Café Filosófico: Para uma Moral da Ambiguidade

No Café Filosófico de 20 de maio, na livraria Snob, Lisboa, falei sobre uma moral da ambiguidade a partir do livro quase homónimo de Simone de Beauvoir (Pour une moralité de l’ambuiguïté, 1947) que traduzi e prefaciei para as Edições 70. Podem ouvir abaixo o que disse, se bem que o Café se prolongou por bastante mais tempo. Estes encontros são essencialmente dialógicos.

Abnegação das Sombras, Eduardo Quina, nota de leitura

Se confrontarmos a estética, com alguma filosofia da arte à mistura, de Kant e Hegel, percebemos que enquanto para Kant o «belo é aquilo que apraz universalmente sem conceitos», espoletando um «jogo livre e harmonioso das faculdades humanas» (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790), para Hegel «a arte produz formas ilusórias e enganosas deste mundo imperfeito e instabiliza a verdade contida nas aparências para as dotar de uma realidade mais elevada criada pelo próprio espírito.» É verdade, continua Hegel, que «ainda não é pensamento puro, mas apesar do seu caráter sensível, já não é também uma realidade puramente material.» (Estética, 1818-29) Assim, querendo seguir Hegel, a poesia, como a arte em geral, «convida-nos à meditação filosófica». Não sei se salvará o mundo, mas dá-lhe um sentido mais profundo. E em Eduardo Quina ela quer gravar a gravidade. De forma simultaneamente precisa e inventiva no novíssimo Abnegação das Sombras (Officium Lectionis edições, 2023). Mas igualmente em Corpos Labirínticos (2015), passando por Maligno (2018) e consanguíneo (2021, sobre o qual escrevi uma nota de leitura, aqui),[1] que o poeta revolve, escava o mundo à procura das impurezas metafísicas, principalmente uma metafísica do corpo sofredor, que lhe dão este pendor de obsolescência programada. A angústia não resulta da inconsequência antecipada das escolhas, ou da impossibilidade de um descanso ataráxico, mas da certeza de que o bem é uma quimera e o mal não se decide a vencer de uma vez por todas. Desta forma, escreve-se para incendiar o leitor.

À sua maneira, Eduardo Quina criou um universo poético próprio, presente e em devir, cuja veia principal talvez seja composta pelo fortuito e pela dor. Uma teodiceia invertida à procura, querendo e não querendo encontrá-lo, do pior dos mundos possíveis. Digo isto também porque Eduardo Quina se dedicou a um lugar do qual, parece-me, quer, sem querer realmente, escapar: «vivo submerso de ilha». Há vidas assim, assentes na incerteza do próximo passo. Mesmo quando encontram o sólido ancestral no novo.

Uma fenomenologia da desgraça que permite (exige?) uma hermenêutica excêntrica, um compasso morfológico e musical que retire de cada palavra, ou quase cada palavra, o sentido pleno que noutros autores só se encontra no fecho do poema. É assim que interpreto, mas não prometo estar certo, a bela recensão que Sousa Dias escreveu à primeira parte do livro, Marionetas: «a matéria da poesia não é a emoção, é a linguagem.» Eduardo Quina tateia, experimenta a linguagem para apanhar as sombras da vida. Mas experimenta-a também para testar os seus próprios limites. Limites de quem? Da linguagem e do poeta, que é o mensageiro do claro-obscuro.

Claro (quase):

«enquanto espero o teu rosto tardio
colecciono pequenas pedras
fragmentos cósmicos de ilha
luz e sombras
— sobretudo sombras —
palavras apagadas pelo fogo extinto
intenções de uma lâmpada projectada
contra a voz
e um verso
que permita o silêncio
sobre a água
como um espelho
em que o sangue se embacia.» (p. 72)

Obscuro(quase):

«[…]
Atravesso o nevoeiro que me esconde:
A incomportável letargia da carne
dos lugares para expurgar a solidão.

 
entretanto espero a noite eléctrica
como subterfúgio
para que o sangue coalhe nas mãos
enquanto as flores adormecem
no recorte do poema
deste martírio auto-biográfico.» (p. 84)

Um pulsar ou uma pulsão sanguínea, mas não totalmente intempestiva (seria o caos), nem repetitiva (seria calculada e, portanto, anódina). O sangue declina-se em múltiplas variações, tantas que há «pulsos irrigados por pedras.» Isto serve para insuflar vida e morte na paradoxologia vertiginosa. Como quando escreve: «filtrando dentro das artérias a densidade do aço.» Contrapeso a um «arrasto-me dentro do ângulo morto do sonho.» Ou «ainda tentei pelo poder da fala / instaurar a possibilidade da ilusão: / era tarde e deus / tinha-se ausentado para sempre.»

