Édipo revisitado

Rei Édipo em Convent Garden, Encenação de Max Reinhardt, 1912

Este ano o Festival de Atenas e Epidauro encerrou com uma representação do Rei Édipo de Sófocles, levada a cena pelo actor e dramaturgo grego Simos Kakalas. Talvez poucos sítios sejam tão propícios para encenar esta tragédia como Epidauro e não apenas porque para se chegar de Atenas a Epidauro se passa pelo lugar onde no mito Édipo cresce, Corinto. Há qualquer coisa de muito comovente em saber que o complexo arqueológico de que o teatro de Epidauro faz parte era na antiguidade um santuário dedicado ao deus Asclépio e que assistir a representações teatrais era parte da terapia. Talvez em nenhum sítio arqueológico como ali pareça tão visível que os gregos intuíram a existência do subconsciente e a sua força (sobre isto vale a pena revisitar o livro de E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational). Numa das inscrições deixadas no santuário por um dos pacientes ele agradece a Asclépio ter-lhe enviado o sonho que o curou. 

Em Epidauro, então, o anfiteatro está rodeado pelo parque arqueológico, que não sendo visitado de noite, não possui iluminação visível. Um dos aspectos mais marcantes de ver uma peça neste espaço é o de que, à medida que a noite cai (as peças tendem a ser representadas a partir das 21.00), o horizonte fica imerso no escuro, o único ponto de luz que se avista da plateia é o palco. De todos os dramas gregos aquele que é definitivamente sobre escuridão é o Rei Édipo de Sófocles. É isso que ver esta peça no mais bem preservado dos teatros do mundo antigo lembra. Na verdade, é um texto sobre diferentes camadas de escuridão: a que vem do passado, do desconhecimento da própria história, e finalmente a que advém de um conhecimento absoluto de uma verdade que, literalmente, faz com que Édipo se cegue no desenlace. É, em certa medida, uma peça sobre a violência implacável do mais ambivalente dos deuses gregos, Apolo, responsável pela peste que assola Tebas e que não a deixa desaparecer até que o assassino de Laio seja descoberto. Nenhum deus dos gregos é capaz de tanta harmonia e tanta crueldade como Apolo. Em 1983 Bernard M. W. Knox publicou a sua leitura existencialista do teatro de Sófocles, The Heroic Temper: Studies in Sophoclean Tragedy, que é também um estudo do desenvolvimento da ideia de protagonista no teatro antigo. Knox nota a dada altura que em nenhum dos tragediógrafos os deuses são tão cruéis como em Sófocles. Penso que isto é muito verdade.

Oliver Taplin escreveu, na introdução à sua tradução do texto (publicada pela Oxford World Classics em 2015, Oedipus the King and Other Tragedies), que a peça é um castelo de cartas. É uma boa imagem. Rei Édipo é uma tragédia, em parte, sobre a instabilidade da sorte, sobre a vertigem do seu lado ascendente e da descida. Quando, primeiro em A Interpretação dos Sonhos e, em menor escala, em Totem e Tabu, Freud teoriza sobre Édipo, é sobre a profundidade do desejo humano, do seu papel na formação de uma personalidade, e também sobre a violência do subconsciente que ele está a falar. Na verdade, não acredito que haja uma audiência contemporânea que consiga ver Rei Édipo completamente fora da sombra da leitura de Freud. E a figura continua a ser relevante para lá desse momento na história da sua interpetração. Depois de Freud e Lacan, Deleuze e Guattari revisitariam Édipo (em o Anti-Édipo) à luz de um sistema capitalista, observando o quanto ele é problemático se visto, ao mesmo tempo, enquanto figura estrutural e imaginária.

A leitura que Freud faz de Sófocles foi bastante atacada por classicistas. Destas leituras talvez a mais influente seja a de Jean-Pierre Vernant (em “Édipo sem complexo,” um texto publicado em 1972 no livro Mythe et Tragédie em Grèce Ancienne), que ataca a argumentação de Freud a partir da ideia de que ela não é correcta do ponto de vista da psicologia histórica, mas sabemos hoje que Freud compreendia mais da cultura teatral ateniense do que aquilo que outrora se pensou. Vale a pena lembrar que o excerto de grego antigo que Freud traduz no exame de admissão à universidade é um excerto do Édipo de Sófocles.

