Vitimização, ressentimento e tradução

 

I

Nunca o Planeta foi tão humanamente ruidoso, porque somos imensos e porque não conseguimos ficar em silêncio a pensar e a imaginar antes de agir. Parece que o ser humano se compraz em gritar, não isto ou aquilo, mas contra quem quer que não partilhe a sua opinião. Na guerra que está em curso no Médio Oriente, claro, mas também nas eleições polacas, na invasão da Ucrânia pela Rússia, no choque entre os grandes blocos geopolíticos dos USA e da China, no sentimento anti-imigrantes europeu e no anti-europeu africano, a norte como a sul do deserto do Sáara, nas igrejas políticas dos extremos, esquerda e direita... Vivemos num paroxismo de ódio e raiva, numa vertigem de vingança. Chegamos, como Nietzsche temia, a num niilismo que se alimenta de dois sentimentos (mistura de instinto e de socialização): ressentimento e vitimização. Daí que a fúria, directa ou vicariante, se tenha sobreposto à razão (a parte boa da razão apolínea). Daí que os argumentos sejam escrutinados pela bitola da superioridade moral mais do que pela da coerência interna ou consistência pragmática.

Parece-me, pois, que devemos de traduzir de outra forma os nossos desejos e emoções, traduzir também as nossas palavras interiores, as que se seguem imediatamente aos impulsos mais básicos e que tantas vezes nos empurram para a crueldade, para uma falha grosseira de empatia ou uma empatia selectiva. Trata-se de nos interpretarmos para preservarmos a nossa humanidade e a humanidade do outro (essencial para a nossa).  Mais do que gritar convicções, devemos de traduzi-las, interpretá-las e compreendê-las, talvez para as anular, antes de as lançar ao vento, que tantas vezes as vira contra nós. E àqueles que julgam que os problemas da injustiça se resolvem através da crueldade, é preciso dizer-lhes que nenhuma liberdade ou emancipação se ganhou alguma vez através da ignomínia. Que devemos sempre conduzir-nos como guardiões da humanidade, de uma humanidade partilhada.

Reativemos, pois, o bom ceticismo, sem cair na indiferença. Sejamos capazes, por exemplo, de condenar energicamente os assassinatos perpetrados pelo Hamas (contra israelitas e palestinianos divergentes da sua causa), mas questionar também o contexto geopolítico que não permite uma paz estável entre israelitas e palestinianos (parto do princípio de que o Médio Oriente está cevado por um mal que é banal, seguindo a interpretação de Hannah Arendt). Uma crítica equidistante à procura de uma paz perpétua.

Que tem isto que ver com o mundo da tradução? Senão tudo, pelo menos muita coisa. Se entendermos a tradução como está postulada em Depois de Babel de George Steiner: «a tradução está, formal e pragmaticamente, implícita em todo o acto de comunicação, na emissão e na recepção de todos os modos de sentido, tanto no sentido semiótico mais amplo como nas trocas mais especificamente verbais. Compreender é decifrar. Entender uma significação é traduzir.»[1] Resta, pois, perceber como entende Steiner a tradução, concordar ou não com ele é outra questão. Será essa a finalidade das próximas duas páginas, apresentando desde já uma constatação: não há traduções literais, nem de obras nem de impulsos ou instintos, só através de várias e irredutíveis circunvoluções chegamos a produzir um sentido de chegada que nunca é idêntico ao sentido de partida, seja o pré-reflexivo dos instintos seja o da obra original.

II

Regressei, por caminhos que se me impuseram mais do que escolhi, a Antígonas de George Steiner.[2] Costumo deixar um rasto no que leio, sobretudo quando são ensaios, porque receio perder as marcas de inteligência, interessa-me menos compor uma erudição, útil ou fútil. Foi, por isso, fácil encontrar o que julgava procurar (a leitura de Steiner sobre teoria da tragédia do jovem Friedrich Nietzsche) e surpreendente descobrir apontamentos sobre o problema da tradução que, entretanto, tinha esquecido (até porque a principal obra de Steiner acerca deste tema é Depois de Babel).

