Poesia Portuguesa Contemporânea e Um País Em Bicos dos Pés

Devemos alegrar-nos, talvez como acontecia nos festivais dionisíacos (ainda sem pulseiras). Saltar por cima desta tristeza que aprendeu a insinuar-se até na garrafa de vinho mais premiada de Robert Parker. É que é muito raro testemunhar a edição de dois livros com a beleza e a importância dos que aqui trago em jeito de nota de leitura (ainda incompleta). Merecem, com certeza, receções críticas mais longas, profundas e, talvez, aborrecidas (sem desprimor, o insípido é uma categoria ambivalente). Espero que outros as façam, eu não tenho o vigor necessário (nem as competências dos hermeneutas canonizados), cabe-me, todos os dias, como Kant, cumprir a circunstância de tarefeiro do Estado, multifuncional e alienado, paradigma da compulsão para um gasto delirante e inútil de tempo. Noutra vida serei outra coisa (Rimbaud diferido), não sei bem o quê, espero apenas deixar menos livros por ler e não adiar conversas com quem (ou o quê, agora temos o ChatGPT) consegue apontar alguns ângulos mortos ao meu olhar.
Quer Joaquim Manuel Magalhães, quer Diogo Ramada Curto fazem crítica cultural, isto é, numa caracterização muito pessoal, analisam e avaliam o que, e como, autores na arena das artes expressaram em obras que vão da poesia ao romance, passando pelo ensaio, artes plásticas e documentos epistolares (as cartas assassinas são maravilhosas). O que disseram (análise), como o disseram (análise), com que intenção (avaliação) e repercussão (avaliação).
Tal é relevante porque acrescenta inteligibilidade aos autores e às obras, mas também porque nos coloca a par do olhar que nos últimos cerca de 150 anos os artistas, em grande medida fenomenólogos visionários, lançaram sobre a viabilidade da arte que praticavam e a distância entre expectativas de receção e o acolhimento de facto pelos seus pares (sobretudo Joaquim Manuel Magalhães) e por um país menor, menorizado, automenorizado, que prefere consumir a sua inteligência a fabricar o enquadramento mítico, vibrante mas impreciso, de destinos heróicos ou lamentar-se de uma pequenez autoinfligida em vez de resolver os problemas reais que impedem um povo e uma cultura de se realizar (sobretudo Diogo Ramada Curto). Os milhares de enunciações performativas, à maneira de John Austin, que lançaram sobre o tempo e o espaço que escolheram recortar da totalidade do universo (numa suprema bazófia, em Os Maias Ega queria contar, literalmente, uma história universal) permite esboçar retratos do humano, da linguagem e da cultura, sobretudo os que compõem aquilo a que chamamos Portugal.
Só um país culturalmente indigente pode desvalorizar, sem qualquer estratégia para lá da pequena maledicência ou de um maniqueísmo estético que aposta tudo na criação e nada na receção, a crítica em geral. Neste caso, a crítica de Joaquim Manuel Magalhães e Diogo Ramada Curto — que é também criação literária, nem tenho qualquer dúvida — permite apoderarmo-nos de sentidos originários de tempos, ações e contextos que sem eles seriam ou significados não reclamados ou significados perspetivados de forma mais redutora. Se é verdade que não há emancipação pura, que em todas as formas de libertação se insinua a alienação, também não deixa de ser uma certeza que a leitura destas obras tornará a cultura portuguesa mais ampla e complexa, mesmo que à custa de se acrescentar saber sobre a sua mesquinhez.

Na Poesia Portuguesa Contemporânea, Joaquim Manuel Magalhães reune, em cerca de 1100 páginas, tudo o que escreveu sobre poesia portuguesa até 2007 (quando percebeu «que nada mais [lhe] apetecia escrever sobre o assunto»). Publicou em revistas, jornais e livros que compuseram obras já editadas: Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981; Um Pouco de Morte, Presença, 1989; Rima Pobre, Presença, 1999. A pequena exceção de alguns textos inéditos das décadas de 80 e 90 não altera significativamente a ontologia da repetição, talvez com o sentido, ainda que heterodoxo, de antologia. A decisão de não-escrita podia ter sido interrompida, diz o autor, pela qualidade de três poetas que muito aprecia: Frederico Pedreira, Sebastião Belfort Cerqueira e Marcos Foz. Também a obra coletiva Alcazar (2022) quase o tirava do sossego acrítico. Mas, enfim, no livro estão reunidos os poetas que JMM mais admirou e, nalguns casos, odiou, faltando apenas, na admiração, Fernando Guerreiro, por incoincidência entre as publicações deste e a crítica daquele.
O trabalho crítico de JMM, fazendo autoridade, não é uma visão pura, desinteressada e omnisciente sobre a produção literária, sobretudo poética, portuguesa contemporânea. Devemos levar a sério o que disse numa entrevista a Hugo Pinto Santos (a quem dedica este livro) para o jornal Público em 2018: «Odiaria ser um totalitário do gosto». Mas creio que é incontornável, até para ajuizarmos contra ele, ler o que escreveu. Por duas razões principais: 1- é um bom sismógrafo poético, identifica as fendas criativas que foram aparecendo na poesia portuguesa, não todas, é verdade, mas muitas das relevantes; 2- tem um olhar certeiro, embora por vezes excessivamente cáustico, sobre o modo de ser, e parecer, português, um jornalista dececionado com os costumes, tanto os da elite académica da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa quanto os das famílias remediadas que ciosas do seu estatuto social se tornaram veraneantes no pós-25 de Abril, passando, claro, pelos jogos de receção (do silêncio à hagiografia) das produções poéticas (dos quais não se pode eximir). Além disso, constrói códigos de leitura para mais de 50 poetas, e muitas mais obras, que teremos todo o interesse, mutadis mutandis, em reutilizar, reconhecendo que não somos hermeneutas algorítmicos. E, por último, mas não menos importante, é um bom criador de sintagmas, desses que nos salvam o dia e autorizam acreditar no futuro, por exemplo: «mercenários do ideológicos»; «O fôlego incomparável dos que ganham sem correr.»; ou «Os grandes contributos de um poeta residem, quase sempre, mais num pequeno jeito com que ultrapassa a invenção dominante que lhe é anterior do que em longas páginas de conteúdos, latejos e insurreições.»
1200 páginas, Bestiário, c. 40€, mas há livrarias amigas.