De outro modo, aspectos biográficos não são irrelevantes para pensar o que Édipo significava para Sófocles e o que ele significava para Freud. Alguns classicistas que estudaram esta peça e que especulam que ela data da década de 30 do séc. V a.C. acreditam que, além da peste ser uma alusão à epidemia que dizima uma parte da população de Atenas nessa década, o quanto o texto está obcecado com a relação entre hereditariedade e o estatuto de Édipo enquanto rei de Tebas (o termo normalmente traduzido por rei é uma má tradução da palavra por que ele é nomeado no grego, tyrannos, que, ao contrário do outro termo para rei, basileus, pressupõe que ele não tinha herdado o trono por via hereditária, mas tyrannos não possuía para os gregos a ressonância negativa que tem hoje) reflecte um problema político da própria Atenas, o facto de que Péricles, o principal estadista ateniense da época clássica, perdera o único filho legítimo para a peste e adopta, na sequência, o filho ilegítimo que tinha com Aspásia, a sua amante estrangeira, para que ele se pudesse tornar cidadão da polis. Estudiosos de Freud, por outro lado, especulam que ele talvez nunca tivesse pensado no Édipo como um dos mitos arquetípicos do desejo e da perversão humanas se não tivesse um meio-irmão (filho de outra mãe) com uma idade extremamente próxima, como seria o caso de Édipo com Jocasta, da sua própria mãe.

Édipo é então uma peça sobre diferentes camadas de escuridão e por isso também sobre o que do passado regressa dessa escuridão, exige ser interrogado e resolvido porque, como nota o coro no início da tragédia, uma epidemia assola a cidade, enviada por Apolo por causa do homicídio do rei anterior, e é preciso encontrar o criminoso que sobre ela trouxe a maldição do deus. Certeza e auto-confiança, desorientação, paranoia, e finalmente o terror da catástrofe são o espectro de emoções que Édipo percorre à medida que a tragédia avança. De todas as personagens trágicas nenhuma demonstra tão perfeitamente como Édipo, no corpo e no caminho que o vimos percorrer, um fragmento de um outro verso de uma tragédia perdida de Ésquilo, aquele em que Aquiles diz que se sente como a águia que vê que a seta que o trespassa tem por adorno uma pena da própria asa.  É este, no fundo, o resumo mais eficaz do enredo da peça.

Aristóteles devia amar esta tragédia e considerava-a o exemplo mais perfeito de uma tragédia grega e isso talvez seja porque a sua progressão é tão lógica quanto um silogismo. O mesmo talvez não possa ser dito do sentimento que os atenienses contemporâneos de Sófocles experimentaram ao vê-la. Qualquer coisa nela os deve ter inquietado, e talvez irritado, profundamente. Sabemos que de todas as peças de Sófocles esta é a única que não vence o primeiro prémio no festival das Dionísias. O mito de Édipo estava, de outro modo, bem estabelecido no imaginário ateniense e helénico. Em 467 a.C. Ésquilo levara a cena uma trilogia cujo tema é o mito de Édipo (as tragédias que compunham essa trilogia eram Laio, Édipo e a única peça que se conservou, Sete contra Tebas, o epílogo era um drama satírico intitulado Esfinge) e antes disso havia um poema épico, Edipódia, dedicado a Édipo.

No imaginário moderno a peça é tabu durante bastantes séculos. Datará do Renascimento a ideia, talvez mal concebida, de que ela é sobre hamartia, um erro trágico, o que tende a enfatizar a responsabilidade moral e a hybris de Édipo, mas o que ele tenta fazer ao sair de Corinto é evitar aquilo que conhece do seu destino, com o conhecimento do futuro que lhe é dado por Apolo, o que leva Jean-Pierre Vernant a dizer, contra Freud, e talvez não inteiramente em erro, que Édipo não sofre do complexo de Édipo. Rei Édipo, nesse sentido, é uma peça em grande parte sobre a impossibilidade de controlar o destino, sobre o papel da sorte na possibilidade de viver uma vida bem-vivida. Talvez Aristóteles esteja de facto certo sobre a peça ser sobre catarse, sobre a passagem através do fogo de uma destruição irreparável para a sua terrível aceitação, e também sobre aquilo que o amigo que foi comigo ver a peça, o classicista (e ao contrário de mim de facto especialista em teatro antigo) Roberto Morales Salazar, descreveu como a necessidade de ir ao teatro para chorar.

É só nas duas últimas décadas do século XIX que a peça se torna popular, ao ser repetidamente representada em Paris pelo brilhante actor Jean Mounet-Sully, recordado por Stravinsky pela sua atenção maníaca a pormenores historicizantes. É decisivamente alicerçada no imaginário do modernismo inglês por volta de 1912, quando Max Reinhardt a encena em Convent Garden em Londres a partir de uma tradução do lendário classicista australiano Gilbert Murray, professor de grego em Oxford. É, no entanto, outra encenação de Édipo feita por Reinhardt, um pouco mais cedo em Berlim, a partir de uma versão de Hugo von Hoffmannstahl, em 1910 (na versão que sabemos que Freud viu, embora especulemos que terá também visto a de Sully), com cenário e coro monumentais, que mudam a história do teatro no Modernismo, e também a história da relação deste período com a tragédia grega. A escolha de actor principal, talvez demasiado jovem para representar o papel à data, Alexander Moissi, parece ter criado uma inesperada intensidade dramática. A figura de Édipo foi mais tarde revisitada por T.S. Eliot, Cocteau e André Gide, entre outros.

