mal, e eu também estava convencida disso.

A sua excelência escolar foi para agradar à sua mãe ou porque gostava da escola?
A escola fazia-me feliz. Como filha única, encontrei finalmente colegas de turma. Era uma faladora inveterada. E adorava ler. Mas separava as minhas leituras, os livros comprados pela minha mãe e os das aulas de francês.

Quais são as suas primeiras memórias marcantes de leitura?
E Tudo o Vento Levou
[Gone with the wind] de Margaret Mitchell, que li quando tinha nove anos. A minha mãe tinha-o comprado para ela. Acho que foi a maneira como ela falava dele com os clientes na mercearia que me fez querer lê-lo. Porque eu adorava estar debaixo do balcão a ouvi-los discutir. Este livro representava um mundo para mim. Acreditava na realidade dessa história. Eu até procurei o nome Scarlett O’Hara no dicionário! Queria saber mais do que o livro! Jane Eyre, de Charlotte Brontë, também me marcou muito. Este livro na primeira pessoa é como um fio condutor da existência. Trata-se, também aqui, de viver uma vida de independência, sem dominação. Estes modelos estruturaram-me.

Quais são os seus sonhos de jovem?
Em criança, não tinha nenhum desejo específico, o futuro estava em aberto. Com os meus amigos, os meus primos, havia o imaginário do amor. Nas cartas que escrevi aos dezasseis anos sentia repugnância pelo casamento. Na época, não podíamos imaginar outra maneira de estar com um homem. Tenho a sensação, desde muito cedo, de que o casamento nada mais é do que quase o fim da vida. Talvez tenha sido a influência da leitura de Une vie de Maupassant que me abalou. Li-o aos treze anos às escondidas e fiquei completamente alterada.

Desenhava-se um desejo profissional?
Eu sabia que ia fazer alguma coisa. A minha mãe sempre me recordou de que na escola primária uma freira lhe disse: «Annie é uma futura professora.» Não falhou! Nos trânsfugas sociais, os milagrosos passam por aí; por uma profissão na qual não há necessidade de ter uma herança económica.

Desde quando tem essa consciência de classe?
Nunca foi totalmente formulada. Mesmo no meu diário íntimo. Vem da sensação e da certeza: pertenço a um meio modesto. Tenho essa consciência de classe na escolha dos amigos, na diferença que sinto perante outrem. Sei tudo o que me separa de alguns deles e ao mesmo tempo tenho essa vontade de os conhecer. É um mundo que me parece maravilhoso, porque há a música clássica, aquela que eu ignoro. A música é realmente, na época da adolescência, o signo de exclusão. É dela que eu mais me quero apropriar.

De que sente mais falta?
Muitas coisas! Mas nunca é ciúme social. É a sensação de uma falta, de uma imperfeição. A ideia de injustiça vem muito depois.

Chega quando?
Eu não sentia isso em mim, mas nas situações. Quando fiz a minha comunhão no internato católico de Yvetot, perguntei se a minha prima — que estava na escola pública — podia vir. Chega o dia, estamos em maio, ela levou o vestido mais bonito que tinha e um casaco de pele de coelho. A diretora chega ao pé de mim: «Onde está a sua prima, não a vejo?» Respondo-lhe: «Está ali.» Então, o rosto da diretora... era desprezo. Nunca me esqueci. Histórias assim, tenho toneladas delas. É a força dos trânsfugas quando admitem que o são: eles sabem muito mais sobre o mundo social, pela posição que ocupam, do que aqueles que estão naturalmente no mundo dominante.

Em que momento teve a sensação de ter mudado de classe social?
Principalmente ao morar longe dos meus pais e ao casar com um rapaz que era de classe média burguesa de direita.

O que mudou então na vida diária?
Temas de conversa; o facto de sentir a condescendência do meu companheiro pelos meus pais e meio social; as famosas maneiras à mesa e, o que imediatamente me impressionou muito, essa segurança no mundo, da qual eu estava completamente privada. Tem-se a impressão de que o mundo é feito para essa classe dominante e que lhe pertence de direito e de facto. Também está ligada ao corpo: essa estranheza de ter um corpo plebeu, um lado «campónio».

Qual foi a primeira pessoa a quem falou sobre o seu desejo de escrever?
A uma nova amiga, que encontrei quando me matriculo na faculdade de letras. Em junho, quando fui aceite na propedêutica, lembro-me de escrever inventando um nome para mim: «Anne Saint-Claire vai publicar o seu primeiro romance.» É muito estranho. Posteriormente, sofri recusas justificadas. As coisas não aconteceram de forma linear. A consequência dessas recusas é a fuga em busca de um relacionamento com um homem. Depois, uma série de coisas um tanto dramáticas, como o meu aborto. Finalmente, vejo-me casada e depois mãe. Não consigo escrever, mas nunca paro de pensar nisso. O meu marido, Philippe Ernaux, leu o meu primeiro texto, com comentários pouco agradáveis. Depois disso, nunca mais pedi a ninguém para me ler. Muito rapidamente, questiono-me sobre a escrita: não há história para contar. Não é a história que conta, mas o que estava em jogo na história. No que vivenciamos, há algo que faz avançar o conhecimento. Há mais no escrever do que no recordar.

