Elogio da gralha

Du côté de chez swann, in à la recherce du temps perdu, corrigido por Proust

As gralhas (acaso) são mal-amadas, até mais do que os erros (ignorância), muitas vezes acompanhados por um código de punição bem estabelecido, permitindo o conjuro para redimir o infrator e, sobretudo, o algoz (a pedagogia parva da palmatória assentava neste princípio). Já as gralhas, fruto do desleixe ou do fortuito, são menos imputáveis, mas mais censuráveis.

As que resultam do desleixe evidenciam o descuido na redação ou na edição. Este défice de brio é pouco desculpável, mesmo nos casos em que ocasiona uma inventividade linguística fértil (foi quase sempre desta forma que as línguas se mantiveram vivas). É comum criticar-se, sem direito a contraditório, a indigência ou a pressa (a aceleração e dispersão da modernidade impedem o escrutínio atento, realizado, em grande medida, depois da primeira revisão, é preciso olhar noutro tempo para o mesmo texto: escrever num dia, rever noutro, e noutro, e noutro...) que originam a falha. Mas uma parte da crioulização do latim para o português teve origem nesta imperfeita economia linguística, simultaneamente corruptora e criadora.

A gralhas fortuitas têm, por seu turno, mais alcance e, por isso, são vitais para que uma língua renove os campos de sentido com enxertos bem mais afastados das guias originárias. Kant, na «Dialéctica Transcendental» da Crítica da Razão Pura desconsidera a inventividade linguística, fixar sentidos (é esse um dos grandes objectivos do livro) supõe fixar a linguagem, daí dizer, com todas as letras, que uma língua morta é preferível a outra cheia de neologismos. Mas Kant quis criar um sistema filosófico, neste caso sobre as possibilidades, todas as possibilidades racionais, do conhecimento.

Sabendo-se hoje que os sistemas podem, e devem, ser curto-circuitados, que as reservas de sentido são infinitas e a racionalidade humana finita, que os limites de uma língua devem ser empurrados além das suas fronteiras para que aquela não estagne e desapareça, ninguém, com um juízo que queiramos frequentar e emular, sonha escrever numa língua morta e ser revisto por pensamentos algorítmicos, humanos ou artificiais, a quem não escapasse qualquer gralha.

Mas nos efeitos práticos, este romantismo da resolução dissolvente, da acção que aceita o imprevisto, mais, que o ama, da escrita jovial que foge aos imperativos do autor, que não se submete imediatamente ao leitor, há consequências que podem destruir um génio juvenil, um escritor promissor. Mantém-se a responsabilidade individual, apesar do muito que ultrapassa o plano traçado por cada indivíduo, e é bom que se mantenha, sem escrutínio e punição (simbólica) não haveria mundo. Mas quem avalia a qualidade de um texto apenas pelas gralhas e erros transforma-se num funcionário da redução, do empobrecimento, da mesquinhez. Não defendo, em contraste, uma tolerância sem freios, mas aponto para a grandeza que julgo existir no passar pelas gralhas, pelos erros (por alguns deles) como por algo de irrelevante para a qualidade, ou falta dela, do que se lê.

Assim, quando virem uma gralha ou um erro que pareçam fatídicos não os deixem ser fatais, ou melhor, não os tornem fatais. Vejam, antes, se têm a força de um vector de transformação da língua e do pensamento.