O desconforto que o Édipo de Sófocles nos causa é inversamente proporcional ao conforto causado pela progressão perfeita do seu edifício lógico: vemos com toda a ironia a catástrofe desenrolar-se à nossa frente, mas enquanto audiência estamos confortáveis porque está a fazer todo o sentido. Isto é muito grego. Mas ver Édipo é observar um cenário teatral a ser lentamente desmontado diante dos nossos olhos, o teatro da vida de um homem: Édipo, alguém capaz de uma violência sem limite, de matar um rei por uma ofensa numa encruzilhada, mas também o mesmo homem que fugira de casa em Corinto para evitar a profecia escutada em Delfos, que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. A peça começa com o que está à superfície, com um rei preocupado diante dos seus cidadãos, com uma história anterior de investigador bem sucedido (é afinal Édipo quem decifra o enigma da esfinge) e que agora tem de descobrir quem é o assassino do rei anterior, e camada sob camada vemos Édipo afundar-se até se converter noutra pessoa, vemo-lo mudar e mudar de novo com a presença de Jocasta e de Creonte, até chegarmos àquela cena em que ele sugere que o único escravo que testemunhou o homicídio de Laio seja torturado (a maior parte dos estudiosos da peça notam o quanto isto é aberrante, em toda a tragédia grega, tanto quanto me lembro, há apenas outra cena em que um escravo quase é torturado, no Orestes de Eurípides, pelo imaturo e desesperado Orestes).

Achei que havia na encenação de Simos Kakalas algumas intuições óptimas e algumas decisões difíceis de explicar. Por exemplo, o facto de que todo o elenco da peça está vestido de negro e de modo sóbrio comunica de um modo inteligente a atmosfera de antecipação assustada e de luto que caracteriza a psicologia do coro. E a entrada do coro em cena talvez tenha sido uma das melhores entradas de um coro trágico em cena que observei em muito tempo. Um a um os actores vestidos de negro foram entrando em palco, segurando cada um a sua máscara. Simples e belo. Por outro lado, as máscaras pareceram-me uma má escolha por mais do que um motivo, a começar pelo motivo prático do enorme desconforto que devem ter causado aos actores num calor de 40 graus. Kakalas comentou esta decisão dizendo que queria que as máscaras fossem todas iguais, e que todos os actores as usassem (incluindo creio que em certos pontos Creonte e Édipo que se juntam ao coro), para dar a noção de que todos no fundo são iguais dentro da hierarquia da peça, isto é, dentro do que ela significa, que nem um rei está a salvo de um golpe particularmente cruel do destino. Esta linha argumentativa a mim parece-me talvez ingénua. Uma grande parte da tensão que sustenta a peça é o facto de que Édipo é um autocrata há um longo tempo no poder e, como se vai ver na atitude que ele adopta perante o coro e sobretudo perante Creonte, o irmão de Jocasta de quem ele desconfia porque o vê como um rival, é o representante de uma sociedade extremamente hierarquizada, e alguém que não é inteiramente imune à paranoia que o desejo de se manter no poder normalmente inspira em quem está habituado a ter o controlo.

Édipo, não é, definitivamente, igual a toda a gente. E o seu infortúnio também não o torna igual aos outros, o segredo que explica a sua origem é um golpe particularmente cruel, poucas tragédias são tão cruéis para com a sua personagem principal quanto o enredo de Rei Édipo o é para Édipo. Não me parece que Édipo seja então uma peça cujo objectivo do seu imaginário moral seja o da humildade para fins de igualdade social perante a catástrofe, não sei de resto o que pode vir dessa ideia que não me pareça mesquinho ou opressor. Esta noção parece-me correr o risco de obscurecer o facto de que apesar de tudo é Édipo quem vê, e escolhe ver, a verdade que o destrói e que há nele a lucidez de tentar chegar a essa verdade, ainda que isto aconteça a partir de um lugar de poder e privilégio, o seu triunfo, a verdade que ele acaba por descobrir, é também a sua destruição. (Sófocles é o grande tragediógrafo das conquistas amargas.) Esta noção parece-me ainda reduzir Édipo de outra forma, a sua identidade não se circunscreve inteiramente ao golpe que o destrói e sabemos que isso é particularmente verdade para Sófocles, que regressaria à figura de Édipo na sua última obra-prima, o estranhíssimo Édipo em Colono, uma peça sobre um Édipo zangado que amaldiçoa Tebas e vem morrer à aldeia (subúrbio) de Atenas de onde o próprio Sófocles era oriundo. A polis ateniense, talvez disfarçada de Tebas para os propósitos de Sófocles, por outro lado era, como em certo sentido o é a sociedade ocidental em que vivemos, um lugar profundamente desigual, em nenhuma parte isso é tão visível nesta peça quanto na angústia do coro. Parece-me uma oportunidade desperdiçada mascarar – literalmente – isso.