O subtítulo de Um País Em Bicos dos Pés é Escritores, Artistas e Movimentos Culturais. Portanto, um livro de crítica estética e de crítica cultural, ou crítica de costumes. De como na criação estética se inventam e consolidam visões do mundo, por vezes mais precisas e importantes do que na produção científica que tem por vocação, sempre relativa e seletiva, descrever as coisas e as ações humanas (sociologia, história, filosofia, psicologia, geografia…). E Diogo Ramada Curto usa o título para nos dar um vislumbre decisivo sobre como as elites culturais portugueses desde Eça de Queiroz, é aí que decide começar a histórias dos bicos de pés, se elevaram (erguer seria um termo desajustado) sem saberem formar um verdadeiro salto, desses que entusiasmam o público porque os vê como trampolim para que o coletivo suba um degrau na escada da civilização. A inspiração veio de Jorge de Sena, que em Estrada Larga, há mais de meio século, dizia que «era necessário que deixássemos de ser um país de “anões em bicos de pés”, para, através do estudo, passarmos a ser “anões com dignidade”. Só então talvez se descobrisse “que não éramos todos anões, afinal”.» (Citei DRC).
A maior parte dos capítulos é composta por textos já publicados, sobretudo em jornais e revistas (principalmente, Expresso, Público e Contacto). Uma compilação, pois. Mas mantém-se um bom equilíbrio entre a atualidade e o poder de ultrapassar o que nela há de acidental, como Foucault pretendeu fazer na sua «ontologia do presente». São oito capítulos: 1- Eça, Batalha, Fialho; 2- Feijó, Laranjeira, Brandão, Marnoco; 3- Amadeo, Botto, Pessoa, Almada, Sarah Affonso; 4- Mulheres escritoras; 5- Intelectuais e artistas do Estado Novo; 6- Resistentes, pessimistas, lutadores; 7- Memorialismo, comemorações, história; 8- Um meio pequeno, a universidade, a cultura popular.
A introdução começa com: «Saber se há ou não uma mediocridade que nos sufoca é o propósito deste livro.» Um mediocridade alimentada pela falta de ousadia de pensamento, o que significa prescindir da liberdade de pensar. «O respeitinho pelo consenso». E isto é desde logo importante para desvelarmos no passado o código genético que marca o presente, mas também porque «através da análise do trabalho intelectual dos outros, encontramos os instrumentos necessários para o exame crítico do que é feito por nós». A crítica como motor da autocrítica. Sobre a metodologia, seguindo esta linha de raciocínio, escreve DRC: «criar distância, ganhando em objectividade, ultrapassando ideias feitas e fugindo a estafadas lógicas de comemoração.»
600 páginas, Almedina, c. de 30€, também aqui há livrarias amigas.

Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Leituras 2022, Victor Gonçalves

Estes são alguns dos livros que li em 2022 (cuidado, há imensas obras boas que não li, algumas nem sei que existem). Os que me acompanharam mais tempo (vital mais do que cronologicamente), se encrustaram na minha existência. São agora sangue do meu sangue. Mesmo quando não me lembro exatamente deles (quem se recorda dos glóbulos brancos que tem?). O gosto é muito pessoal, embora a filosofia nos ensine o contrário. E não gostamos da mesma maneira ao longo do tempo. Isto relativiza a minha lista, que talvez seja mais impressionista do que expressionista, isto é, pegando com muita liberdade nestes termos, dou a conhecer o que, de uma forma ou de outra, fez vibrar uma corda qualquer no meu corpo-mente, não sabendo muito bem como comunicar, expressar, isso.