Há uns meses, em conversa com Marcos Foz, na livraria Snob, disse, acerca de uma tradução em concreto, que o tradutor quisera evidenciar uma mestria exagerada, que dessa forma já não sabia se leria o autor ou o tradutor, que preferia as traduções nas quais quase não se notava a presença do tradutor.

Na me recordo se Marcos Foz anuiu, creio que o enunciado não diluía a minha responsabilidade nem procurava argumentos que confirmassem ou infirmassem aquilo que dissera. Talvez por ter sido mais uma intuição do que uma reflexão. Uma daquelas boas fulgurações em que emerge, e nos submerge, um sentido que não esperávamos, verdade relâmpago.

Neste meu retorno (será eterno?) a Steiner, encontrei aquela mesma verdade envolta em argumentos (sempre mais sintéticos do que analíticos, neste pensador). E senti uma alegre-tristeza ao ver que não estava só (como o génio ou como o louco, talvez o génio-louco).[3] Será um pouco isto, creio, que se sentirá no mundo das ideias (não o de Platão, mas o imanente no qual vivem, com todos os esplendores e melancolias que se possam imaginar, os amigos dos conceitos e das metáforas). Plagiar involuntariamente dá-nos a medida da nossa comensurabilidade colectiva, de uma filogénese das ideias, dos limites, afinal estreitos, da genialidade. Genialidade que o romantismo oitocentista, obcecado pelo intempestivo e pelo sublime, compreendeu, talvez sem se aperceber da contradição, como dever de emancipação, fatalidade e liberdade (naquela época, os génios inventavam mundos investidos de um poder sobre-humano que verdadeiramente não lhes pertencia, emancipavam os homens impelidos por forças que se tinham apoderado deles. Faziam, assim, demasiadas rasantes à vertigem da loucura e não tinham coração para viver muitos anos, mas sabiam pairar sobre os abismos).

Hoje, não há génios, porque ninguém acredita neles (esquecemos a teologia das alturas rochosas), as nossas aventuras são modestas (porque indigentes, escrevemos manifestos sem dentes), apesar da bazófia do marketing. Um racionalismo plano, redondo e as vagas sucessivas do capitalismo (ui, afinal também sou anticapitalista) afogaram todas as possibilidades de grandeza (que seria sempre a de um semi-Ícaro, ou melhor, a de crentes em semi-Ícaros).

Fazemos, pois, pequenas coisas e vivemos muitos anos. Muitos anos com poucas ideias e seguros de vida caros. É talvez por isso que escolhemos um eterno retorno que rebaixa (em Nietzsche eleva, mesmo que abra as portas das trevas, não fica é a meio caminho, no banal e irrelevante confortáveis), não avançamos, preferimos os resíduos do passado que já conhecemos. Somos a civilização da ruminação. Queremos futuro, não o nego, mas já não aguentamos os abismos que vêm com ele. Desejamos amanhãs previsíveis, quando eles faltam regressamos ao passado (embora viciados numa ideia ingénua de progresso).

Mas voltar a Steiner não é bem a mesma coisa do que retornar ao conhecido. Com ele, no mínimo, ganhamos balanço para entrarmos com mais força e mais temeridade no desconhecido. Sem muito controlo mas com grande júbilo. E no máximo descobrimos que, afinal, não o tínhamos lido bem, regressamos a ele para descobrir o novo. Até porque, como é tantas vezes evidente, «A leitura nunca é estática. O sentido é sempre móvel.» (Steiner: Antigonas, 245)