As máscaras, que supostamente trariam igualdade porque são todas iguais, por outro lado, como comentava o amigo que viu comigo a peça, desumanizam o coro, que é talvez um dos coros mais humanos de toda a tragédia clássica: é um coro devastado por uma doença que paira sobre a cidade, que carrega consigo uma memória da história anterior de Tebas, que está preocupado com a sobrevivência da comunidade a que pertence e que em muitos sentidos é mais inteligente do que Édipo. É uma comunidade com vários rostos, com múltiplas vozes. O facto de que Kakalas resolveu que os seus autores não iam usar microfone no espaço do anfiteatro sabotou ainda mais o coro, o material das máscaras tornava difícil de ouvi-los e sabemos que não era esse o caso com o material de que eram feitas as máscaras na antiguidade, que ajudavam a amplificar o som. Mas cada encenador tem de resolver o que fazer com o seu coro e os coros da tragédia grega são normalmente difíceis de resolver. Podem ser uma enorme vantagem ou uma enorme desvantagem.

Por outro lado, agradou-me o actor que fazia de Édipo (Yannis Stankoglou), é difícil comunicar e sustentar a tensão entre segurança e poder absolutos e melancolia auto-destrutiva através da qual o tirano de Tebas acaba por entender, na difícil relação entre hereditariedade e identidade, o peso que a história da sua origem e o seu passado têm sobre o seu presente.

Desagradou-me, sem possibilidade de redenção, a escolha da actriz que fazia de Jocasta. Começou no facto de ela ter exactamente a mesma idade do actor que fazia de Édipo (também não me convence a opção mais tradicional de optar por uma actriz conspicuamente muito mais velha do que Édipo, segundo o que sugere a cronologia do mito haveria talvez uns quinze anos de diferença entre ambos), mas uma Jocasta que parece obviamente mais nova do que o filho é um problema que pode facilmente afundar toda uma produção desta tragédia (e teve para mim, sem dúvida, em certas cenas, um efeito cómico). Numa boa encenação de Édipo o centro da força dramática da tragédia repousa sobre Jocasta, a primeira grande onda de choque e terror que atinge a audiência chega através dela. Ela é mais velha e mais inteligente do que Édipo, ela entende muito antes o que ele não pode entender e ao contrário dele é incapaz de sobreviver à verdade que é colocada diante de si.

Tendo dito tudo isto, tinha-me esquecido da beleza de certos momentos do texto do Sófocles. Isto é particularmente verdade dos passos corais que se seguem às últimas saídas de Édipo de cena. Para mim continua a ser sempre um privilégio que não é bem deste mundo poder ver uma tragédia grega em Epidauro.

 

Oxford, 8-10 de Setembro de 2023

Rei Édipo, Encenação de Simos Kakalas, Festival de Teatro de Atenas e Epidauro, 2023

 

Os gatos de Atenas

Quando chego a Atenas dou a ouvir a um amigo uma canção que Chico Buarque escreveu em 1976, “As mulheres de Atenas.” Traduzo-lhe a letra às três pancadas, por baixo da voz de Chico, à pressa. Ele escuta fascinado. Comentamos que alguns versos parecem datados, a começar pelos primeiros: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas,” mas até isso é complicado e discutível. As mulheres de Atenas na canção de Chico são um exemplo de estoicismo, força, paciência, mas os seus homens, à medida que a canção os descreve, são o contraponto, o exacto oposto, bebem em excesso, e ocupam-se da guerra, e deixam-nas à espera enquanto se vão encontrar com outras mulheres, e elas parecem aceitar tudo isso com um orgulho indiferente. O seu orgulho complica ou não a letra? E que mulheres de Atenas são estas? De quando? Provavelmente as clássicas, mas podiam facilmente ser as de hoje, ou as da história da Grécia recente, aquelas mulheres que bordam em longas quarentenas, enquanto os homens desaparecem para ir para a guerra. Contra quem? Não sabemos. Todas as personagens nesta canção são personagens-tipo. De Chico Buarque passo para Elis Regina e para aquela canção em que ela balança vulnerabilidade, dança e desequilíbrio, “Dois p’ra, dois p’ra lá.” Lembro-me enquanto tocamos a canção que o meu amigo tem as portas das varandas do seu apartamento todas abertas, e que todo o bairro estará agora a sofrer esta minha introdução intempestiva e desordenada a alguns cantores brasileiros. Chegamos a Chico Buarque não sei muito bem como, mas a última canção que me lembro de estar a ouvir antes de entrar no avião era “Make you feel my love.” O melhor verso dessa canção, digo eu, é aquele que introduz um desequilíbrio em tudo o que Bob Dylan diz, é o último desta estrofe:

The storms are raging on the rolling sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet 

Estes versos podem ser auto-referenciais (rolling sea faz pensar em “Like a rolling stone,” “on the highway of regret,” lembra “Highway 61 Revisited” and “the winds of change,” talvez atropele “Blowing in the wind” em “The times they are a-changing”), mas não há como escapar, no verso “you ain’t seen nothing like me yet,” ao facto de que é um verso impregnado por uma auto-confiança que é contradita pelos três versos anteriores, mas é também um verso, equilibrado como está numa teia de referências a outras canções de Dylan, sobre auto-emulação, sobre os poderes de reinvenção de um poeta inesgotável. “To make you feel my love” é uma canção de 1997.