A comunicação é tanto mais difícil quanto a leitura é uma atividade minoritária, experimental. Só se pode ler, pelo menos de uma determinada maneira (intensivamente), quando se é incorrigivelmente livre (um exílio sem suplício). E sabe-se que a liberdade pode ser injusta, porque é feita com centelhas divinas, enquanto a justiça se compõe, mesmo quando a atribuímos aos deuses, de interesses humanos, demasiado humanos.

Traduzo o início: «Sempre quis escrever como se devesse estar ausente no aparecimento do texto. Escrever como se devesse morrer, não houvesse mais juízes. Ainda que seja, talvez, uma ilusão acreditar que a verdade só possa surgir em função da morte.

O meu primeiro gesto ao acordar era agarrar o seu sexo tumeficado durante o sono e ficar assim, como que pendurada num ramo. Pensava: “enquanto segurar isto não estou perdida no mundo”. Se hoje refletir sobre o que esta frase significava, parece-me que queria dizer que não havia nada mais para desejar além disso, ter a mão agarrada ao sexo desse homem.

Está agora na cama com outra mulher. Talvez ela faça o mesmo gesto, estender a mão e segurar o sexo. Durante meses, vi essa mão e tinha a impressão de que era a minha.»

Um estilo irrepreensível (não abunda na filosofia, mais pela dificuldade de moldar conceitos e filosofemas a uma fluidez e beleza literária do que pela simples falta de mão dos filósofos) e uma audácia assinalável. Convoca e expõe Descartes, Kant, Schopenhauer, Hegel e Marx, Darwin, tanto quanto os mais contemporâneos William James, John Dewey, Bergson, Ganguilhem e Foucault ou ainda Husserl e Heidegger para com eles e sobretudo Nietzsche tecer um novo fio condutor da filosofia a partir da vida e do corpo. Uma filosofia crítica, questionadora das diferentes ciências da vida. No centro da argumentação está que Nietzsche é um precursor, um meteoro fulgurante em diálogo consigo e contra a velha metafísica; o grande renovador de uma antiquíssima e quase revogada ciência fisiológica que dominou a Grécia pré-clássica.

Recensão aqui.

Um conjunto de artigos de jornal. Não é um grande Sloterdijk, mas aí está ele a apanhar, catalogar e desmontar (desconstruir) o fluxo da vida (bio-sócio-mental), as consonâncias e dissonâncias dos ecossistemas humanos, com raízes profundas no passado e uma inclinação enérgica para desenhar futuros que prolonguem criticamente o presente. Um criticismo que tanto conserva como altera. Sloterdijk considera-se, tenha-se presente este rótulo, um «conservador vanguardista» ou um «nietzschiano de esquerda».

A saída da tradução portuguesa está agendada para meados de 2023 (Edições 70). O livro de 1947 foi escrito sobre os escombros e a partir da imensa esperança pós 2.ª Guerra Mundial. Mas também suplementa O Ser e o Nada (talvez o capítulo sobre a moral que Jean-Paul Sartre diz faltar à sua fenomenologia existencialista). No essencial, é porque nada está decidido de antemão, porque a possibilidade de fracasso é real, frequente e a liberdade individual intransmissível que considera o existencialismo como «a única filosofia na qual uma moral tem lugar». Nada, pois, de belas-almas, as que Hegel encena na Fenomenologia do Espírito, sem verdadeiramente as censurar, para narrar a preservação da pureza do coração contra a impureza da ação, ou a coincidência entre verdade e vontade, supremo grau de abstração. É também por isto que o livro abre citando Michel de Montaigne, uma forma de criticar as filosofias que dissimulam a ambiguidade. A sua moral revela da «arte de viver» (termo de Os Mandarins, 1954), homens e mulheres comprometidos, reconhecendo e agindo na contingência dos projetos e valores. Esta moral da ambiguidade mantém uma real força operatória.

Recensão aqui.

Um nova e esplêndida tradução de António Sousa Ribeiro, com uma introdução, suada, da minha lavra, pode ser lida aqui.

«Mais um», dizem alguns sem entusiasmo. «Jubilatório», dizem outros, talvez mais pessimistas e escondidos nas entranhas da Terra a imaginar os sismos que vão sacudir a pobre humanidade. Um pessimismo da força, como desejava, e tinha visto nos gregos antigos, Friedrich Nietzsche? Na voz de Lobo Antunes, cujo eco permanecerá vivo por longos anos: «procura o braço, a veiazinha, a veiazinha, até que um pingo vermelho, mais escuro do que eu imaginava, floriu devagar na ponta da seringa sob um nariz atento, tantos narizes nos hospitais, senhores, tantos indicadores macios avaliando-me a pele, tantos olhos sem nada dentro, ocos». Houve quem o catalogasse como poesia camuflada, um infinito monólogo que trata a linguagem à semelhança de um código rúnico, uma caixa de ferramentas para abrir a porta de um Além. Talvez. Mas continua a ser também um modo, originalmente assustador, de cartografar este país cheio de humanos melancólicos e fatais, de o cartografar por dentro, os espaços interiores que nos consomem e empurram para um Dom Sebastião burlesco. 