Recordo-me de Nietzsche e da sua forma de narrar a morte de Deus, revelando um segredo de polichinelo para daí retirar a máxima consequência filosófica: podemos afundar-nos no niilismo ou fazer disso a boa nova, o último evangelho. O «maior de todos os acontecimentos» conduz a uma bifurcação: o caminho do sobre-homem (senhor) e o do último homem (escravo). Creio que a poesia de Eduardo Quina estabelece um estado da arte sobre a morte ou a indiferença de Deus. Bem sei que são coisas diferentes, mas convergem na ideia de abandono e ressentimento. «Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?» Agora sou vago e odeio. Mas posso explorar a superior potência da linguagem, contra mim («aniquilamo-nos delicadamente / porque somos irrisórios.») e contra Deus («a promessa vã da culpa»): «no abismo solitário da ilha / segrego as artes da ressurreição». Um retorno mais dionisíaco do que apolíneo. Porque há «inferno», «abismo», «simulacro», «desalento», «destroços», «farrapos reciclados», «espectros», «pesadelos lancinantes». Sem conjuros, nada de jovialidade (Heiterkeit) , «afinal não voamos» e «somos inesgotáveis no sofrimento». Mas há um fulgor indomável, e negro, em tudo o que Eduardo Quina escreve, é raro a redenção artística vir serenar o incandescente, lemos e sentimos que se trata de «sangue subindo em golfadas imprudentes».

 Não é com riqueza que os poetas sonham, mas com luz, sombras e liberdade.

[1] Os outros livros são: Sombras mortas entre os dedos, 2015; Ausência, 2017; No Princípio era a Morte, 2022.

notas para um ataque de pânico

Brassaï, La Bastoche, Rue de Lappe, 1932

podia ter a ver com o modo
como no fim da adolescência
aceitaste todo aquele dinheiro
para deixar que cortassem as oliveiras
e o último dos pessegueiros
o mais teimoso de todos
aquele que apenas florescia
e nunca teve a gentileza
de dar pêssegos
ou mesmo sequer uma laranja 

ainda que tanto tempo depois
eu continue a achar
que as suas flores foram para mim
a mais perfeita lição de arquitectura 

naquele ano em que entendeste
que tinhas vivido
aqui que chegasse
e com a raiva de um louco
decidiste que era preciso partir
primeiro para paris
onde viveste durante meses
perto de place de l’odeon
que nunca atravessaste
sem te lembrares
que certa vez aí robert desnos
tinha tentado esfaquear ezra pound
num jantar em que este queria afinal
ter esfaqueado jean cocteau

e onde tu não tentaste matar ninguém
e quiseste apenas esquecer walt whitman
canto de mim mesmo
e duas frases riscadas a vermelho
num caderno de capa verde
com a parte de baixo manchada de café
e eu queria ter aprendido de cor
a tua solidão as suas complicadas sílabas
compreender que rosto teria ela
em que língua a sua respiração
queria rever uma última vez
a tua dignidade complicada
de homem demasiado alto
erradamente surpreendido
no enredo de um quadro de el greco 

e no meio de todas as tretas
que entretanto me contaste
e que entretanto te contei
tão abaixo da beleza
qual seria a sua verdade
qual seria a verdade de quem és
na tua solidão
quanto valeria afinal
o som da tua voz num quarto vazio
esta lacuna de conhecimento
que já é
o meu arrependimento e tristeza
a prova irrefutável da minha
total ignorância
agora que posso livremente declarar
que prefiro que me esmurrem o nariz
a deixar-me abraçar por ti  

e mais tarde esse traço de um som
perdido num risco de caneta
numa desatenção silenciosa
transferiu-se
como às vezes
o papel absorve a tinta
e teve a sua metamorfose 