Antes de citar a ideia que plagiei involuntariamente, há mais duas notas sobre a arte de levar de um lado para outro o pensamento e a sensibilidade, uma arte (uso o termo «arte» para realçar que não há um método exemplar para o processo de tradução) fundamental para o espírito: «Sem a tradução, as nossas iniciativas de espírito e forma rapidamente se perderiam num regresso à inércia.» (Idem, 246) Primeira nota, «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (Idem, 247) Segunda nota, as traduções são «produtos de uma densa herança histórica. Chegam muito depois. Estejam ou não explicitamente conscientes do facto, a acumulação das edições, exegeses, encenações e leituras críticas anteriores age[m] sobre a maneira que é a da sua compreensão.» (Idem, 250-51)

Agora, a ideia plagiada. Steiner começa por dizer que «A grande maioria das traduções são más. São imprecisas, frouxas, redundantes, estilística e conceptualmente deficientes, e complacentes com o erro.» (Idem, 247) Mas o pior está nas traduções maiores, nas palavras de Steiner: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem, 248) No segundo prefácio a Depois de Babel (1992) inserirá isto no campo mais vasto da «transfiguração», uma «questão moral» decisiva: «em que o peso e a irradiação intrínsecas da tradução eclipsam os da origem». (p. 20)

Assim, o tradutor — de si, do mundo e de livros — trai e recria. A linguagem traduz sempre imperfeitamente, mas é desta imperfeição, e só dela, que emerge o humano.

[1] Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa; Relógio D’Água, 2002 [1975, 1992, 1998], p. 16.
[2] Antígonas. A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água 1995 [1984].
[3] Acabo de surpreender, no The Guardian, Killian Fox a dizer «I hate Reading books where you find your own opinion confirmed.» A propósito, imagine-se, de um Antigone’s Parallax, livro da filósofa eslovena Alenka Zuancic.

mil pesetas

Para a Jillian Saucier 

1.

mil pesetas
mil pesetas espanholas
qualquer coisa
como seis euros hoje 

2.

o dinheiro é a coisa mais suja do mundo
digo-te eu enquanto atravessamos
aquele parque onde a primavera
parece estar sempre
prestes a começar 

o dinheiro é a coisa
mais limpa do mundo
dizes tu
e lava tudo 

não, é sujo, insisto eu
mesmo ao manusear uma moeda
sabes que ficaste com as mãos sujas
e sempre que uma te cai nas mãos
trocaste por ela qualquer coisa sem preço 

mas pode ser reconhecimento dizes tu
mas pode ser um reconhecimento continuo eu 

mas como reconhecimento
é a coisa mais fria do mundo
a minha primeira moeda
de cem escudos
e a tua primeira nota de um dólar
talvez tenham sido a nossa
primeira lição
em egoísmo e medo de viver 

é belo o dinheiro, dizes tu
faz o mundo girar 

é feio, respondo eu
como fim
e muitas vezes como meio

3.

natalia ginzburg tinha razão
é preciso ensinar as crianças
a ter desprezo pelo dinheiro
ganhá-lo para o gastar
gastá-lo como coisa
muito subserviente
a uma arte de viver 

4.

uma nota de mil pesetas espanholas
com a cara de benito pérez galdós
datada de 1979
impressa em madrid
na misteriosa caixa de dinheiro estrangeiro
da minha mãe
entre algumas libras inglesas
e moedas de um país do leste da europa
difícil de identificar
naquela casa pequeníssima
com um jardim obsessivamente cultivado
onde às vezes as árvores de fruto falhavam
misteriosamente
dionisicamente
dando ou não frutos
consoante assim o entendiam
onde tantas vezes não havia
dinheiro para comer  

e onde ela foi vertiginosamente adoecendo
até ser uma mulher que já não viajava
que acreditava que o mundo
era um lugar que não valia a pena visitar
o sítio onde um filho primogénito talvez
nascido por volta desse ano de 1979
repousa para sempre sem lápide
entre as austeras campas de tijolo
caiado de branco
dos avós e dos tios-avós 

mas também o sítio onde não sei como
três filhas não morreram de fome
e talvez não tenham enlouquecido 

o dinheiro diante da pobreza
devia mesmo ser
como a poesia diante da morte, jillian 