Häggund, filósofo e outras coisas mais (ninguém é só filósofo), escreve sobre temas importantes e complexos de modo que todos, ou quase, os possam compreender. Faz desaparecer, é verdade, as perspetivas mais enviesadas, «talvez as que nos atiram para fora da caixa, as que alimentam os centauros», dizem alguns, com certa razão. Mas não simplifica, como muitos outros, até ficar tudo anódino. Neste livro, aponta para uma nova «religião civil», a partir e contra Rousseau (o conceito é dele), porque lhe mistura Ludwig Feuerbach, anticristão mas não anti-religioso. Para o autor, temos de concentrar-nos no finito, é nele, e só nele, que devemos encontrar o sentido para a nossa existência. Um sentido para o nosso tempo biológico e para o rasto do nosso legado. No primeiro caso, a realização e a liberdade pessoais e as relações interpessoais formam a base para uma existência conseguida. No segundo caso, nada melhor, e mais urgente, do que preservarmos a Terra, legarmos uma Terra habitável às futuras gerações de seres vivos. Para isso é preciso travar um combate secular (secular faith), motivados pela real possibilidade de perda de sentido na nossa existência, o desaparecimento dos que amamos, a degradação irreparável da Terra. Por exemplo: «This is not to say that we care about the Earth only because it can be lost. If we care about the Earth it is rather because of the positive qualities we ascribe to it. However, an intrinsic part of why we care about the positive qualities of the Earth is that we believe they can be lost, either for us or in themselves.»

Há já uma tradução portuguesa na Temas & Debates.

Um livro que, nas palavras do autor, homenageia Novalis, os seus fragmentos publicados na revista Athenaeum (irmãos Schlegel). Grande parte dele é constituído por órgãos recuperados de outros corpos: Teoria do Fantasma (Mariposa Azul, 2011) e Imagens Roubadas (Enfermaria 6, 2017). Mas também recicla (essa forma de reformatação que recusa a violência das ontologias duras) textos publicados ou simplesmente anotados. Parece, pois, compor-se um novo ecossistema textual a partir de fragmentos de sentido que orbitavam noutras constelações. E sabe-se como essas injunções são por vezes paradoxais. Paradoxo, talvez, mas enquanto para-doxo, isto é, o que está na margem da doxa, corre paralelo à opinião plana. É que cada fragmento de Fernando Guerreiro (podem ser lidos como blocos festivamente autónomos, mas não forcem o solipsismo, eles dialogam, fazem circular entre si o logos, mesmo quando estão de mau humor) tem uma incontrolável força heurística interior. Ora porque nos dá a repensar o corpo, as imagens ou a linguagem; ora porque refaz a economia da vigília e do sonho; ora porque põe o cinema a investigar a realidade, alargando os seus modos de funcionar; ora porque a literatura, a poesia são analisadas como o que é demasiado grande para ser perfeito. Além disso, o modo como Fernando Guerreiro escreve é de uma inquietante e bela estranheza; por um momento todos somos levados a dizer: «era assim que gostava de escrever». Nas suas palavras: «As três experiências decisivas da minha “entrada” (imersão) no fantástico: 1) aos 4/5 anos, a explosão da pedreira em Vialonga, com as suas imagens (não sei se vistas ou imaginadas) de mutilação (cabeça, perna ou braço esmagados de um dos trabalhadores); 2) em 1978, o arrêt sobre a imagem da possível queda das rochas de Odeceixe (deu-se?, não se deu?) que ainda hoje (sobre)determina o meu sentido de “realidade”; 3) já nos anos 80, a visita do fantasma de A., em sua casa, um ou dois dias depois de ter morrido, quando o corpo ainda se encontrava numa divisória perto daquela em que me encontrava. Tudo o que foi experiência é agora cenário do Fantasma.»

Recensão aqui.

Um livro de poesia das não (edições) que acompanha os desejos de Ricardo Marques entre 2012 e 2021. Não se deve usar o bisturi analítico na poesia, ela é porventura a arte na qual o leitor mais se emancipa do crítico (e do autor). Se me pedissem para falar de Desidério, diria: Ricardo Marques vê, é isso que escreve, o desejo como a mais bela das pulsões. Não o desejo desbragado ou heroico (pícaro?), mas o das pequenas coisas, das moléculas, talvez dos átomos da vida. Instáveis, porém: «a contradição ou a impureza é uma condição essencial ao desenvolvimento». Um desejo de celebrar: «Mas vá, eu não te / quero impressionar, nem /consumir-te, só celebrar-te». Um desejo de habitar a vida no esplendor das tensões dionisíacas calmas e na homenagem aos gestos de criação com que o humano rasga a vulgaridade a que se destinou. Mas recuperar também um apolíneo que se deixou de adivinhas e arrumou o arco e as flechas: «Ficar para sempre como / o amante à espera no / lugar combinado / entre palmeiras pedras / e hera e nunca secar // Viçoso vício: ficar aqui / para sempre.» O seu entusiasmo, apesar de elevar, é sempre regulado, em tempos histriónicos é uma virtude impagável.