veio a tornar-se a minha solidão
esta quieta forma de lucidez
que me encontrou já tarde uma noite
ao descalçar os sapatos
debaixo de uma mesa
num pequeno apartamento
nos arredores de chicago
enquanto oitocentas pessoas
respiravam ao meu redor
em blocos intermináveis
de anonimato e betão armado
e assentou sobre a minha pele
como suor de um trabalho só meu
pesou sobre mim como o som dos trompetes
como a canção de jazz que nandia
ainda haverá de escrever a milhas daqui
em harilaou trikoupi
porque são os meus amigos
e não como ela me disse
os dela
a minha mais perfeita obra de arte  

a que me acompanhará até quando me alcançar
tudo o que já não irei entender
até o modo como duas tristezas se podem
encontrar e confundir
sem nunca se assemelharem
e de como o mesmo
nunca é verdade da alegria 

uma verdade demasiado real
subtraída a um jogo de que me tinha esquecido
onde os contrários vão para se anularem
onde deixa de importar se são
botões de saias ou nós de gravatas
se durou dez horas ou quatro minutos
se o bar se chamava ingrato inquilino
ou pensão amor 

lugar em que se confundem coisas incríveis
e onde há gente capaz de recusar
defender-se
capaz de recusar parecer bem
na fotografia enquanto por dentro
se contorce de dor
só para que na sua lápide se leia:
a vida – podia ter sido pior
essa gente cada vez mais difícil de encontrar
com uma certa dignidade mágica
que talvez eu já não vá descobrir
em lugar nenhum 

de tudo o que me falta
falta-me agora a tua coragem
que nem sequer está já
junto ao mar para lá de assos
onde ulisses quase morreu
de amor e vontade de regressar
e onde quase me afoguei
certa vez do modo que se afogam
sempre os estúpidos
julgando que conhecem o mar 

digo-te mesmo que tem de haver alguém
que se lembre alguém que possa mesmo nadar tanto
e não como uma maneira de fugir
numa cidade onde os poetas
se esfaqueiam uns aos outros
mas para o teu encontro contigo
e do meu com coisas ainda sem nome
e até com o ataque de pânico da capitã
da equipa de rugby da universidade
estendida num tapete ao lado do meu
na última aula de yoga do dia 

o inalador da asma ao lado
da sua chave de casa e da carteira
o meu susto ao ver chegar
o seu terror absoluto
um galope que ninguém poderia parar
o frenesim que o deus dioniso
inspira nas bacantes  

e porque só as mulheres são bacantes
esperado e planeado para acontecer
numa sala onde só vão mulheres
o seu choro
como o começo de um vendaval
um mapa magnético cheio de testemunhas
mas afinal com apenas um sujeito
e um só predicado
uma das poucas vezes em que sei ter visto
uma tristeza total
que gramática nenhuma
de língua nenhuma
podia ter redimido
uma tristeza julgada impossível
num corpo feito para vencer
e sentindo pela primeira vez
com uma terrível incompreensão
uma inexplicável derrota  

e pode ser que seja só tudo um jogo
só que eu não quero
fingir e sobreviver não quero
e escrevo isto para te dizer
que já sabes que morro sempre
e depois da morte regressarei
não para viver todos os momentos
que não vivi junto do mar
mas para te pedir coisas
exorbitantes e surpreendentes
que continuam a ser para mim  

o necessário desconhecido

Oxford, 9 de Março de 2023

Cartas de amor entre Simone de Beauvoir e Albert Camus

Traduzimos (Victor Gonçalves) duas cartas inéditas de Simone de Beauvoir e Albert Camus publicadas no dia 1 de abril de 2023 na revista francesa Philosophie magazine. Em breve farão parte de um livro.