5.

mil pesetas espanholas da década de ‘80
são muito melhores do que mil pesetas espanholas
da década de ‘90 

digo isto apenas
porque acho a cara de benito pérez galdós
que está impressa numa
bastante mais tolerável do que a cara
de hernán cortés na outra 

6.

não sei como se expressava
a soma de mil pesetas espanholas
naqueles dias do final de agosto de 1936
em granada
isto é não sei que notas ou moedas
seriam necessárias para perfazer essa quantia
que no valor relativo de hoje
seria qualquer coisa
como quinze mil euros 

mas tenho a certeza
que isabel roldán
prima de federico garcía-lorca
e que angela cordobilla
a empregada na casa
de manuel fernandéz-montesinos
(cunhado de lorca
executado poucos dias antes dele)
que levou a lorca comida e roupa
todos os dias
enquanto ele esteve preso
no governo civil
se lembrariam 

porque é a soma que ambas recordam
com uma raiva indignada
vir pedida como doação
para a causa nacionalista na carta
que o pai de lorca recebeu
das mãos de um guarda
em calle de san antón
lavrada na letra do filho
que se despede dele com amor 

ian gibson
biógrafo de lorca
especula que quase sem dúvida
foi esta a última coisa
que lorca escreveu neste mundo 

e isabel roldán recorda
como não teve coragem
de dizer ao pai
para não doar aquele dinheiro
porque ela sabia
mas ele ainda não
que aqueles homens
que agora lhe extorquiam doações
três ou quatro dias antes
tinham levado o filho
um pouco para fora da cidade
e entre as oliveiras
em fuente grande
tinham sido eles
quem o tinha assassinado

Oxford, 30 de Julho de 2023

Crítica Cultural

Usarei a enunciação «crítico da cultura» devido à incapacidade (impossibilidade?) de encontrar outro sintagma para definir aqueles que formal ou informalmente diagnosticam, avaliam e propõem uma cura para a cultura (aqui sinónimo de cultura erudita). Seguindo Friedrich Nietzsche, o crítico da cultura será um médico da cultura.

A produção e circulação de informação tem-se deslocado da imprensa, rádio e televisão, com trabalhadores por «conta de outrem», para uma pletórica produção de conteúdos transmitidos, por vezes ao acaso (sem um público-alvo definido), nas redes sociais. Multiplicaram-se, pois, os críticos da cultura, muitos deles com uma produção descontínua, efémera e até única. Mas a disseminação dos críticos e das críticas, num caos que parece criar uma pan-estimulação avassaladora, capaz de sufocar qualquer leitor que arrisque ceder ao apelo deste abismo (vertigem do scrolling), acaba por ser organizada em bolhas. Os grupos de «amigos», «seguidores» e «leitores» selecionam, com critérios que não cabem num pequeno catálogo, os «seus» críticos, que seguem de forma mais ou menos intensa. Há seguidores fanáticos, outros indiferentes, outros escrutinadores, alguns, poucos, por óbvia contradição nos termos e nas atitudes, críticos. Tudo dentro da lógica agónica que compõe uma parcela essencial das redes sociais digitais: os conteúdos devem gerar atração ou aversão, nunca indiferença, e devem fazê-lo em torno de no máximo dez preconceitos.