            A minha canção de Atenas, dou-me conta disto enquanto escrevo estas linhas, não é música, mas um gato, ou melhor, o ritmo de um gato específico quando nos cruzamos num certo ângulo. Ou as revelações que a presença desse gato por vezes parece conter, em termos da cronologia das metamorfoses da minha relação com a cidade, do ritmo da minha cíclica existência nela. A pergunta que me faço, sempre que me encontro com este gato é: sou ainda uma turista nesta cidade ou não? Quando ao certo se deixa de ser turista numa cidade? Há mais de uma década, nas minhas primeiras viagens a Atenas, o bairro onde eu fico costumava ser para mim as poucas coisas que sabia dele de sobre ele ter lido em guias turísticos, era o bairro do Museu Nacional de Arqueologia e também o bairro onde está o Politécnico, onde, durante a chamada Revolta do Politécnico, a partir de 14 de Novembro de 1973, os estudantes fizeram greve e entraram em protesto contra o Regime dos Coronéis. A revolta foi esmagada pelo regime a 17 de Novembro, e terminou com um total de 24 mortos. Hoje em dia, nas ruas desse bairro, justapõe-se a essa história, a minha história nele, que se desenrola em redor dos apartamentos onde fiquei ao longo dos anos, dos apartamentos onde vivem os meus amigos, onde às vezes fico, de bares, cafés e restaurantes, onde aconteceram para mim tantas coisas que sei hoje que estas ruas não são apenas paisagem. O que é ao certo a pertença a um lugar? Qualquer coisa entre o deslumbramento e a pena? Não sei. Digo, a alegria sem medida do regresso a pessoas que amei. Até àqueles que já não podem ser encontrados aqui.

            O que me leva ao gato, à minha relação com aquele gato de rua que vive já um pouco fora do meu bairro, um pouco mais acima dele, numa esquina do Monte Licabeto, esse lugar que faz pensar em Aristóteles, perto da padaria onde, quando estou em Atenas, costumo ir tomar o pequeno-almoço, um espaço que não é café, mas uma espécie de balcão virado para a rua, onde se vende café, pão, e alguns bolos de pequeno-almoço. Na esquina do prédio onde está essa padaria, há uns três ou quatro anos, alguém que vive no prédio adjacente, adoptou e não adoptou um gato preto de rua, deixando-lhe um cesto no degrau do prédio e água e comida ao lado do degrau, já quase diante da padaria. Ao longo do tempo eu vi-o passar de gato bebé com não muitas hipóteses de sobrevivência a gato adolescente e daí a gato adulto, confortável na vida do bairro, príncipe e pedinte, como só os gatos de rua de Atenas sabem ser. Em nada como na sua relação com os gatos de rua é visível a generosidade e a crueldade dos atenienses, o que há de melhor e pior na cidade emerge no modo como as múltiplas colónias de gatos são tratadas pelas pessoas nos bairros onde os gatos vivem. Os gatos de Atenas, que não existiam na antiguidade clássica, são hoje um símbolo da cidade.

            Nesta viagem, dei conta, muito embora o cesto estivesse no sítio, que o meu gato não andava perto do cesto. Nos primeiros dois ou três dias isto não me preocupou, mas ao fim desses dias uma nuvem de fumo dos incêndios que assolaram Atenas desceu sobre a cidade e, quando eu estava prestes a ir-me embora por alguns dias, para uma cidade do norte onde tinha um compromisso, o cesto foi removido. Vi o desaparecimento deste cesto como um símbolo do lado violento e cruel de Atenas, do tipo de descuido que banaliza o lado precioso da vida, uma forma de indiferença alicerçada em descuido. Quando voltei, três dias mais tarde, o ar na cidade tinha voltado a ser respirável, mas o cesto continuava desaparecido. Não sei como, por que milagre, no meu último dia havia um novo cesto, e no novo cesto o mesmo gato, com o seu inconfundível focinho manchado de cinzento, fitou-me de dentro dele, como se entre nós nunca se tivesse desenhado o horizonte de angústia e ausência com que o imaginei desaparecido. De que me tinha esquecido eu? O que é que eu não tinha entendido? As mãos destas pessoas, talvez de um prédio inteiro, que resolveram que este gato é parte do seu prédio, e que nos dias de calor irrespirável talvez o tenham recolhido e depois trocaram-lhe o cesto de inverno por um de verão. A solidariedade é uma tecnologia simples e por vezes irracional, teimosa como a improbabilidade da vida. O seu efeito secundário é o mundo tornar-se um lugar menos cruel. “You ain’t seen nothing like me yet” é o que na minha imaginação aquele gato canta a partir do seu cesto.

Ó meu deus de Vasconcelos

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994

O primeiro livro de Mário Cesariny que comprei foi a primeira edição de Pena Capital, acabada de lançar pela Contraponto.  Passava-se isto em 1957 e eu estava em Lourenço Marques.

