Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Livros do ano, 2022 (Tatiana Faia)

Esta lista é uma espécie de balanço, uma enumeração imperfeita de alguns dos livros que mais gostei de ler em 2022. É um pouco hedonista, porque, parafraseando Susan Sontag, ler, tal como escrever, é uma forma de felicidade, e este foi um ano que não foi particularmente dado a hedonismos. Em 2020, durante o primeiro confinamento, comecei um clube de leitura com outra pessoa só. A Clara estava em São Paulo e eu em Oxford, todos os dias nos encontrávamos diante de uma câmara e líamos uma para a outra, ela um romance e eu outro. Este clube de leitura, que existe ainda hoje, cada vez mais me faz pensar no acto de ler como uma janela privilegiada, uma espécie do suave mari magno de Lucrécio, cujas vistas correm tangencialmente ao mundo que continua a girar loucamente. Estou a pensar nisto enquanto me sento para escrever esta lista paralelamente a uma janela que tem vista para um jardim que já não está, mas esteve, coberto de neve. A minha lista é também parcial em duplo sentido, não inclui necessariamente tudo o que amei ler em 2022 e inclui os livros feitos por alguns amigos.

 

On Grief and Reason de Joseph Brodsky (Penguin, 1997) – é uma colectânea de ensaios que inclui algumas das reflexões mais lúcidas que li este ano, sobre o exílio, sobre encontrar poetas e ler poesia, sobre espiões russos em Londres, sobre traições, sobre fazer amor num quarto cheio de espelhos em Roma, sobre regressar à Europa para um funeral (o de Stephen Spender), sobre Kavafis, Horácio e Marco Aurélio. Tenho um amigo inglês que gosta muito de citar uma frase de Brodsky: “Poets are never victims.” Quando se lembra desta frase, o meu amigo acrescenta sempre: “And he knew what he was talking about. He spent time in a Soviet prison.” É exactamente esse modo de falar sobre as coisas que transparece nestes ensaios.

 

Caro Michele e Famiglia e Borghesia de Natalia Ginzburg – Três novelas da década de 70 que falam de laços familiares (sobretudo dos laços entre mães e filhos), da sua inexorável mudança na Itália do pós-guerra. Caro Michele é um romance epistolar originalmente escrito em 1973. Uma mãe vai escrevendo a um filho que primeiramente desaparece da sua vida e depois de Itália, por causa do seu envolvimento com as Brigate Rosse. Assoma nesta novela um pouco a Inglaterra desolada de que Ginzburg havia escrito em As Pequenas Virtudes, e o desolado destino dos exilados, mas antes de tudo isto uma mãe que tem muita dificuldade em entender um filho e que tenta fazê-lo com um sentido de humor duro, que o expõe a ele e a ela num delicado equilíbrio que não é um esforço tanto de o entender quanto de sobreviver através de certas coisas. Famiglia, por outro lado, é uma das novelas mais belas que li este ano, sobre um casal de amigos que estiveram outrora envolvidos e que se encontram numa noite de muito calor para ir ao cinema e nunca mais se separam continuando a entrelaçar as suas vidas de uma forma que envolve as suas novas famílias, outros amigos, outras relações. Talvez não seja tanto uma novela como uma exploração do amor e da amizade, vista a partir do lado absurdo e irrecuperável da vida, e incluindo-o. A versão italiana do audiolivro de Caro Michele é narrada por Nanni Moretti. Talvez poucas vezes um audiolivro tenha tido um narrador tão adequado.

 

Postwar Polish Poetry (ed. Czeslaw Milosz) – uma antologia inglesa de poesia polaca, talvez A antologia de poesia polaca.

 

Mrs Dalloway, Virginia Wolf – reli Mrs Dalloway em Março, pouco depois do início do evento de 2022 que não me apetece nomear. Por um lado, é o romance que me lembra que Bloomsbury, que de resto para mim são mais autenticamente aquelas dezenas de metros que correm entre o British Museum e a livraria da London Review of Books do que outra coisa qualquer, é alguma espécie de centro do mundo e da contemporaneidade, mais do que simplesmente do modernismo, e que muito do que é Bloomsbury, pelo menos para mim, é a força das observações de Virginia Woolf neste romance. Pareceu-me desta vez, não sei porquê, que nenhuma personagem é tão tristemente lúcida como Septimus.