Tinha «o desejo de visitar o planeta». Fê-lo?
Este desejo foi rapidamente canalizado pelas necessidades da vida. Finalmente, viajei principalmente por causa dos meus livros. Mas fiz uma viagem extremamente importante com o meu marido em 1972. Tinha 31 anos. Foi organizado pelo Le Nouvel Observateur (antepassado de L'Obs) para conhecer Salvador Allende no Chile. Essa viagem durou duas semanas. Graças ao contacto com as poblaciones fiz uma viagem de regresso extraordinária à minha infância.

Porquê?
Porque percebo o quanto vivi num mundo próximo do que às vezes via nas poblaciones: o bairro operário, a família da minha mãe no qual o álcool era devastador, etc. Tenho a sensação de ter coisas para dizer. E depois, a acompanhar o grupo, havia um jornalista literário do Nouvel Obs, Jean-François Josselin. Conversávamos muito com ele. Não sei como nem porquê, revelei-lhe o meu segredo: já havia escrito um texto. Além do meu marido, ninguém sabia. Jean-François Josselin queria que lho enviasse. Prometi fazê-lo. Mas não mantive a promessa. Esse primeiro texto de 1962 era muito extravagante. Eu não contava a realidade, não tinha nada de social, era uma forma que procurava. Finalmente, comecei a escrever um mês depois dessa viagem ao fim do mundo.

A política sempre lhe interessou...
Pertenço a essa geração que se alimentou das histórias das guerras do século xx. Na família, mas também na aula, na qual o meu professor de história nos leu Os Sinos de Nagasaki [Takashi Nagai, 1949]. E depois, desde a infância que ouvi falar de política, à maneira das conversas de café. No café do meu pai. E a minha mãe sempre votou. Acompanhei-a pela primeira vez a uma urna em 1945. Ela ia assistir até à contagem. Continuo à espera de uma mudança profunda. Constato há várias décadas um movimento irreprimível da sociedade em direção a uma espécie de isolamento. Não há uma real aceitação dos outros. Dei aulas em Pontoise entre 1975 e 1977. Lembro-me de uma turma difícil do 9.º ano, agitada. Debatemos. Ainda tenho em mente os discursos já populistas dos estudantes que me diziam: «A minha irmã não teve um uma habitação social enquanto os árabes tiveram.» Arrastamos a questão do racismo há muito.

Quando teve o sentimento pleno e completo de ser escritora?
Tenho antes a consciência de um privilégio, uma oportunidade de poder fazer algo que é — talvez como a minha mãe teria dito — o que há de mais belo. Não procurei fazer carreira, mas preservar a possibilidade de escrever. Aliás, é muito difícil. Perante cada livro a ser escrito, não sou nada, de cada vez é uma luta. Realizei esse sonho de escrever e ser publicada. Mas não é o nirvana, a felicidade, não é nada do que eu imaginava.

Quer dizer?
Nunca imaginei que seria um compromisso tão grande; a forma quase mística que a escrita tomaria. É preciso sacrificar muitas coisas: vida sentimental, um pouco a família também. Eu não sou uma avó muito disponível! Quando agarramos a dobra, acabou. A existência é informe e vazia sem a escrita. Não se trata de dizer «nem um dia sem uma linha», mas de procurar, de ter um projeto e de que tudo esteja centrado em torno dele. Viver com um livro que terá de ser escrito. Mémoire de fille, teria sentido uma grande culpa se não o tivesse feito. La Place, também.

«É assim que vivem os homens»: Sempre se colocou esta pergunta...
Sim. Imergi desde muito cedo numa comunidade de pessoas. Conviver de manhã à noite com os fregueses de uma mercearia-café, com pouca ou nenhuma intimidade familiar, tinha a sensação de ser atravessada, desde muito cedo, por todo o tipo de conversas e linguagens. Depois, mudar de classe social, ou seja, mudar de mundo, dispõe para a observação, a fazer perguntas. As clivagens sociais continuam muito fortes. A sociedade francesa permanece uma espécie de aristocracia com os seus fastos, o seu cerimonial, as suas categorizações...

Que lugar teve a religião na sua vida?
Um grande lugar. No internato havia todos os dias história sagrada e orações. Para a minha mãe, o importante era haver religião: acreditar em Deus e comportar-se de acordo com uma regra moral. Ela acreditava na eficácia da oração. Mas quando a minha irmã morreu de difteria, a oração não fez muita coisa. Fiquei realmente marcada pelos sacrifícios a fazer e pela culpa sexual da minha primeira confissão aos sete anos: acusei-me de ter tido gestos indecentes e recebi uma saraivada de vergastadas do confessor. Portanto, entendi que era praticamente maldita.

