Futebol Totémico
/Um artigo de Javier Rodriguez Marcos para a «Babélia» do jornal El País, com o título «Balón envenenado, libro redondo», traz esta citação de Goebbels: «Ganhar uma partida [de futebol] era mais importante para nós do que invadir uma cidade da Europa de Leste».
Ora aí está uma ideia que põe em perspectiva o que o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse sobre os direitos humanos, a falta deles, no Qatar, é bom citar: «O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal. Mas, enfim, esqueçamos isto, é criticável, mas concentremo-nos na equipa.» (quinta feira 17 de novembro, enquanto comentava o jogo de «preparação» Portugal-Nigéria).
Declarar, com este ânimo leve e festivo, que a «equipa» é mais importante do que os direitos humanos e as questões ambientais provocou algum embaraço, político e social. Mas a Assembleia da República vai autorizar a viagem do Presidente República, do Primeiro-ministro e do Presidente da Assembleia da República ao país, Qatar, que se esteve nas tintas para os direitos mais básicos (vida, liberdade e segurança, por exemplo) de milhares de trabalhadores, a maioria estrangeiros, que construíram as instalações nas quais a «equipa» vai jogar.
Com igual leviandade, o nosso Primeiro-ministro, um experiente futbolítico (conceito de Ramon Usall), disse que não quer fugir à questão sobre os problemas que se levantam em torno do mundial, mas acaba por ser mais rápido do que Lucky Luke a fugir dessa mesma questão. Ora vejam: «Não quero fugir à questão do campeonato do mundo, que é onde é. Todos temos posição sobre o que é o Qatar, mas o que faz com que a nossa selecção esteja no campeonato do mundo é que é uma das poucas selecções que conseguiram apurar-se.» (declaração de sexta feira à noite, 18 de novembro. Cito a partir deste artigo do Jornal Público, respeitando a desconstrução da língua portuguesa).
E, assim, o vencedor é… a «equipa». Tudo pela «equipa», nada contra a «equipa». Um novo totem (mistura de Freud e Lévi-Strauss) e uma nova narrativa de alienação. Se sabíamos que o futebol era estridente, discursivamente incandescente e um reduto inabalável de desigualdade social (quem se atreve a questionar os vencimentos estratosféricos de 100 ou 200 eleitos?), agora, contra os princípios da Modernidade, devemos acrescentar que a «equipa» é o novo valor dos valores, oscilando facilmente entre o furor e o analgésico, as massas precisam de gritar e de ir andado com a cabeça entre as orelhas.
Age, pois, de tal forma que a tua ação seja sempre boa e nunca má para a «equipa» (não é kantiano, mas quase).