E o que faz esta legião de críticos da cultura (nos restos de uma pós-modernidade que se quer mais performativa do que explicativa)? Fundamentalmente duas coisas: 1- enaltece e engrandece qualquer acontecimento (cinema, teatro, literatura…) no qual participe, à semelhança de um dos síndromas de férias mais recorrentes: não se diz mal do que experienciamos, pois isso iria desvalorizar-nos; 2- desconsidera quase tudo o que se faz fora do seu círculo existencial, a partir de critérios que não se dão ao trabalho de desocultar, a linguagem é muitas vezes de combate físico e os ataques são sobretudo ad hominem. Estão sedentos do infortúnio dos outros. Esta maledicência seria irrelevante se a imprensa de «referência», a rádio ou a televisão públicas, sobretudo o Canal 2, contrabalançassem este histrionismo, espontaneamente maldoso ou bondoso, com documentos, em vários suportes, que descrevessem e avaliassem, com o devido rigor, atividades e produtos da cultura erudita. Não é o caso, salvo honrosas excepções (Ípsilon, Nada Será como Dante, revista Electra, Pedro Mexia no Expresso, por vezes o Jornal de Letras… esqueço-me certamente de algumas, mas não serão muitas), temos uma incipiente crítica cultural efectiva, talvez também porque a nossa cultura é pouco vibrante e lhe falta um público.

Não me querendo alongar no «falta um público», creio que não temos críticos, a exercer realmente essa tarefa sem os códigos demasiado fenomenológicos (mesmo quando parecem só gostar de hermenêutica) da Universidade, que além de observar e catalogar quisessem também avaliar aquilo que se faz a partir de um patamar que os colocasse ao nível e acima da obra. Ao «nível» para compreender as suas linhas de força próprias. «Acima» para enquadrar a obra no ecossistema de que actualmente faz parte e projetar, com as justas temeridade e ousadia, como visionários, as forças que emergirão no seu ciclo de vida (dependendo tanto de si como dos leitores, de hoje e de amanhã). Bem longe, portanto, de ou fazer um retrato ditirâmbico, ou queimá-la numa fogueira da santa inquisição do gosto subjectivo (redes sociais). Mas evite-se também o rigor mortis (Universidade).

Tal não significa que o mundo da cultura seja o mundo das delícias. O culto ascético da perfeição indispõe os criadores para a fraternidade ou sequer a tolerância do outro, mais azarado ou mais genial. Não há, com as excepções que tantas vezes destroem a beleza dos imperativos categóricos, trabalho colaborativo na cultura erudita, mesmo quando é necessário colaborar para apresentar um produto final (por exemplo, no teatro, ou na música sinfónica). Mesmo se é verdade que a «ansiedade da influência», como a entende Harold Bloom, nos revela que ainda que os criadores desejem ser um «Adão logo pela manhã», «Não pode haver escrita forte, canónica, fora do processo de influência literária.» (O Cânone Ocidental, Temas e Debates, 2012, 20). Certo, mas isto é um processo de apropriação cultural (uso o termo fora do movimento de hipersensibilidade Woke), uma apropriação oportunista, parasitária muitas vezes. E não um processo de colaboração criadora.

Bem sei que Bloom, como qualquer um que se atreva a fazer um cânone artístico, teve uma boa dose de incriminações, que hoje não está sequer no campo do «talvez seja recomendável». Mas ele é um modelo de crítico da cultura. O que fez para a literatura, o estudo denso e profundo de 26 escritores (incluindo Fernando Pessoa, relembre-se), serve de modelo (sendo que um modelo não se imita, inspira-nos) para outras áreas. Não são 26 escritores isolados, apesar de serem únicos, mas que se influenciaram (Shakespeare é a grande fonte, «escreveu a melhor prosa e a melhor poesia da tradição ocidental», idem, 23), muitas vezes agonicamente, de forma que cada um atingisse as suas máximas individualidade e grandeza. Cito-o novamente: «As nossas instituições condenam a competição tanto na literatura como na vida, mas o estético e o agonístico são uma única coisa, como nos é dito por todos os antigos gregos e por Burckhardt e Nietzsche, que recuperaram esta verdade.» (idem, 18). Tentemos fazer um pouco aquilo que ele fez, à nossa medida, a partir dos nossos possíveis (por vezes tão acanhados). 