O que sobrou?
Resta o que poderia chamar-se hipotexto. É também como um primeiro mundo [a religião]. Mesmo estando convencida de que o nada [néant] nos espera, ajo como se houvesse algo que deve ser salvo e do qual sou a guardiã. Não é a minha alma, é o que faço. É muito diferente. Pode dizer-se que a literatura ou a escrita substituíram, de certa forma, Deus. Ou que escrever é a missão que me foi dada.

Como experimentou os ataques? [ao aeroporto Zaventem, por islamistas, 32 vítimas]
Esta manhã, no rádio, fiquei impressionada com o que um rapaz muito composto e calmo disse na France Inter: sim, há violência, mas não tanto quanto nas grandes guerras anteriores ou na Síria. Não foi dito por passividade, mas como uma espécie de sentimento do que é o curso da história. O mais difícil é tentar entender e saber que não seremos capazes de o perceber no momento presente; será mais tarde. O que também chama a atenção — e é terrível dizê-lo — é a facilidade com que integramos o que acontece. No dia seguinte aos atentados de Bruxelas, no RER [comboio suburbano] entre Paris e Cergy, um homem e uma mulher usavam apenas boatos sobre o que havia acontecido em Bruxelas. «Parece-me que algo aconteceu», dizia a mulher. Foi só isso. Esta vida que continua impressionou-me. Só falavam de trabalho, férias, filhos... Era um dia como outro.

Roger Federer a persona tenística

 Roger Federer anunciou há poucos dias que se retirava do ténis. Não é bem assim, pelo que fez, 20 títulos do grand slam, 6 títulos em Masters, 28 títulos de ATP 1000, 24 títulos em ATP 500, 25 em ATP 250 (incluindo o Estoril Open), 237 semanas como número 1 mundial, 103 títulos no total, ele é, se não o ténis, uma grande parte do ténis (ia dizer «moderno», mas o ténis é todo ele moderno, jogado, em qualquer época, é sempre veloz e mutante, traços da modernidade baudelairiana). E agora que não pode voltar a perder ou a jogar mal (raramente), alcançou o estatuto de lenda (todos o dizem, basta isso). E como acontece na economia do lendário, o protagonista torna-se eterno.

Roger apareceu depois de me ter iniciado nas artes da raqueta, mas na altura jogava tão espontaneamente mal que não identifiquei o cometa que entrava no mundo do ténis. Reparei, sem dúvida, na beleza dos gestos, e na vasta gama de recursos técnicos, Roger jogava, e isso percebi imediatamente, um ténis total, usava todas as pancadas, movia-se fantasticamente, era taticamente brilhante e, igualmente importante, não parecia lutar contra ninguém, jogava e ganhava porque aproveitava o momento certo (tinha um kairós exemplar) para superar as circunstâncias (adversário, lei da gravidade, limitações biomecânicas, público, chuva, vento…).

Mas daí a projetar a carreira que viria a ter ia um grande passo. Limitações da minha análise e imaginação, com certeza. Mas faltavam também referências superlativas. Havia Björn Borg, John McEnroe, Andre Agassi, Pete Sampras, Mats Wilander, Ivan Lendl, Rod Laver, depois Novak Djokovic e Rafael Nadal…, mas faltava uma ideia de génio que enquadrasse Roger Federer. E tinha de faltar, o génio é precisamente aquele que não pode ser enquadrado, que está fora das regras conhecidas, que cria (a partir do quê?) as suas próprias regras.

 Essa genialidade foi revelando alguns dos fios com que se tecia, nas pancadas, seguramente, nos pontos e encontros ganhos, ainda mais claro, mas igualmente na beleza dos gestos (o belo, apesar da modernidade tardia o descartar, continua a fazer-nos felizes) e na personagem que Roger criou, meio real meio ficção, na sua persona tenística. Pouco a pouco, mesmo depois de terem surgido tenistas mais performativos, Djokovic e Rafael Nadal (Federer não tem um registo positivo com eles), a persona Federer continuou a ser a mais reconhecida (apesar dos 14 títulos de Roland Garros de Nadal, épico). Uma persona tangível, obviamente, mas também celestial, feita de uma metafísica que nos toca sem nos esclarecer, uma admiração sem conceitos. Talvez se trate de uma «experiência religiosa», como a descreveu David Foster Wallace. Ou de uma plenitude mais secular. O certo é que basta um nível mínimo de iniciação ao ténis para nos prostrarmos perante a sua enorme persona tenística. Não é por acaso que a vedeta emergente, vencedor do US open deste ano, Carlos Alcaraz, o tem como modelo (inimitável, sabe-o bem).

Assim, confundindo-se o ténis com Federer, mais o ideal, no sentido platónico, do que o real (onde pontua demasiada imperfeição), o anúncio da sua retirada significa apenas que vai deixar de competir no terreno de jogo. Quer queira quer não (e parece querer), ficará incrustado nesse mundo, no qual é impossível brilhar sem lhe pedir emprestados alguns raios de luz, é o que significa dizer que tal ou tal jogador se «compara a Roger Federer». Encostou a raqueta, mas a sua persona está em todo o lado, bem viva.