Dão-nos a saber que Beauvoir e Camus mantinham uma relação amorosa secreta, ou clandestina. A receção ficou surpreendida, um pouco como eles, com o arrebatamento, mais dionisíaco em Beauvoir, do amor-paixão que os prendeu. várias vezes, de um e do outro lado, sentimos que receiam sucumbir à torrente da paixão. Vemos também como Beauvoir é bastante mais sensualista do que Camus, que, aliás, a trata na terceira pessoa. Fazendo jus a um feminismo assente na liberdade e responsabilidade individuais em vez de em dispositivos institucionais, é Beauvoir quem mais arrisca nesta troca epistolar, nas palavras e julgamos que nos atos, perante o homem e perante as convenções. Beauvoir publicou O Segundo Sexo em 1949 e dois anos antes Para uma Moral da Ambiguidade, é também um pouco destes livros que vislumbramos nas entrelinhas da sua carta. Do primeiro, emerge a crítica às assimetrias homem-mulher (invertidas, aqui) e, entre outros, a superação (contradição?) da sua visão negativa do amor-paixão. Do segundo, a insistência na conquista permanente da liberdade, até contra a alienação amorosa. Com refere nesse livro, «A liberdade é a fonte a partir da qual surgem todos os significados e todos os valores; é a condição originária de qualquer justificação da existência; o homem que procura justificar a sua vida deve acima de tudo e absolutamente querer a própria liberdade: ao mesmo tempo que exige a realização de fins concretos, de projetos singulares, exige-se universalmente». Mas reconhecendo, na linguagem das entranhas mais do que na da metafísica, que a «liberdade nunca será dada, terá sempre de ser conquistada». É esta conquista que talvez se possa ler na decisão de tratar Camus por tu.

Sabendo do pacto de sinceridade firmado entre Simone Beauvoir e Jean-Paul Sartre, é plausível que este estivesse a par da paixão de Beauvoir, compreendida e absolvida pelo contrato de poliamor que os unia. Mas a querela que surgiu em 1947 entre Sartre e Camus (afirmava que os gulags eram uma versão dos campos de concentração nazis, enquanto Sartre tomava o partido da União Soviética, desculpando-lhe as imperfeições) intensificou-se nesta época. Alguns dirão que foi o resultado da publicação de O Homem Revoltado (1951). Recordamos que Camus propõe aí, contra a categoria política do homem revolucionário e a sua vontade de «mudar o mundo» (Marx), a do homem revoltado e a de «mudar a vida» (Rimbaud). E talvez isso tenha guiado a crítica de Francis Jeanson em Les temps modernes, a revista de Jean-Paul Sartre, à falta de materialismo de O Homem Revoltado. Incitando Camus a escrever uma carta de dezassete páginas ao seu amigo Sartre, onde diz, entre outras coisas, que está farto de receber lições, recusando que lhe digam o que deve escrever, sobretudo se forem intelectuais revolucionários imersos no conforto burguês, noutros termos, prosélitos da violência política revolucionária do comunismo enquanto vivem protegidos numa democracia que acusam de ser um sistema social fundado na desigualdade. Perante as injustiças, é preciso revoltar-se, mesmo que se isso se faça na incerteza. Que, aliás, Camus preza muito mais do que o dogma.

Sartre respondeu-lhe de forma assassina, criticando-o por interpretar as objeções ao O Homem Revoltado como uma blasfémia. Questionou também as suas competências filosóficas e disse-lhe que fazia opções incorretas e injustas entre quem oprime e quem é oprimido, que era um reacionário da revolução (soviética) que conduzirá à libertação dos povos.

A troca epistolar completa entre os dois intelectuais, sem dúvida dos mais relevantes da época, foi publicada em Les temps modernes. No imediato, Sartre ganhou a batalha das ideias. Muitos franceses suspeitaram que Camus era ingénuo e se inclinava para a direita. Ulteriormente, porém, o dogmatismo e a cegueira de Sartre e dos seus acólitos perante os horrores do estalinismo contribuíram para uma plena recuperação do poder da moderação camusiana.

Mas o que nos importa aqui é o encantamento Beauvoir-Camus, e também o medo de ousarem para lá da sua condição de intelectuais, deixando que as emoções toldassem o seu discernimento mais cartesiano. E porventura os ciúmes que a celebração de uma vida plena terá provocado em Jean-Paul Sartre.