É verdade que há um conjunto de críticos portugueses que cumprem perfeitamente uma parte do trabalho de Harold Bloom, mas de uma forma ou de outra estão demasiado condicionados por funções e estilos académicos, fazendo avaliações neutras, esgotando-se nas descrições (por mais interessantes que sejam). À medida que o mundo da crítica foi sendo preenchido pelos professores universitários as críticas afastaram-se da vida. Os bisturis analíticos apresentam a cultura, naturalmente orgânica, como pouco vivível para os espectadores. Ainda assim, quero citar alguns, e nem todos cabem na figura do curandeiro desastrado por excesso de diagnóstico: António Guerreiro, Augusto M. Seabra, Eduardo Coelho, Eduardo Lourenço, Jacinto Prado Coelho, João Bénard da Costa, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Jorge de Sena, Jorge Leitão Ramos, José Augusto França, Lauro António, Vasco Câmara… [Acrescento sugerido por Tatiana Faia: Agustina Bess-Luís, Rosa Maria Martelo e Maria Irene Ramalho]. [Acrescento meu: José Gil, Diogo Ramada Curto].

Tradução literal

Terminei há pouco a tradução de O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche, um livro que coloca imensos problemas de tradução, porque é de Nietzsche, porque é em alemão (uma língua e uma cultura mais afastada da nossa do que, por exemplo, a francesa, inglesa ou espanhola) e porque é de 1872. Por isso, faz sentido pensar com vocês sobre se é possível, e desejável, desenvolver uma metodologia que tornasse as traduções menos dependentes do talento e das convicções individuais do tradutor. Algo, aliás, que talvez esteja contido na sugestão, que se tornou quase lei, de traduzir literalmente. Por outro lado, nalguns aspectos, parece que desaprendi uma certa arte de traduzir que tinha como designo pessoal quando escrevi em 2014 um texto para a Enfermaria 6 sobre o traduttore traditore.

Neste mini-ensaio, em parte presente na nova tradução de O Nascimento da Tragédia, direi por que razão julgo que as traduções não podem ser literais. Sendo, pois, sempre mais o resultado de um gesto artístico do que metodológico.

Guio-me metodologicamente pelo princípio, um pouco a contrapelo de uma nova escolástica, de que se a preocupação com a literalidade do que traduzimos está no início da nossa ação, ela não estará, contudo, no fim. Isto é, devemos pretender fazer uma tradução literal, sabendo, porém, que é impossível levá-la a cabo. Fundamental e incontornavelmente porque passamos significados e sentidos de uma língua e, igualmente importante, de uma cultura para outra. Podemos aplicar à tradução aquilo que Pierre Hadot diz do filosofar: «filosofamos sempre no interior de um jogo de linguagem, ou seja, para retomar a expressão de Wittgenstein, no seio de uma atitude e de uma forma de vida que doam sentido ao nosso discurso».[1] Por isso, como referem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e John Austin (1911-60), com terminologias diferentes, o significado é dado pelo uso. Sabemos, assim, o quão difícil é traduzir, e nunca literalmente, palavras (e muito mais do que isso, algumas são autênticas visões do mundo) como «Dasein», «garde-fou», «underdog, ou sencillo (bem sei, «simples», mas…).

Não nos esqueçamos que o termo latino translatio tinha originalmente o significado de «transporte», ou de «transferência de dinheiro entre bancos», mas também de «enxerto botânico», ou «desenvolvimento de um campo metafórico». Será isto que leva Umberto Eco (1932-2016), em Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione[2] (Dizer Quase a Mesma Coisa) à ideia de negociação, como se faz no uso quotidiano da língua.