 

A Poesia é uma Mercadoria Inconsumível: Poemas e Recensões de Pier Paolo Pasolini (selecção e tradução de João Coles, Sr. Teste, 2022): é uma antologia editada e traduzida por um amigo e um dos editores deste blog, João Coles, onde em certo sentido se podem ler os poemas e as recensões que nos ajudam a entender Pier Paolo Pasolini como o artista de uma desesperada vitalidade. Um trabalho de edição rigoroso, bem cuidado e bem pensado, num pequeno livro que se transforma assim numa das melhores introduções que conheço à obra de Pasolini em qualquer língua.

 

La tia Julia y el Escribidor de Mario Vargas Llosa – penso que só li dois romances monumentais este ano, mas ambos pertencem a esta lista de livros do ano, o primeiro é La Tia Julia y el Escribidor, um romance divertidíssimo, sobre um adolescente aspirante a escritor, estudante de direito, com um precário emprego na radio e mais precisamente na produção de radionovelas, e do seu primeiro amor, também ele digno de radionovela, a tia Julia, divorciada e quatorze anos mais velha e também sobre o lendário Pedro Camacho, lendário autor boliviano de radionovelas. É fascinante ver a inteligência narrativa de Vargas Llosa, como este romance é e não é uma colecção de novelas dispersas entre si e ao mesmo tempo o retrato do que em teoria devia ser uma subcultura, a do melodrama nem exactamente pop das radionovelas no Perú, mas que é um fresco de todo um tempo, pontuado pela duração de uma paixão adolescente.

 

A Tale of Love and Darkness de Amos Oz – este romance caiu no meu mês de Agosto entre um par de releituras porque tenho um amigo com quem falo, infelizmente, de longe em longe que me disse com grande fervor (aquele fervor que normalmente me faz não querer pegar num livro) que era um dos melhores romances que tinha lido na vida. A primeira parte destas conversas costuma ser sempre a mesma, “olha lá, Tadeu, o que é que andas a ler?” O assunto de A Tale of Love and Darkness é exactamente aquilo que o título inglês parece prometer. No fresco de personagens inesquecíveis que Oz recria a figura maior talvez não seja tanto o pai quanto a mãe de Amos Oz, a sua inteligência misteriosa, a escuridão que o seu suicídio traz, a forma como a muitos anos de distância Oz tenta reconstruir o mundo em que isso aconteceu, não só o de uma criança a crescer no jovem estado de Israel mas o de relações familiares e entre pequenas comunidades que uma criança sensível talvez não pudesse entender completamente, mas sentir sim, e tão profundamente que isso se torna um bilhete de regresso a um mundo entretanto mais ou menos desaparecido.

 

Uma antologia de poesia italiana: 13 autoras: de novo uma antologia feita pelo João Coles e publicada pelo Sr. Teste. Pode ler-se ao lado de outra breve antologia de poesia italiana de que gosto muito, The Faber Book of 20th Century Italian Poems (Faber, 2004, editada por Jamie McKendrick), e em certo sentido elas completam-se. O João selecciona aqui, cuidadosamente, uma espécie de cânone alternativoda poesia italiana contemporânea. Não há um poema mau. Prolonga um pouco o trabalho que tinha sido iniciado em Um Pouco do Meu Sangue, outra antologia de poesia italiana feita pelo João, em 2020, para a Contracapa.

 

Feux de Marguerite Yourcenar: é um livro que tem qualquer coisa de ovidiano (de o Ovídio de Heróides), são uma série de histórias de amores dilacerados, angustiantes e angustiados. Sobre o amor enquanto vital à sobrevivência e enquanto evento a que é necessário sobreviver.

 

Sonhador definitivo e perpétua insónia: uma antologia de poemas surrealistas escritos em língua francesa, Regina Guimarães (selecção e tradução), Saguenail (prefácio). Há uma concretude no surrealismo que de vez em quando me faz falta. Esta belíssima antologia lembrou-me porquê.

 

Either/or de Elif Batuman – algumas das horas mais divertidas que passei a ler um livro este ano foram passadas com este bildungsroman de Elif Batuman. O subtítulo podia ser Como Kierkegaard pode assombrar a sua vida. Mas para lá do lado picaresco que é sustentado pelo sentido de humor de Selin enquanto ela avança de uma paixão mal correspondida, e consequente obsessão de que ela não se consegue libertar, para outras relações igualmente tóxicas, que culminam no entendimento do acto de perder a virgindade e da exploração da sexualidade, algures entre Nova Iorque e a Turquia, como algo que é transacional de formas complicadas, desenha-se um entendimento mais profundo do que significa estar vivo, o que talvez seja, não em menor parte, uma mistura de coragem, sensibilidade e sentido de auto-preservação.