Paris, 12 de outubro de 1951
«Minha querida Sissi,
Sabeis que não sou um homem para grandes entusiasmos. Meyrink disse: “É pelo sentimentalismo que se reconhece um patife”, e desconfio igualmente das exaltações demasiado demonstrativas. No entanto, cada um dos nossos encontros provoca em mim um lirismo que tento insensatamente reprimir. Bem sabeis também que só há salvação na arte e na ação. Bem — para mim, conjugais as duas. Que mais haverá para sonhar num encontro entre dois seres? Sois a minha música, a minha alma, a minha pintura, a minha … [palavra ilegível], simultaneamente a Graça e a Providência, em suma uma camarada como eu já não pensava poder conhecer, na solidão desta via que ambos escolhemos (se não foi ela que nos elegeu). Um artista sem musa não é muita coisa. Este lugar-comum, desculpar-me-á, é provavelmente válido para todos os homens. Ação, então! Aqui, mais uma vez, dais-me tanto. Seria quase suficiente para uma existência completa: uma luz para a noite do quotidiano, e os vossos “tentáculos das trevas” (uma expressão enfeitiçante na vossa boca), quando a necessidade de nos afastarmos é demasiado premente diante de toda a agitação do mundo. Que melhor coro, como diziam os gregos, do que os vossos braços? Tenho agora a sensação de ter vivido antes de vós o sacerdócio de um vigarista. Ora, a verdade, quando assoma, é a coisa mais brilhante e mais nua que existe. É provavelmente por isso que todos passamos as nossas vidas na penumbra; mas é apenas uma semi-obscuridade, já que o outro lado é tão brilhante que temos de nos proteger como se fechássemos persianas. Não estou a divagar — o que procuro desajeitadamente exprimir é que já não me posso cegar com esse orgulho irrisório que os homens obtêm pela independência, seja ela material, social ou emocional: amo-vos, minha Sissi. Peso as palavras, acerca das quais se queixa normalmente de que sou demasiado parcimonioso. Também sei o que elas significam na nossa situação. Finalmente, sim, amo-vos. E isso faz-me feliz. Porquê, então, privarmo-nos da felicidade quando ela surge? Vivamos!

P.S.: Vireis à Rua de Bellechasse na próxima semana? René deu-me a entender isso ontem. Espero que sim.
Albert»[1]

[Não datada]
«Caro velho puma,
Que prazer em te ler novamente. Cada uma das tuas cartas encanta-me e acorda-me do meu torpor seco. Se me visses de manhã, a vigiar atrás da janela as idas e vindas do carteiro como uma menina apaixonada, rir-te-ias certamente de mim. Sei que és galanteador, mas mesmo assim há aqueles momentos em que, por mais determinada que esteja em manter-se dona do seu destino e dos seus desejos, uma mulher só pode render-se às inclinações surdas do seu sexo. A ternura por si só não é suficiente, requer outros prazeres; só tu sabes apaziguar este desejo que me consome. Ou melhor, atiçá-lo, infernal deleite celestial.

Ouço o que dizes. Também eu me entrego sem reservas. Sabes muito bem (e nisto admito-o tanto para mim como para ti) que só posso realmente encontrar nos teus braços o conforto pelo qual anseio tanto. Depois de tantas noites perdidas, para não falar dessas tardes insípidas em que ele [muito provavelmente Jean-Paul Sartre] mal se digna a falar comigo, ocupado a perseguir as saias de não sei que ingénua fascinada perante as suas tiradas, a tua humanidade, a amável receção do teu ouvido às minhas mudanças de humor, as tuas atenções mais ínfimas até, fazem-me um bem soberano. Dou por mim a falar-te de sede saciada, apetite satisfeito, sensualidade despertada... Também eu me sinto quase estúpida por formulá-lo desta forma. Assim seja: aqui estamos nós, os dois, espantados com a ingenuidade dos nossos corpos. Não será esta a definição de inocência?

O que pensas que é válido para os homens, como dizes, é bom para o resto de nós, meu caro; no entanto, porquê abafar o fogo que finalmente triunfa sobre o Inverno? O amor é uma criança sem vergonha, glorioso e impúdico. E todos os nossos sentimentos, mesmo proibidos (quem o decretou?) serão sempre mil vezes mais nobres, bonitos e vivos, do que esta situação pela qual ele me faz sofrer, e que se está a tornar francamente ridícula. De resto, não sei que tipo de mulher seria eu a denegrir o amor. Eis a inelegância que ele me arranca: estou restringida, suprema indignidade, a queixar-me a um terceiro. A ti, de quem sinto tanta falta, Albert. A tua voz penetrante, o teu sorriso felino, a tua respiração quente no meu pescoço solitário. A ti, meu oásis no deserto. Os meus pensamentos acompanham-te sempre, não duvides. Mal posso esperar para te ver no sábado. Farei todos os possíveis para vir mal termine o jantar.