Uma crise jubilatória de meia-idade? «isto do ténis / foi uma asneira / não é para nós / belo / mas não para nós / demasiado tarde». Obsolescência dos sonhos. Seja. Mas este livro de José Pedro Moreira, editora Flan de Tal, jogando com o simbolismo de um metal precioso que fica entre o pechisbeque e o adorado ouro, é uma oração à boa resignação, uma autoconservação festiva, doseando primorosamente a melancolia (Cioran?) com a força tranquila estoica. Será também um pedido de contas? Repete-se a ideia de que tudo podia ter sido diferente. Talvez. Mas leio-o mais como um manifesto, sem se declarar, contra o «mais alto / sempre mais alto / até sermos / incapazes de respirar». Respiração interior, do e para o interior. Nessa oxigenação, fonte da vida, não o esqueçamos, sente-se um amor às imperfeições (e isto só a arte o permite). Uma alteração subtil ao costume do José em recensear os hábitos mais corriqueiros do humano, dando-lhes uma sagração poética (apesar do trabalho cada vez mais frequente sobre a memória, memórias, na sua poesia). Testamento vital acerca do que podemos, do que devemos fazer, um balanço e uma escolha das forças que nos permitem ser um Ícaro sem asas. Não sermos devorados pelo sucesso.

Que belo livro de Tatiana Faia (não (edições)), ressuscitando Adriano, e Antínoo, um imperador janus, assim o fez a tradição. A poeta continua enamorada pelos sistemas de vida que fazem com que algo exista, em vez do nada. Parece óbvio, não? Mas perceber a existência das coisas exige uma curiosidade obstinada: uma rua, uma estátua, um livro, uma ideia, uma pessoa… só existem se tivermos essa curiosidade irrefreável de ver como e quanto se emancipam da lista fixa de fenómenos na qual foram presas. Os códigos hermenêuticos, sempre contaminados pelo delírio, estão mais na arte do que na ciência, uma arte para lá do mundo dos artistas (poseurs), uma arte metafísica do aquém. Intuitiva e instintiva, no processo que leva da aposta sobre o que está por trás do véu da normalidade (intuição) até à decisão demiúrgica do batismo, de inserir o achado (que participou na sua própria descoberta, os aventureiros do sentido já não são velhos conquistadores) no jogo vivo e atual das significações (instinto, mistura de fisiologia e de cultura). Portanto, Tatiana Faia interessa-se por fazer muito mais do que uma filologia de Adriano, isso fica sobretudo a cargo do mini-ensaio final do livro. Antes, o grande imperador é um aguilhão para manter excitado o Hermes que habita em nós, sobretudo na Tatiana. É assim que vai à descoberta do mundo, como nessa belíssima genealogia da moeda com a efígie de Antínoo. Ou na «rua adriano». Ou nos «gatos da rua adriano». Além destas arqueologias, mais horizontais do que verticais, Tatiana Faia olha para dentro de si, ou melhor, abre pequenas frechas por onde saem fragmentos, incertos, da sua maneira de ser. Uma dialética pré-hegeliana entre o exterior e o interior. E talvez aqui se encontre o sobrepoder deste livro. Por exemplo: Levantas-te com dificuldade / e seguro-te de pé / cambaleamos juntos / em direcção à varanda / com o teu peso contra o meu / reparo que apenas um de nós / sabe mesmo dançar / e o outro é só bom a fingir // não quero nenhum começo / que não te inclua a ti». Ou: «os meus acidentes / são demasiado / como as minhas vinganças / e como o teu amor».

Votos 2023

Jean-François Millet, As Respigadoras, 1857

Aproxima-se a época de lançamentos de lemas e anseios (a parvoíce é o combustível mais barato e mais usado), 2023 está aí ao virar da esquina e devemos entrar nele com temeridade e amnésia. É humano e é irritante. Sobretudo porque o humano não é um animal recomendável e porque este gesto nasce de uma confiança ingénua e acaba na indiferença (bem pior do que o fracasso, que se for assumido é um bom impulso para a ação).

Eu, que ando sempre ao rebusco de palavras (lembro-me desse hábito inscrito na pobreza transmontana, rebuscavam-se batatas, castanhas, nozes… depois das primeiras e maiores colheitas dos donos das terras, os pobres dos pobres apanhavam os restos em jeito de esmola digna), de centelhas de sentido esquecidas pelas máquinas incansáveis e predadoras de storylines, algum que me possa saciar pontualmente (apagamos as grandes composições metafísicas que conduziam, feliz e contente, o indivíduo ao altar, lugar dos sacrifícios sagrados).

Com a sorte do costume, encontrei dois montinhos de palavras que não irei lançar para 2023 mas porei no bolso do casaco orgânico puído para de vez em quando ler e experimentar uma órbita que não me afaste da minha Estrela do Norte.   