 

Time of the Magicians de Wolfgang Ellenberger e Places of mind: a biography of Edward Said de Timothy Brennan. O segundo destes livros talvez não seja tanto uma biografia como uma hagiografia, e talvez não seja tanto uma hagiografia por causa da relação próxima que Timothy Brennan tinha com Edward Said, quanto por causa da vitalidade e da inquietude de Said enquanto intelectual público, enquanto exilado profundamente privilegiado cujo trabalho (e figura) espelha e se divide entre várias culturas na intersecção entre o Oriente e o Ocidente. Sobre o primeiro livro escreveu o Victor Gonçalves aqui. Time of the Magicians coloca em paralelo as vidas e o pensamento de Wittgenstein, Benjamin, Cassirer e Heidegger, para descrever como uma década do século XX mudou a história da filosofia. Algures entre a leitura de um livro e outro dá para mapear a inquietude e o fascínio que as palavras e o que algumas pessoas pensaram sobre elas exercem sobre o tempo em que estamos a viver. 

 

After Sappho de Selby Schwartz, Una Donna de Sibilla Aleramo e La femme gelée de Annie Ernaux –O primeiro destes livros podia ler-se como uma introdução aos outros dois até porque Sibilla Aleramo é uma das personagens de After Sappho, uma série de prosas breves sobre mulheres, intelectuais, escritoras e artistas, e o modo como as suas vidas e a sua produção artística se cruzam com a da primeira poetisa do ocidente, Safo, e com as vidas umas das outras, numa longa corrente de correspondências que começa com Lina Poletti, uma das primeiras mulheres em Itália a declarar-se abertamente lésbica, e que termina com Virginia Woolf e Vita Sackville-West. Essas correspondências vão-se tecendo contra o fundo de uma série de outras vinhetas, sobre leis e decretos que foram sancionando e institucionalizando a misoginia e a desigualdade de género na Europa. Sibilla Aleramo, que foi amante de Lina Poletti, publicou Una Donna em 1906, mas o romance foi escrito entre 1901 e 1904 e, claro, rejeitado para publicação em várias casas editoriais. Em certo sentido, há uma correspondência com La femme gelée de Annie Ernaux. Ambos são textos iminentemente autobiográficos, ambos olham para a instituição do casamento como parte de um sistema de opressão em sociedades patriarcais (ainda que em épocas e em sociedades relativamente diferentes). É um romance escrito em chiaroscuro o de Sibilla Aleramo, cruel, barroco, marcado pelos lugares-comuns de uma certa escrita da decadência, de uma época que não consegue ainda conceber a possibilidade de uma felicidade sem culpa fora das normas de uma sociedade opressiva, e nesse sentido sem dúvida com qualquer coisa do olhar de um Gabriele D’Annunzio sobre estruturas familiares, mas é ao mesmo tempo um texto corajoso, com uma energia resiliente, que resiste até aos clichés do tempo histórico fora do qual ele não chega a conseguir conceber-se. Mas La Femme Gelée de Annie Ernaux consegue, em parte porque é um livro de outra época (a data de publicação original é 1981). É um livro que consegue olhar para o trajecto de uma rapariga desde a juventude até um casamento e uma experiência de maternidade que parecem pôr fim a quaisquer aspirações individuais – intelectuais, profissionais, amorosas – e expor e, pelo menos em certa medida, evadir o tipo de desfecho que se encontra em Sibilla Aleramo. Três textos no feminino inquietos, a que talvez se pudesse acrescentar The Cost of Living de Deborah Levy.