Amoroso,
A tua»[2]

 


[1] Paris, le 12 octobre 1951
« Ma tendre Sissi,

Vous savez que je ne suis pas un homme de grandes effusions. “C’est au sentimentalisme qu’on reconnaît la canaille”, écrivait Meyrink, et de même, je me méfie des épanchements trop démonstratifs. Pourtant, chacune de nos rencontres fait naître en moi un lyrisme que je cherche sottement à réprimer. Vous savez bien, vous aussi, qu’il n’y a de salut que dans l’art et dans l’action. Eh bien – vous conjuguez pour moi les deux. Que rêver de plus, dans la rencontre entre deux êtres ? Vous êtes ma musique, mon âme, ma peinture, mon [illisible], la Grâce et la Providence tout à la fois, et tout simplement une camarade telle que je ne croyais plus en connaître, dans la solitude de cette voie que l’un comme l’autre nous avons choisie (si ce n’est elle qui nous a élus). Un artiste sans muse n’est que bien peu de chose. Cette platitude, vous m’excuserez, est d’ailleurs valable pour tout homme, probablement. De l’action, donc ! Là encore, vous m’en donnez tant. Cela suffirait presque à une existence complète : une lumière pour la nuit du quotidien, et vos “tentacules de ténèbres” (envoûtante expression dans votre bouche), lorsque le besoin de retrait se fait trop pressant face à toute l’agitation du monde. Quelle meilleure chora, comme disaient les Grecs, que vos bras ? Avant vous, j’ai désormais l’impression d’avoir vécu le sacerdoce d’un escroc. Or, la vérité est la chose la plus brillante et la plus nue qu’il soit lorsqu’elle éclate. Voilà sans doute pourquoi nous passons tous notre vie dans la pénombre ; mais précisément, il ne s’agit que d’une semi-obscurité, puisque l’autre versant est si étincelant que nous devons nous en protéger comme par des jalousies que l’on tire. Je ne digresse pas – ce que je cherche maladroitement à exprimer, c’est que je ne peux plus m’aveugler, de cette fierté dérisoire que tirent les mâles de leur indépendance, qu’elle soit matérielle, sociale ou affective : je vous aime, ma Sissi. Je prends la mesure de ces paroles dont vous vous plaignez que je suis d’ordinaire trop économe. Je sais aussi ce qu’elles signifient dans la situation qui est la nôtre. Enfin, oui, je vous aime. Et cela me rend heureux. Pourquoi donc se priver du bonheur lorsqu’il surgit ? Vivons !


P.S. : Viendrez-vous rue de Bellechasse la semaine prochaine ? René me l’a fait entendre hier. J’en ai l’espoir.

Albert »

[2] [non daté]
« Cher vieux puma,

Quel plaisir de te lire à nouveau. Chacune de tes lettres m’enchante, et me tire de ma torpeur sèche. Si tu me voyais le matin, à guetter derrière la banne les allées et venues du facteur comme une gamine amoureuse, tu rirais sans doute bien de moi. Je te sais flatteur, mais quand bien même, il est de ces instants où toute déterminée qu’elle soit à rester maître de son destin comme de ses attaches, une femme ne peut que s’abandonner aux sourdes inclinations de son sexe. La tendresse seule ne suffit pas, elle exige d’autres plaisirs ; toi seul sais apaiser ce désir qui me consume. Ou plutôt l’attiser, délice infernalement céleste.

J’entends ce que tu me dis. Je me livre moi aussi sans retenue. Tu sais bien (et en cela je me l’admets autant à moi-même qu’à toi) que je ne trouve véritablement que dans tes bras ce réconfort dont je me languis tant. Après tant de nuits délaissées, sans parler de ces mornes après-midi où Il daigne à peine m’adresser la parole, occupé à courir les jupons de je ne sais quelle ingénue transie devant ses tirades, ton humanité, l’accueil bienveillant de ton oreille à mes humeurs changeantes, tes plus infimes attentions même, me font un bien souverain. Je me surprends à te parler de soif étanchée, d’appétit comblé, de sensualité réveillée… Moi aussi, je me sens presque stupide de le formuler ainsi. Qu’il en soit ainsi : nous voilà deux à être étonnés de la naïveté de nos corps. N’est-ce pas la définition de l’innocence ?

