Ó meu deus de Vasconcelos

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994

O primeiro livro de Mário Cesariny que comprei foi a primeira edição de Pena Capital, acabada de lançar pela Contraponto.  Passava-se isto em 1957 e eu estava em Lourenço Marques.

É um livro do qual nunca me separei. Uma voz reveladora, cheia de sedução e desafio. Um livro originalíssimo que marcou uma geração. E foi com esse livro na mão que, anos mais tarde, apresentado por Alberto de Lacerda, conheci Mário Cesariny em Londres.

O nome do autor na capa do livro ainda incluía o apelido Vasconcelos. Mas Mário Cesariny foi o nome com que assinou a breve dedicatória que lhe pedi e me fez. Data da assinatura 1964. Local da dedicatória, Lisboa. Ao reparar no engano, Mário disse: “Fica assim e faz de conta!”. E esse seu “faz de conta” fez sentido.

Lisboa, nessa altura, era para mim uma cidade perdida desde o começo da minha adolescência. A Londres que me acolhera constituía o meu mundo. Mas Mário tinha chegado de Lisboa e Lisboa está presente no seu livro. Uma Lisboa que me deixava saudoso e que Mário recuperava com imagens como a do eléctrico “amarelíssimo”, “a bela mancha diurna dos calceteiros na praça”, e a “gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro”. Aquele Lx. que Mário pôs na dedicatória deu-me uma aproximação à Lisboa de onde me tinham levado há tanto tempo.

Mário regressou a Londres para uma estadia mais longa e a certa altura hospedei-o em minha casa. Por coincidência e para meu prazer, foi lá que escreveu parte do livro Poemas de Londres.

Mas foi com essa primeira edição de Pena Capital que o mundo de Cesariny se me revelou. E creio poder dizer que essa primeira edição foi o livro que o lançou. Quem não se lembrará de versos comos os que abrem o poema A Antonin Artaud?

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.

E mais adiante:

Como assim Mário   como assim Cesariny   como assim
      ó meu deus de Vasconcelos?

E quem não se assarapantou com o extraordinário menu do pic-nic evocado na Homenagem a Cesário Verde?

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas
cosidas

Quem não se deixou arrebatar com poemas como Corpo Visível e Autografia e Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos? Esses, e outros e sempre. Outro livros apareceram e outras edições revistas de Pena Capital foram surgindo. Nenhuma com a irreverência dessa primeira edição.

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Mário Cesariny proponho que a melhor homenagem a prestar-lhe seria o relançamento da versão original do livro excepcionalíssimo que é Pena Capital. E quanto ao nome do poeta, é melhor que fique inteiro: Mário Cesariny sim, mas certamente também de Vasconcelos.

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Cabeça de são filipe, Leonardo, ca.1495

Para a Pazinha

na casa de Frederico Madureira
a biblioteca
ficava no andar de baixo

: Frederico não se importa
que eu vá ao quarto dos livros?
: vai
e ao fundo
na prateleira do meio
da estante mais encostada
à janela do jardim
hás-de encontrar
um álbum reproduzindo
desenhos de Leonardo
procura o estudo para S.Filipe

e assim eu fiz e lá estava
o olhar arrebatado
a cabeleira em anéis
mas o olhar
o olhar

aquele olhar
a eternidade transposta
e os pássaros cantando no jardim
e a luz do sol no jardim
e a casa contendo tudo
a casa centro de tudo
e aonde o paraíso?

e o mar foi-me levando
divaguei
e o paraíso
sempre imperfeito
à distância
e a vida inteira cheia de distância
e tudo o que a distância desprendeu

mas algo fica do que já não coube
e a isso chama-se a vida por contar
e tudo conta na vida
a casa de Frederico
a biblioteca
o jardim
a expressão do olhar de S. Filipe

Quatro a começar com S

I

é nos dias de chuva
que penso mais em ti
o calor
muito sol
tempo de praia
deixavam-te impaciente
– clima para infiéis
dizias

com o frio era pior
ficavas quieta
e um pouco mais pequena

e depois vinha a chuva

era a altura das árvores incharem
os montes que se viam da janela
pareciam dromedários a dormir

e então tu querias ver
o teu perfil
ficava encastoado na vidraça
atento ao gotejar no parapeito
ao horizonte
a esfumar-se em teu bafo
e assim
permanecias
vais ficando
uma orla marejada
e um rol de coisas
vindas
à memória

Dois poemas de Luís Amorim de Sousa

de um despertar solitário

a pouco e pouco me vou recuperando

de um já remoto não sei bem o quê
sobeja-me esta incómoda agonia
esta vontade muito renitente
esta pequena angústia hermafrodita
de despertar sem ti para outro ciclo
toda uma direcção inconsequente 

                                             gestos e coisas nesta claridade
                                            ganham coordenação e humildade 

ergo-me a medo como quem se inventa

o dia longo   fértil    agressivo
é todo o espaço de um sorriso alvar
a sublimar o vómito eminente 

devagar
chego-me ao espelho distraídamente
penso nos versos que ainda não escrevi
e no jeito imprudente de me olhar
algo de vergonhoso me diz que te perdi 

Nada, Kentucky

no estado americano de Kentucky
há um sítio chamado Nada 

nunca fui    nunca lá estive

nunca cheguei a saber
nada de Nada

Luís Amorim de Sousa, O Cabo dos Trabalhos

trabalhos capa.jpg

Luís Amorim de Sousa

O Cabo dos Trabalhos

memórias, autobiografia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2020, 148 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

12€


 

Estava eu a concluir o meu sétimo ano dos liceus quando uma crise familiar me levou a decidir ir à procura de emprego. 

– Vou trabalhar! – anunciei à família, no tom de quem declara: “vou para a guerra!” 

– Trabalhar? E os exames? – perguntaram os meus pais. 

– Faço-os por mim. – respondi. 

– Mas podes? 

– Posso. 

– Podes mesmo? De certeza? 

– Absoluta! 

– Então, sendo assim, está bem. 

Como isto se passava na Lourenço Marques dos anos cinquenta, procurar emprego resumiu-se a um telefonema. Um primo da minha mãe, Carlos Morais de Azevedo, parente próximo e razoavelmente lá de casa, detinha um cargo importante na Fazenda e prontificou-se logo a dar um jeito. De uma semana para a outra estava o assunto tratado: aspirante a oficial no quadro interino do Almoxarifado de Fazenda, com o ordenado mensal de três mil escudos. Era pegar ou largar. Peguei com gula. Três contos era dinheiro. E poucos dias depois, com as papeladas em ordem, lá fui eu de risca ao lado, apresentar-me ao serviço. 

 

Luís Amorim de Sousa

Luís Amorim de Sousa nasceu em Angola em 1937. Passou a infância em Lisboa e adolescência na capital colonial de Moçambique, que trocou pela vida em liberdade e as ofertas culturais de Londres no despertar da década de 60. Ingressou na BBC e desde então, e até atingir a idade da reforma viveu sempre no estrangeiro com uma longa permanência em Washington DC, onde exerceu o cargo de Conselheiro de Imprensa junto da Embaixada de Portugal. No mesmo cargo, foi colocado em Brasília e, a seu pedido, transferido para Londres onde atingiu a reforma. Regressou a Portugal e vive actualmente em Oxford. O Cabo dos Trabalhos é um aceno a Moçambique e assinala o começo de uma vida marcada por presenças e distância.

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