A primeira, sei exatamente onde a rebusquei, Simone de Beauvoir, Pour une morale de l’ambiguïté (Para uma moral da ambiguidade; tradução portuguesa a sair no próximo ano nas Edições 70), um livro de 1947 perfeitamente atual: «Não se devem confundir as noções de ambiguidade e absurdo. Declarar absurda a existência é negar que ela possa dar um sentido a si mesma; dizer que é ambígua é postular que o sentido nunca é fixo, que deve ser constantemente conquistado. O absurdo rejeita toda a moralidade; mas também a racionalização completa do real não deixaria espaço para a moralidade; é porque a condição do homem é ambígua que através do fracasso e do escândalo ele procura salvar a sua existência

Da segunda, sei apenas o nome do proprietário, não da terra na qual a apanhei: «A vida não é autoconservação, mas autoafirmação.» (Byung-Chul Han) Uma afirmação de si feita por um pessimista que ainda não desistiu de fazer o bem.

Discurso da Nobel da Literatura

Discurso proferido na receção do prémio Nobel por Annie Ernaux, 10 de dezembro de 2022.

Tradução de Victor Gonçalves a partir do texto publicado no jornal Le Monde a 7 de dezembro de 2022, aqui.

«Por onde começar? Coloquei esta pergunta dezenas de vezes à página em branco. Como se tivesse de encontrar a frase, a única, que me permitirá entrar na escrita do livro e resolver, de uma só vez, todas as dúvidas. Uma espécie de chave. Hoje, para enfrentar uma situação que, passada a estupefação do acontecimento — “Isto está mesmo a acontecer-me?” —, a minha imaginação me apresenta com um pavor crescente, é a mesma necessidade que me invade. Encontrar a frase que me dará a liberdade e a firmeza para falar sem tremer, neste lugar para o qual me convidam esta noite.

Esta frase, não preciso de procurá-la muito longe. Ela surge. Em toda a sua nitidez, a sua violência. Lapidar. Irrefutável. Foi escrita há sessenta anos no meu diário. “Escreverei para vingar a minha raça”. Ela faz eco do grito de Rimbaud: “Sou de raça inferior desde toda a eternidade”. Tinha 22 anos. Era aluna de literatura numa faculdade de província, entre raparigas e rapazes, muitos deles da burguesia local. Pensava, com orgulho e ingenuidade, que escrever livros, tornar-me escritora, no fim de uma linhagem de camponeses sem-terra, operários e pequenos comerciantes, pessoas desprezadas pelos seus modos, o seu sotaque, a sua falta de cultura, bastaria para consertar a injustiça social de nascimento. Que uma vitória individual apagaria séculos de dominação e pobreza, numa ilusão que a Escola já havia fomentado em mim com o meu sucesso académico. Como poderia a minha realização pessoal redimir o que quer que fosse das humilhações e ofensas sofridas? Eu não me colocava essa pergunta. Tinha algumas desculpas.

Desde que aprendi a ler, os livros foram os meus companheiros, a leitura a minha ocupação natural fora da escola. Esse gosto era mantido por uma mãe, ela mesma grande leitora de romances, entre duas clientes da sua loja, preferindo que eu lesse em vez de costurar e tricotar. O preço elevado dos livros, a desconfiança a que eram submetidos na minha escola religiosa tornavam-nos ainda mais desejáveis ​​para mim. Dom Quixote, As Viagens de Gulliver, Jane Eyre, contos de Grimm e Andersen, David Copperfield, E Tudo o Vento Levou, mais tarde Os Miseráveis, As Vinhas da Ira, A Náusea, O Estrangeiro: era o acaso, mais do que prescrições escolares, que determinava as minhas leituras.

Afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita

A escolha de estudar letras foi a de permanecer na literatura, que se tornou um valor superior a todos os outros, até um modo de vida, que projetava num romance de Flaubert ou de Virginia Woolf e vivê-los literalmente. Uma espécie de continente que inconscientemente opunha ao meu meio social. E só concebia a escrita como possibilidade de transfigurar a realidade.

Não foi a recusa de um primeiro romance por duas ou três editoras — romance cujo único mérito era a procura de uma nova forma — que diminuiu o meu desejo e o meu orgulho. Foram situações da vida, na qual ser mulher pesava muito na diferença de ser homem numa sociedade cujos papéis eram definidos segundo o sexo, a contraceção proibida e a interrupção da gravidez um crime. Casada, com dois filhos, uma profissão de docente e o fardo da gestão familiar, afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita e da promessa de vingar a minha raça. Não podia ler “a parábola da lei” no Processo de Kafka, sem ver nela a figuração do meu destino: morrer sem ter passado pela porta que foi feita só para mim, o livro que só eu podia escrever.

Mas isso não tinha em conta o acaso privado e histórico. A morte de um pai que perece três dias depois de eu chegar a casa de férias, um trabalho como professora em turmas cujos alunos vinham de origens populares semelhantes à minha, movimentos de protesto mundiais: tantos elementos que me trouxeram de volta por caminhos imprevistos e sensíveis ao mundo das minhas origens, à minha “raça”, e que dava ao meu desejo de escrever um carácter de urgência secreta e absoluta. Desta vez, não se tratava de me entregar a este ilusório “escrever sobre nada” dos meus 20 anos, mas de mergulhar no indizível de uma memória reprimida e trazer à tona o modo de existir dos meus. Escrever para compreender os motivos, dentro e fora de mim, que me afastaram das minhas origens.