Ce que tu penses valable pour les mâles, comme tu dis, l’est aussi pour nous autres, mon cher ; néanmoins, pourquoi étouffer le feu qui triomphe enfin de l’hiver ? L’amour est un enfant effronté, glorieux et impudique. Et tous nos sentiments, même interdits (qui l’a décrété ?) seront toujours mille fois plus nobles, et beaux, et vivants, que cette situation dont ll me fait souffrir, qui devient franchement ridicule. Du reste, je ne sais quel genre de femme je serais à dénigrer l’amour. Voilà l’inélégance qu’Il m’arrache : j’en suis réduite, suprême indignité, à m’en plaindre à un tiers. À toi qui me manques tant, Albert. Ta voix pénétrante, ton sourire félin, ton souffle chaud sur ma nuque solitaire. Toi, mon oasis dans le désert. Mes pensées t’accompagnent toujours, n’en doute pas. Je ne puis attendre de te voir samedi. Je fais tout mon possible pour venir dès le dîner expédié.

Amoroso,
Ta tienne
 »

Elogio da gralha

Du côté de chez swann, in à la recherce du temps perdu, corrigido por Proust

As gralhas (acaso) são mal-amadas, até mais do que os erros (ignorância), muitas vezes acompanhados por um código de punição bem estabelecido, permitindo o conjuro para redimir o infrator e, sobretudo, o algoz (a pedagogia parva da palmatória assentava neste princípio). Já as gralhas, fruto do desleixe ou do fortuito, são menos imputáveis, mas mais censuráveis.

As que resultam do desleixe evidenciam o descuido na redação ou na edição. Este défice de brio é pouco desculpável, mesmo nos casos em que ocasiona uma inventividade linguística fértil (foi quase sempre desta forma que as línguas se mantiveram vivas). É comum criticar-se, sem direito a contraditório, a indigência ou a pressa (a aceleração e dispersão da modernidade impedem o escrutínio atento, realizado, em grande medida, depois da primeira revisão, é preciso olhar noutro tempo para o mesmo texto: escrever num dia, rever noutro, e noutro, e noutro...) que originam a falha. Mas uma parte da crioulização do latim para o português teve origem nesta imperfeita economia linguística, simultaneamente corruptora e criadora.

A gralhas fortuitas têm, por seu turno, mais alcance e, por isso, são vitais para que uma língua renove os campos de sentido com enxertos bem mais afastados das guias originárias. Kant, na «Dialéctica Transcendental» da Crítica da Razão Pura desconsidera a inventividade linguística, fixar sentidos (é esse um dos grandes objectivos do livro) supõe fixar a linguagem, daí dizer, com todas as letras, que uma língua morta é preferível a outra cheia de neologismos. Mas Kant quis criar um sistema filosófico, neste caso sobre as possibilidades, todas as possibilidades racionais, do conhecimento.

Sabendo-se hoje que os sistemas podem, e devem, ser curto-circuitados, que as reservas de sentido são infinitas e a racionalidade humana finita, que os limites de uma língua devem ser empurrados além das suas fronteiras para que aquela não estagne e desapareça, ninguém, com um juízo que queiramos frequentar e emular, sonha escrever numa língua morta e ser revisto por pensamentos algorítmicos, humanos ou artificiais, a quem não escapasse qualquer gralha.

Mas nos efeitos práticos, este romantismo da resolução dissolvente, da acção que aceita o imprevisto, mais, que o ama, da escrita jovial que foge aos imperativos do autor, que não se submete imediatamente ao leitor, há consequências que podem destruir um génio juvenil, um escritor promissor. Mantém-se a responsabilidade individual, apesar do muito que ultrapassa o plano traçado por cada indivíduo, e é bom que se mantenha, sem escrutínio e punição (simbólica) não haveria mundo. Mas quem avalia a qualidade de um texto apenas pelas gralhas e erros transforma-se num funcionário da redução, do empobrecimento, da mesquinhez. Não defendo, em contraste, uma tolerância sem freios, mas aponto para a grandeza que julgo existir no passar pelas gralhas, pelos erros (por alguns deles) como por algo de irrelevante para a qualidade, ou falta dela, do que se lê.

Assim, quando virem uma gralha ou um erro que pareçam fatídicos não os deixem ser fatais, ou melhor, não os tornem fatais. Vejam, antes, se têm a força de um vector de transformação da língua e do pensamento.