É um livro do qual nunca me separei. Uma voz reveladora, cheia de sedução e desafio. Um livro originalíssimo que marcou uma geração. E foi com esse livro na mão que, anos mais tarde, apresentado por Alberto de Lacerda, conheci Mário Cesariny em Londres.

O nome do autor na capa do livro ainda incluía o apelido Vasconcelos. Mas Mário Cesariny foi o nome com que assinou a breve dedicatória que lhe pedi e me fez. Data da assinatura 1964. Local da dedicatória, Lisboa. Ao reparar no engano, Mário disse: “Fica assim e faz de conta!”. E esse seu “faz de conta” fez sentido.

Lisboa, nessa altura, era para mim uma cidade perdida desde o começo da minha adolescência. A Londres que me acolhera constituía o meu mundo. Mas Mário tinha chegado de Lisboa e Lisboa está presente no seu livro. Uma Lisboa que me deixava saudoso e que Mário recuperava com imagens como a do eléctrico “amarelíssimo”, “a bela mancha diurna dos calceteiros na praça”, e a “gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro”. Aquele Lx. que Mário pôs na dedicatória deu-me uma aproximação à Lisboa de onde me tinham levado há tanto tempo.

Mário regressou a Londres para uma estadia mais longa e a certa altura hospedei-o em minha casa. Por coincidência e para meu prazer, foi lá que escreveu parte do livro Poemas de Londres.

Mas foi com essa primeira edição de Pena Capital que o mundo de Cesariny se me revelou. E creio poder dizer que essa primeira edição foi o livro que o lançou. Quem não se lembrará de versos comos os que abrem o poema A Antonin Artaud?

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.

E mais adiante:

Como assim Mário   como assim Cesariny   como assim
      ó meu deus de Vasconcelos?

E quem não se assarapantou com o extraordinário menu do pic-nic evocado na Homenagem a Cesário Verde?

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas
cosidas

Quem não se deixou arrebatar com poemas como Corpo Visível e Autografia e Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos? Esses, e outros e sempre. Outro livros apareceram e outras edições revistas de Pena Capital foram surgindo. Nenhuma com a irreverência dessa primeira edição.

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Mário Cesariny proponho que a melhor homenagem a prestar-lhe seria o relançamento da versão original do livro excepcionalíssimo que é Pena Capital. E quanto ao nome do poeta, é melhor que fique inteiro: Mário Cesariny sim, mas certamente também de Vasconcelos.

Estética do Silêncio e Bom Gosto, Café Filosófico

No sábado, dia 15 de julho, realizou-se mais um café filosófico na Livraria Snob, Lisboa. Deixo aqui o texto e o áudio do encontro:

«Para este Café Filosófico recuperamos um texto de Susan Sontag, «The Aesthetics of Silence», ASPEN 5-6, item 3, 1967 (disponível on-line) e uma parte relevante da revista ELECTRA 20 para pensarmos, primeiro, como as obras de arte, talvez a arte em geral, quiseram, na efervescência do Pós-Guerra e, num movimento suicida, ir além das contingências materiais das linguagens e alcançar o silêncio. Desígnio teleológico semelhante ao desvanecimento de qualquer misticismo (o místico quer desaparecer, superar todas as alienações, emancipar-se num além).

A vontade de fintar as armadilhas da linguagem esbarra, porém, com a de continuar a produzir obras de arte (a anti-arte a fazer arte). Alguns autores levaram a sério a necessidade de transcendência e libertaram-se do material (Rimbaud, Wittgenstein, Duchamp…). Outros, experimentaram soluções minimalistas e recusaram ceder às exigências do público (John Cage, Beckett, Burroughs, Joyce, Rilke). Neste caso, a arte é uma libertação, um exercício de ascese. Mas no geral, a anti-arte entrou numa contradição insanável.

Em boa verdade, «A arte do nosso temo é ruidosa com apelos ao silêncio», diz Sontag. Os niilistas pretensiosos reconhecem o imperativo do silêncio mas continuam a falar. Outros artistas, perceberam que a atenção melhora tanto mais quanto menos se oferecer. Estes são mais eficazes a gerir o duplo carácter de abstração e contaminação das linguagens artísticas. Perseguir o silêncio permite, assim, limpar as obras dos excessos, mas também potenciar o alcance, por exemplo, das palavras («quando pontuadas por longos silêncios, as palavras pesam mais, tornam-se quase palpáveis.» Idem)

Sobre o uso da linguagem, é comum distinguir-se o uso comunicativo do romance do uso em si mesmo da poesia. Mas a virtude do silêncio não privilegia nenhuma arte em particular, deriva antes da arte contemporânea lhe atribuir uma relevância especial, a virtude do silêncio é histórica, não teve nem terá sempre o mesmo valor.

Sontag termina o ensaio referindo que o silêncio, numa outra radicalidade que não a do meio termo que descrevemos há pouco, pode ser sustentável se for utilizado com ironia. Sem levar essa mesma ironia ao ponto em que mine todas as nossas suposições, instaurando o desespero ou o risível.