Precisava de romper com o “escrever bem”

Nenhuma opção de escrita é evidente. Mas aqueles que, imigrantes, já não falam a língua dos pais, e aqueles que, trânsfugas de classe social, já não têm realmente a mesma língua, pensam-se e exprimem-se noutras palavras, todos se deparam com obstáculos suplementares. Um dilema. Sentem, de facto, a dificuldade, até a impossibilidade de escrever na língua adquirida, predominante, que aprenderam a dominar e que admiram nas obras literárias. Tudo o que se relaciona com o seu mundo de origem é um primeiro mundo feito de sensações, de palavras que descrevem o quotidiano, o trabalho, o lugar social. Por um lado, há a língua com que aprenderam a nomear as coisas, com a sua brutalidade, com os seus silêncios, aquela, por exemplo, do encontro face a face entre uma mãe e um filho, no belíssimo texto de Albert Camus Entre o sim e o não [capítulo da primeira novela do autor, L’Envers et l’Endroit, 1937]. Do outro, os modelos de obras admiradas, interiorizadas, aquelas que abriram primeiro o universo e às quais sentem dever a sua elevação, que muitas vezes consideram mesmo a sua verdadeira pátria. Nos meus estavam Flaubert, Proust, Virginia Woolf: [mas] quando chegou a hora de retomar a escrita, não me ajudaram. Tive de romper com o “bem escrito”, a bela frase, aquela mesma que ensinava aos meus alunos, para erradicar, expor e compreender a angústia que me atravessava. Veio-me espontaneamente o alarido de uma língua carregada de raiva e irrisão, até grosseria, uma língua de excesso, insurgente, muitas vezes usada pelos humilhados e ofendidos, como a única forma de responder à lembrança dos desprezos, da vergonha e da vergonha da vergonha.

Muito rapidamente, pareceu-me evidente — a ponto de não conseguir vislumbrar outro ponto de partida — ancorar a história da minha angústia social na situação que tive enquanto estudante, aquela, revoltante, à qual o Estado francês sempre condenou as mulheres, o recurso ao aborto clandestino nas mãos de uma fazedora de anjos. E queria descrever tudo o que tinha acontecido ao meu corpo de menina, a descoberta do prazer, a menstruação. Assim, nesse primeiro livro, publicado em 1974, sem que eu o soubesse então, foi definido o campo em que colocaria o meu trabalho de escrita, um campo simultaneamente social e feminista. Vingar a minha raça e vingar o meu sexo seria doravante uma só coisa.

Como não se questionar sobre a vida sem questionar também a escrita? Sem perguntar se ela reforça ou perturba as representações aceites e interiorizadas sobre os seres e as coisas? Será que a escrita insurgente, pela sua violência e irrisão, não refletia uma atitude de dominada? Quando o leitor era um privilegiado cultural, mantinha a posição de superioridade e condescendência relativamente à personagem do livro e da vida real. Foi, portanto, originalmente, para contrariar esse olhar que, lançado sobre o meu pai cuja vida queria contar, teria sido insuportável e, sentia-o, uma traição, que adotei, no meu quarto livro, uma escrita neutra, objetiva, “plana”, no sentido de que não continha metáforas ou sinais de emoção. A violência já não era exibida, vinha dos próprios factos e não da escrita. Encontrar as palavras que contivessem tanto a realidade quanto a sensação que a realidade proporciona tornou-se, até hoje, a minha preocupação constante na escrita, seja qual for o assunto.

O desejo de me servir do “eu”

Para mim, era necessário continuar a dizer “eu”. A primeira pessoa — aquela pela qual, na maioria das línguas, existimos, desde o momento em que sabemos falar até à morte — é muitas vezes considerada, na sua utilização literária, como narcisista quando se refere ao autor, que não se trata de um “eu” apresentado como fictício. É bom lembrar que o “eu”, até então privilégio dos nobres que contavam grandes feitos de armas nas suas Memórias, foi em França uma conquista democrática do século xviii, a afirmação da igualdade dos indivíduos e do direito de ser sujeito da sua história, como o reivindica Jean-Jacques Rousseau neste primeiro preâmbulo das Confissões: “E que ninguém objete que, sendo apenas um homem do povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos leitores. (…) Nalguma obscuridade que possa ter vivido, se pensei mais e melhor do que os reis, a história da minha alma é mais interessante do que a deles.”

Não foi esse orgulho plebeu que me motivou (embora…), mas a vontade de usar o “eu” — forma simultaneamente masculina e feminina — como uma ferramenta exploratória que capta as sensações, aquelas que a memória recalcou, aquelas que o mundo à nossa volta não cessa de nos dar, em tudo e sempre. Este pré-requisito da sensação tornou-se para mim ao mesmo tempo o guia e a garantia de autenticidade da minha pesquisa. Mas com que propósito? Para mim, não se trata de contar a história da minha vida nem de me libertar dos seus segredos, mas de decifrar uma situação vivida, um acontecimento, uma relação amorosa, e assim revelar algo a que só a escrita pode dar existência e transmitir, talvez, a outras consciências, outras memórias. Quem consegue dizer que amor, dor e luto, vergonha não são universais? Victor Hugo escreveu: “Nenhum de nós tem a honra de ter uma vida que lhe pertença.” Mas todas as coisas sendo vividas inexoravelmente de modo individual — “acontece comigo” —, só podem ser lidas da mesma forma se o “eu” do livro se tornar, de alguma forma, transparente e o do leitor ou leitora vierem ocupá-lo. Que esse “eu” seja, em suma, transpessoal, que o singular alcance o universal.