 

Yannis Ritsos, Os Diários do Exílio (traduzido por José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro, posfácio de Claudio Russello, Edições do Saguão, 2022). Yiannis Ritsos escreveu estes diários poéticos em sucessivos “exílios” internos, em campos de concentração infames (Limnos, Makronissos) que existiram na Grécia durante a guerra civil que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1950. A edição cuidada, com uma capa que emita os maços de cigarros que se fumavam nesses campos, o hors-texte que acompanha e edição e que Aragon escreveu em defesa de Ritsos, o excelente posfácio do Claudio, mas sobretudo a belíssima tradução seriam coisas que podiam explicar a gratidão que sinto por este texto finalmente existir em português. Mas tentar dizer isso é uma falsa aproximação. Os poemas que Ritsos escreveu nestas circunstâncias são o que Jorge de Sena descreveu num poema sobre não ter dinheiro para comprar livros (“Ode aos livros que não posso comprar”) como uma forma de ir reunindo e mantendo uma humanidade que vai escasseando. Os companheiros, lugares, objectos, trânsitos que Ritsos descreve têm um lado utilitário que envolve uma paráfrase de William Carlos Williams: as pessoas morrem miseravelmente, todos os dias, por falta de coisas que se podem ler em poemas. Não conheço nenhum livro de poemas que seja uma melhor demonstração disso do que este livro de Ritsos.

 

 

Três livros de poemas de pessoas que me são demasiado próximas que marcaram o meu ano foram Os Deuses da Resina (húmus, 2022) do Pedro Braga Falcão, que reúne três livros que ele me disse em tempo que eram sobre os seus pais e sobre os pinheiros em redor da casa onde ele cresceu. Duvido um pouco disso. Os poemas do Pedro são monólogos sobre a força da poesia enquanto música, enquanto pulsação para viver, sobre a paixão de que os poemas são um repositório, mas que é uma forma de habitar o mundo, de o ver criticamente, com tanta inteireza quanto possível. Paixão, na verdade o desejo, é explicitamente o tema de Desidério (não edições, 2022) de Ricardo Marques. Desidério é também uma espécie de balanço do percurso de poeta do Ricardo. Prata (elementário, 2022) de José Pedro Moreira é um livro sobre a prata, ou sobre Píndaro e a ideia expressa nas suas odes de que não há um prémio para o segundo lugar. Na mesma colecção gostei bastante de Titânio de Regina Guimarães (2022), e Sr. Estrôncio de Ricardo Tiago Moura (2020).

 

Um primeiro livro de um poeta novo, sobre o qual não escrevi, o que me pesa na consciência, e que não vi particularmente incensado por crítica nenhuma: Prelúdio e Fuga em Português Suave (Fresca, 2022) de Hugo Miguel Santos. É um primeiro livro marcadamente italianófilo. Talvez seja difícil de escapar ao facto de que os poetas tendem a decidir as suas genealogias literárias nos primeiros livros. A do Hugo é Pasolini e uma certa geografia literária da Itália do Sul, embora ele tenha estudado na Itália do Norte, mas talvez mais o Pasolini em estado de graça de A Longa Estrada de Areia, do que o de Escritos Corsários, e esta genealogia estende-se, é também a do desaparecimento de um amigo, e a que retrocede a um pai e a um avô. É um belo primeiro livro. Fica a nota.

 

Faltava aqui escolher um livro que li com Clara, no meu tal clube de leitura transatlântico para duas. Uma pequena história sobre a escolha desse livro. A 1 de Dezembro de 2022 dei por mim no aeroporto de Heathrow a ler-lhe, meio às escondidas, enquanto fazia tempo para apanhar um voo para Atenas, as três últimas páginas de O Desprezo de Alberto Moravia, um livro cuja leitura arrastámos interminavelmente durante meses. Nada nesse romance misógino é tão misógino como o seu final. Moravia é particularmente bom a escrever sobre a relação entre estruturas de opressão e corrupção moral – pense-se numa novela como O conformista. Antídoto para a amargura que essa leitura nos trouxe foi o livro que lemos em paralelo com esse, A Ilha de Arturo de Elsa Morante, durante muitos anos de resto mulher de Moravia (e é possível que qualquer coisa em O Desprezo revisite a ligação amorosa que Morante manteve com Visconti), que é um romance sobre a ternura e o melodrama da infância e da adolescência, que trazem Arturo até ao princípio da idade adulta, com a ilha de Procida como pano de fundo. É difícil não amar Arturo, o quanto ele quer morrer e o quanto ele quer viver. E é difícil não amar a sua madrasta, também ela uma adolescente, Nunziata.

Sete andamentos em torno de Córtex de Hirondina Joshua

Primeiro andamento:  um possível auto-retrato

  

pássaros chamam: — "hirondina"
convocam a limiar vocação das imagens:
o que assusta é a nitidez:
a possibilidade da fala em exercício.
a tirana condição de escapar do sangue.