Com o problema do gosto, entramos mais directamente na categoria do público, essa soma abstracta de indivíduos que contemplam e criticam obras de arte. O que é o «bom gosto», um gosto padrão que aplana as arestas e põe em cena uma bela ordem, ou uma forma diferente, imaginativa, extravagante até de ajuizar? É mais do foro racional ou provém de uma sensibilidade feita de intuição e experiência? É uma questão individual ou, como defende Pierre Bourdieu, resulta sempre de imperativos sociais, ainda que camuflados?

Quando falamos de arte, devemos ter em consideração que há um público que formula juízos de gosto, quando contempla (sente) e quando critica (pensa). Afonso Berardinelli defende que uma das razões pela qual a poesia adoeceu foi porque o gosto poético desapareceu, naquilo que é mais essencial aliás: «a poesia é hoje uma arte sem público» (ELECTRA 20). O gosto literário é agora definido por uma elite muito padronizada e distante da vida — sobretudo das forças heterodoxas que a compõem —: os académicos. O dever científico de haver um método que busca verdades a-históricas é, ainda para Berardinelli, a melhor maneira de esterilizar os textos literários. Por seu turno, Geofroy de Lagasmerie, seguindo Theodor Adorno, assegura que a universidade tem uma obsessão pela conformidade e o controlo, e isto reprime a imaginação, a espontaneidade e a liberdade.

No verso da moeda não estão os juízos de gosto que gostaríamos de aplicar quando o mundo se fartar de futebol, mas o kitsch. Somos, pois, governados pelo gosto académico e pela potência «da estupidez e dos lugares-comuns na linguagem da beleza e da emoção» (Milan Kundera, citado por António Guerreiro, ELECTRA 20).

A questão do gosto foi amplamente debatida na e a partir da Encyclopédie (séc. XVIII). Diderot, Voltaire, Montesquieu e d’Alembert definiram logo aí, numa altura em que o gosto estava intrinsecamente ligado ao belo, o problema principal: estará o gosto sempre ligado a um relativismo da experiência estética, ou é possível uma universalização dessa experiência? Para dar conta dessa ambivalência, Diderot, por exemplo, fala de um «belo real» e de um «belo relativo».

Actualmente, apesar de ninguém questionar o relativismo do gosto, ele «é um instrumento de poder através do qual se opera um sistema de valores baseado em grande parte numa visão purista e contra a massificação da criação artística» (Rodrigo Pereira, idem). No outro lado, num contraponto sem a força de uma dialéctica da superação, está o gosto ligado à moda, sobretudo à fast fashion, cuja mensagem, para Rosie Findlay, é: «não pense, compre!» (idem).»

Entretanto, numa feliz coincidência, acaba de ser publicado um conjunto de ensaios de David Hume, organização e tradução de Pedro Galvão, para as Edições 70. Textos do séc. XVIII que, todavia, podem ajudar-nos a pensar um apreço pelo belo que, partindo de uma ontologia subjectiva, não fique sequestrado pela arbitrariedade.

Milan Kundera, elogio fúnebre

A morte de Kundera permitirá que toda a cena seja ocupada pela sua obra, era isso que ele pretendia, beckettizar-se (lemos este belo neologismo num qualquer jornal de referência que agora não conseguimos citar), desaparecer por detrás da sua obra.

Em jeito de homenagem, Tatiana Faia e Victor Gonçalves escrevem sobre os seus encontros com o autor da Insustentável Leveza do Ser.

Tatiana Faia

Numa entrevista bastante recente à BBC, Salman Rushdie, falando do ataque de que foi vítima em 2022 em Nova Iorque, recordava, a propósito da morte de Milan Kundera, que ele era um escritor que acreditava que o riso era uma forma de desmontar os extremismos. Isto fez-me ir à procura da última entrevista que Kundera deu à televisão francesa (em Apostrophes, 1984). O tema era o erotismo em A Insustentável Leveza do Ser, sem dúvida o livro mais lido de Kundera, e nela Kundera diz que vivemos numa época onde a intimidade é facilmente exposta e que sem intimidade a personalidade evapora-se. Isto recordou-me uma anedota contada por Philip Roth, que se encontrara com Kundera na Checoslováquia, e que contou algures como aí tinha sido vigiado pela polícia e um amigo seu, Ivan Klima, tinha sido, depois de ele ter partido, interrogado sobre os motivos da sua presença, ao que ele respondeu perguntando ao polícia que o interrogava se ele tinha lido os romances de Roth, que o motivo pelo qual ele fizera aquela visita eram as mulheres. Talvez haja nesta história sobre um outro escritor qualquer coisa do riso de Kundera, o tal que desmonta o extremismo, faz entrar pela porta da violência a normalidade, os traços de natureza das pessoas pelas quais elas vão sendo gente (é com o mesmo amor ao detalhe menor que outro escritor, Saramago, tende a olhar para as suas personagens).