Assim concebi o meu compromisso com a escrita, que não consiste em escrever “para” uma categoria de leitores, mas “a partir” da minha experiência de mulher e imigrante do interior, da minha memória, doravante cada vez mais longa, dos anos atravessados, desde o presente, incessantemente provisores de imagens e palavras de outros. Este compromisso como penhor de mim mesma na escrita é sustentado pela crença, que se tornou certeza, de que um livro pode contribuir para mudar a vida pessoal, para quebrar a solidão das coisas sofridas e recalcadas, para se pensar diferentemente. Quando o indizível vem à tona, é político.

A forma mais violenta e mais arcaica

Vemos isso hoje com a revolta dessas mulheres que encontraram as palavras para inquietar o poder masculino e se ergueram, como no Irão, contra a sua forma mais violenta e arcaica. Escrevendo num país democrático, continuo, porém, a questionar-me sobre o lugar ocupado pelas mulheres, inclusive no campo literário. A sua legitimidade para produzir obras ainda não está adquirida. Existem em França e em todo o mundo intelectuais masculinos para quem simplesmente não há livros escritos por mulheres, nunca os citam. O reconhecimento do meu trabalho pela Academia Sueca é um sinal de justiça e esperança para todas as escritoras.

Ao trazer à tona o indizível social, essa interiorização das relações de dominação de classe e/ou racial, também de sexo, que é sentida apenas por quem é seu objeto, há a possibilidade de uma emancipação individual, mas também coletiva. Decifrar o mundo real despojando-o das visões e dos valores que a língua, qualquer língua, carrega, é perturbar a ordem estabelecida, perturbar as hierarquizações.

Mas não confundo essa ação política da escrita literária, condicionada na sua receção pelo leitor ou leitora, com as posições que me sinto compelida a assumir em relação aos acontecimentos, conflitos e ideias. Cresci na geração do pós-guerra, onde era natural que escritores e intelectuais se posicionassem relativamente à política francesa e se envolvessem nas lutas sociais. Ninguém pode dizer hoje que as coisas teriam sido diferentes sem as suas palavras e os seus compromissos. No mundo atual, no qual a multiplicidade das fontes de informação, a rapidez da substituição das imagens por outras acostumam a uma forma de indiferença, concentrar-se na sua arte é uma tentação. Mas, ao mesmo tempo, assiste-se na Europa — ainda mascarada pela violência de uma guerra imperialista travada pelo ditador que governa a Rússia — a ascensão de uma ideologia de ensimesmamento e fechamento, que se alastra e ganha cada vez mais espaço nos países até agora democráticos. Fundada na exclusão dos estrangeiros e imigrantes, no abandono dos economicamente débeis, na vigilância dos corpos das mulheres, impõe-me, a mim, como a todos aqueles para quem o valor do ser humano é o mesmo, sempre e em todo o lado, um dever de vigilância. Quanto ao peso do resgate do planeta, em grande parte destruído pelo apetite do poder económico, não pode pesar, como é de se temer, sobre os que já estão na miséria. O silêncio, em certos momentos da história, não é apropriado.

Uma vitória coletiva

Ao conceder-me a mais alta distinção literária que existe, é um trabalho de escrita e uma pesquisa pessoal realizada na solidão e na dúvida que aparecem na grande luz. Ela não me deslumbra. Não considero que a atribuição do prémio Nobel a mim seja uma vitória individual. Não é orgulho nem modéstia pensar que se trata, de alguma forma, de uma vitória coletiva. Partilho o meu orgulho com aqueles e aquelas que, de uma ou de outra forma, querem mais liberdade, igualdade e dignidade para todos os seres humanos, independentemente do seu sexo e género, da sua pele e da sua cultura. Os que pensam nas futuras gerações, em salvaguardar uma Terra que a ânsia de lucro de um pequeno número continua a tornar cada vez menos habitável para o conjunto das populações.

Se olhar para trás, para a promessa feita com 20 anos de vingar a minha raça, não saberei dizer se a cumpri. Foi dela, dos meus antepassados, homens e mulheres duros, com tarefas que os fizeram morrer cedo, que recebi a força e a raiva suficientes para ter o desejo e a ambição de lhe abrir espaço na literatura, neste conjunto de múltiplas vozes que, desde muito cedo, me acompanhou, dando-me acesso a outros mundos e outros pensamentos, inclusive ao de me rebelar contra ela e querer modificá-la. Registar a minha voz de mulher e de trânsfuga social naquilo que se apresenta sempre como um lugar de emancipação, a literatura.»