 

Segundo andamento: Exterioridade em relação à língua

Córtex tem um conjunto  de poemas, que poderíamos dizer dissecam a língua, e a anatomizam em experiência criativa. Trata-se aqui de um olhar de exterioridade em relação à língua, pensada como heterogeneidade, percecionada e sentida como léxico objectal, e ritmo sintáctico, decomposto e ou reconfigurado.

A poeta moçambicana fala outras línguas como o chope  e o changana por exemplo, a par do português; quero com isto dizer, sem entrar em simplificações, que a sintaxe da língua portuguesa se reconstrói num cruzamento de outros ritmos e a escrita é pensada como quase um trabalho de escultura rítmica, lexical e sintáctica , desconstruindo  a força do sentido normativo das estruturas da linguagem.

de repente as palavras estão na minha cara
brincam no meu rosto
basta olhar os animais diante da pedra
nos corredores da insónia
os fortes animais trilham na noite
pelas mãos cruzam a remota
barbárie  
alumiam
velocidades.
às vezes o rosto é
palavra  que os
animais trilham.
 

Terceiro andamento: “Não se pode escrever com as chaves no bolso”

Um dos poemas diz: “Não se pode escrever com as chaves no bolso,  implicando que a porta do sentido é múltipla e nas “gargantas ancestrais” outras línguas se movimentam. Leia-se o poema:

o poema rebarbativo exalta a inocência nos pontos cruciais da fala
poderia trazer o sol na saliva
nas gargantas ancestrais da vocação  erro ao chamar-lhe falo
não se escreve permanentemente com as chaves no
bolso    
nem com a gnose diante dos olhos

O Córtex é a sede do entendimento, da razão. Se não houvesse córtex não haveria linguagem, percepção, emoçãocognição e memória. Aí se situam aspectos básicos da percepção, movimento e resposta adaptativa ao mundo exterior; e outras importantes actividades como a linguagem e o pensamento abstracto.

Tomando em linha de conta esta relação entre córtex e linguagem, o livro de Hirondina Joshua permite, entre vários veios temáticos possíveis de leitura, revelar esse trajecto pela observação da língua enquanto materialidade.

Quarto andamento:  um espaço kórico da linguagem

Ocorre-me aqui a distinção que Julia Kristeva estabelece entre dois planos e modalidades constituintes da linguagem e da significação, um semiótico, pulsional, rítmico, que designa como Kora, pura significância, anterior á figuração, e outro simbólico, lógico, lugar de significação, organizado em discurso, planos que se interpenetram.

Esse plano rítmico, semiótico, é fundamental no livro Córtex, e corresponde talvez àquilo que Mallarmé designou como Mistério das letras,  escrita indiferente ao intelegível, ao sentido, à noção de sujeito; um espaço musical e dispersivo:

desfaço o mioma nas regiões da dor o que fulgura está nas danças
a gravação do solo
o idioma atravessado 

Não se faz um poema com ideias, mas com palavras, afirmava Mallarmé. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser também encarado como um objeto em si mesmo. Cito o poeta: "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma ideia que ele termina o seu poema experimental:  Un Coup de Dés jamais n’abolira l’hasard. (Um lance de dados nunca abolirá o acaso).

 

Os poemas de Mallarmé representam um esforço para esgotar as formas poéticas tradicionais, como nos sugere um dos versos do poema acima citado: “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados. Considerado um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, promoveu uma grande revolução na poesia durante a segunda metade do século XIX e, mais tarde, influenciaria movimentos vanguardistas do século XX, principalmente os de vertentes futuristas e dadaístas.

 

Quinto andamento: como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”

 

Poderíamos dizer que a poesia de Hirondina Joshua também se radica nessa família ancestral de desarrumação das estruturas linguísticas, e que no espaço da língua portuguesa, a poeta vai ler/recolher, muito especialmente, em Herberto Hélder uma vocação, que sintetiza a surrealidade, não em expansivo, mas em económico e contido verso, como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”.

queria falar das linhas africanas nos orifícios dos rinocerontes
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
alguém diz não entender a veia no meio da cara dos rinocerontes
a severa desordem do ouro no centro das paixões
o chifre equilibrado no cimo dos poemas

Com efeito neste livro parece que o córtex está ameaçado de uma certa desorganização lógica e sintáctica da linguagem,  de um certo “caos”, recuperando a kora rítmica da linguagem, “antes de o poema parir o mundo”:

o mais terrível era o personagem saído das esferográficas gigantes
chamando pelas cidades
agarrado ao silêncio mortal
antes do poema parir o mundo
com as formas cálidas dos fonemas.