Não me lembro de me ter rido particularmente com A Insustentável Leveza do Ser, mas recordo uma observação que ficou comigo, que mudou uma coisa bastante simples para mim, mas talvez bastante fundamental. Há um momento no livro em que Kundera discute a noção de que a crueldade que exercemos contra os outros continuará a existir enquanto continuarmos a ser capazes de ser cruéis para com os animais. Deu-me uma certa obsessão esta ideia, que é aquela que me ocorre quando de vez em quando sou esmagada por uma verdade que não quero ou não posso combater. Ter lido Kundera, que não sei, nem me importa, se era vegetariano ou não, explica então em parte o meu vegetarianismo. Pode parecer pouco esta anedota, mas aqui fica um desses exemplos que por vezes são clichés de marketing, ou frases ditas por críticos em dias de cansaço, quando estão pouco inspirados, e outras apenas uma maneira de falar de uma verdade – simples e dura como um seixo: de vez em quando um livro encontra-nos e muda a nossa vida. Isto é, então, uma pequena elegia para Milan Kundera.

Victor Gonçalves

O que resta das nossas leituras, que partículas permanecem no nosso sistema de pensamento, que partes do nosso cérebro são influenciadas pelos resquícios do que fomos e da forma como fomos lendo? Os bioarquivos contaminados pelas influências heteróclitas da vida e… das novas leituras.  Todos usamos o «li, mas não me lembro», ou «li, mas quase não me lembro». Um esquecimento que empobrece, com certeza, mas sem ele, como nos ensinou Friedrich Nietzsche, estaríamos condenados ao peso de um passado que esmagaria o futuro.

Milan Kundera pensou o esquecimento noutro sentido: esquecer o passado retira profundidade ao presente e torna o futuro previsível (não há futuro que resista ao conhecimento prévio do que vai ser), isto é, um esquecimento que conduz diretamente à ignorância. No imediato, depois da notícia da sua morte, recordei-me de ter lido a Insustentável Leveza do Ser, a Arte do Romance, a A Ignorância e A Imortalidade. Mas estão fora da memória mais ativa, talvez só trabalhem subterrânea e fortuitamente em mim (que força de modelação tem isso?). No campo da semiconsciência, companheiros distantes mas importantes, tenho, então, as quatro obras referidas. Será também por serem bastante conhecidas e citadas? Muito do que julgamos pensar por conta própria não passa de discurso em segunda mão, mais ou menos bem recondicionado. As nossas ideias são o estrato mais recente de um palimpsesto infinito.

Seja como for, ele mostrou-me uma categoria fundamental do mundo contemporâneo: o Kitsch. Uma produção quase industrial de obras que não são nem lúcidas nem belas (o Kitsch vive de um simulacro de beleza fácil de assimilar pelas massas), uma exaltação do banal. Percebi também outras possibilidades do absurdo, do mau absurdo (o sem-sentido que simula ter sentido, próprio ao regime checoslovaco neoestalinista pós-68, mas também à sociedade de consumo do Ocidente rico), distinguindo-se do absurdo que reforça o anti-determinismo, e por isso mesmo a liberdade, de Sartre e, sobretudo, Camus. O de Kundera está mais próximo do de Kafka (que li intensamente) ou Musil (que admiro), por vezes, talvez de Beckett (que me dá sempre muito a pensar). De qualquer forma, o seu absurdo não abafa o riso, Kundera, dizem os que privaram com ele, tinha um bom humor fantástico, e o risível que provoca boas disposições no ânimo habita na sua obra, pressenti-o eu e asseguram-no alguns dos seus maiores leitores. Talvez o risível seja a via entre os dois abismos que descreveu a Philip Roth (admirador incondicional da sua obra): o do fanatismo e o do cepticismo absoluto. Retenho também a erotização, roçando o pornográfico, sem saídas pelo alto (metafísicas ou libertárias, ambas dionisíacas). Ou a identidade, como nos fazemos e desfazemos constantemente, egos esburacados.

Afirmava que não era um escritor, mas um romancista. Nesta arte, pelo seu poder de diagnóstico e criação, cabia toda a cultura europeia. Deste Cervantes, passando por Diderot e Rabelais e acabando em contemporâneos seus de língua checa. Pelo que tenho lido em vários jornais, Kundera é um dos maiores antropólogos culturais do velho continente, mas também um pensador da geopolítica europeia. A escritora Norma Manea disse há poucos dias ao jornal Le Monde «Perdemos uma testemunha fundamental e um grande pensador da Europa do século XX, das suas convulsões e conflitos.» Uma Europa que ele considerava frágil, em perigo, como o referiu a Roth em 1980.

Esta caracterização aliada a uma vaga, mas persistente, sensação de que o devia ter lido mais, que isso comporia alguns gestos imprecisos da minha forma de pensar (olhar para o mundo, para mim e interpretar, com rigor e com excesso, pensar um futuro para a Europa), conduzem-me para leituras por vir, será o meu próximo (2024) autor de cabeceira.