Sexto andamento: “Que farei com esta boca feroz?”

 

Roland Barthes em A Lição afirma que “A língua é fascista”, porque obriga a dizer, na sua normatividade sintáctica; a poesia e a literatura trapaceiam a língua, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem. Uma espécie de ferocidade e de manducação da língua, diríamos, retomando um verso da poeta, que nos diz: que farei com esta boca feroz?

 

de súbito vejo um animal carnívoro diante do poema

basta ter fome, a fome vem.
alucino ao esquecer a potência maior dos olhos
escrever é uma demência que patina a cada instante

 

Sétimo e último andamento: “o braço anterior, o lado etéreo da mão”

Esse espaço kórico, rítmico da linguagem - “o braço anterior, o lado etéreo da mão” - vem representado no livro de Hirondina em alguns poemas, associados ao espaço uterino  de abertura ao mundo, à infância primeira, lactente, lactência, câmara pulsional anterior  à noção de sujeito:

construo a ferocidade no seio da mãe,
o resto que vai à boca
desmancha o lado etéreo da mão. 

braço anterior ao líquido.
escolho olhar antes de deitar a pálpebra no rosto
o buraco na minha cabeça aquece
— pai! vem e me olha.

 

A poeta Hirondina Joshua constrói o poema, abrindo o córtex, imergindo no caos da pulsação inicial dos sons, nesse lugar sem luz, em que “está escuro”, para auscultar e simultaneamente analisar, construindo, a formação da linguagem e do verso.

   está escuro acendam a luz
—  a luz está acesa

a cegueira um cheiro que se move no centro do caos
acendam os peixes nas vulvas salgadas
ou dentro da fala toquem na ortodoxa abundância das imagens

Ana Mafalda Leite
(Itálicos meus)

dois ou três movimentos em Leopardo e Abstracção 

(13 de novembro de 2021)

 

​​Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema  fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.

Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”. 

Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:

 

“os teus pensamentos têm a violência 
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)

“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)

“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)

“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego 
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável 
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)

“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)

“a rapariga que trabalha sentada à minha frente 
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)

“o nosso tempo é cortado 
numa série de momentos 
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)

Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário -  enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:

 

“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto (leçon de tenèbres, p. 44)  

Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção,  mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:

“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44) 

E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.

“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas (p. 58) 

“oito caixas de kleenex” (p. 52)

“o mesmo café à mesma hora

(...)

este meio copo de cerveja barata” 

“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos 
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49) 

“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:

“os muitos fragmentos 
de vasos venezianos ou bizantinos 
fragmentados em centenas de cacos 
que uma mão teima em reconstruir 
povoando de remendos a sala 
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12) 

“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)  

Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).

Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:

“como adormecer 
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56) 

Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).

Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã. 

Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte: 

“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)

“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16) 

“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23) 

“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)

“uma força confiante como a dos leopardos 
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34) 

“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36) 

“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42) 

“o mundo fechou-se 
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57) 

“o girar cada vez mais rápido 
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42) 

“inesperado centro a que
com velocidade desarmante 
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44) 

“ele roda no sentido do relógio 
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64) 

E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:

“a madrugada há de romper de novo 
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20) 

“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20) 

“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25) 

“mas quando o dia começar 
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33) 

“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34) 

“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28) 

“não sinto que tenha autoridade 
para pensar no medo e na luz 
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48) 

“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro 
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43) 

Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):

“é como ser um deus do sono ou da morte 
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno 
onde vai apontando nomes como um delator”  

E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt.  Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta. 

Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?".  Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo  movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei 
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde. 
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice 
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma 
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.

(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

Roma e Pavia não se fizeram num dia

No primeiro dia, fizeram-se à estrada.
Ao segundo, sentaram-se sob o sol quente de Sorrento
e esqueceram-se de acordar a tempo.
Ao terceiro, levantaram-se e continuaram a caminhar.
Ao quarto dia, lembraram-se das suas mães aflitas,
sem notícias, na já distante Puglia.
Ao quinto, perceberam que ainda estavam
em Nápoles, a beber grappa e a vender chapéus
aos turistas.
Ao sexto dia duvidaram se valia mesmo a pena
mudar de cidade, de hábitos, e de língua.
Ao sétimo dia, alguém lhes disse que o império
se fazia com sangue e carne.