Desde modo, talvez George Steiner (1929-2020) não tenha razão ao defender, em After Babel (Depois de Babel), que a boa tradução escreve na língua de chegada aquilo que o autor teria dito se a falasse.[3] Prefiro, sem minar a inteligibilidade, levar o leitor ao texto original, como defendia Schleiermacher,[4]  em vez de o autor à cultura e à língua de chegada, Por outro lado, recupero de Jean-Paul Sartre, mitigando um pouco a posição de Schleiermacher, a ideia de que as línguas não são códigos abstratos, elas devem ser subjetivadas: «[S]aber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua, tal como a definem os dicionários e as gramáticas académicas: é fazê-la nossa através das deformações e seleção regionais, profissionais e familiares.»[5]

Talvez por isso, Jacques Derrida, em O Monolinguismo do Outro, diga que «Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível[6] Fernanda Bernardo, a nossa principal tradutora de Derrida, sintetiza o problema da tradução como um desafio permanente, «um compromisso possível, mas também sempre irremediavelmente imperfeito entre dois idiomas […] partidários que somos de traduções fidelíssimas na sua inevitável infidelidade».[7] Permito-me subscrever aquilo que diz esta filósofa.

[1] Exercices spirituels et philosophie antique. (Paris: Albin Michel, 2002), 368.
[2] Milão: Bompiani, 2003.
[3] Cf. Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução. Trad. Miguel Serras Pereira (Lisboa: Relógio D’Água, 2002), 376–77.
[4] Cf. Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. Trad. notas e apresentação de José Miranda Justo (Porto: Elementos do Sudoeste, 2003).
[5] O Ser e o Nada. Trad., prefácio e notas de Victor Gonçalves (Lisboa: Edições 70 1022 [1943]), p. 614.
[6] Citado por Fernanda Bernardo, «Nota sobre a Edição e Tradução Portuguesa», in Jacques Derrida, Vadios (Coimbra: Palimage, 2009), p. 13.
[7] Idem, pp. 13‑14, 17.

Édipo revisitado

Rei Édipo em Convent Garden, Encenação de Max Reinhardt, 1912

Este ano o Festival de Atenas e Epidauro encerrou com uma representação do Rei Édipo de Sófocles, levada a cena pelo actor e dramaturgo grego Simos Kakalas. Talvez poucos sítios sejam tão propícios para encenar esta tragédia como Epidauro e não apenas porque para se chegar de Atenas a Epidauro se passa pelo lugar onde no mito Édipo cresce, Corinto. Há qualquer coisa de muito comovente em saber que o complexo arqueológico de que o teatro de Epidauro faz parte era na antiguidade um santuário dedicado ao deus Asclépio e que assistir a representações teatrais era parte da terapia. Talvez em nenhum sítio arqueológico como ali pareça tão visível que os gregos intuíram a existência do subconsciente e a sua força (sobre isto vale a pena revisitar o livro de E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational). Numa das inscrições deixadas no santuário por um dos pacientes ele agradece a Asclépio ter-lhe enviado o sonho que o curou. 

Em Epidauro, então, o anfiteatro está rodeado pelo parque arqueológico, que não sendo visitado de noite, não possui iluminação visível. Um dos aspectos mais marcantes de ver uma peça neste espaço é o de que, à medida que a noite cai (as peças tendem a ser representadas a partir das 21.00), o horizonte fica imerso no escuro, o único ponto de luz que se avista da plateia é o palco. De todos os dramas gregos aquele que é definitivamente sobre escuridão é o Rei Édipo de Sófocles. É isso que ver esta peça no mais bem preservado dos teatros do mundo antigo lembra. Na verdade, é um texto sobre diferentes camadas de escuridão: a que vem do passado, do desconhecimento da própria história, e finalmente a que advém de um conhecimento absoluto de uma verdade que, literalmente, faz com que Édipo se cegue no desenlace. É, em certa medida, uma peça sobre a violência implacável do mais ambivalente dos deuses gregos, Apolo, responsável pela peste que assola Tebas e que não a deixa desaparecer até que o assassino de Laio seja descoberto. Nenhum deus dos gregos é capaz de tanta harmonia e tanta crueldade como Apolo. Em 1983 Bernard M. W. Knox publicou a sua leitura existencialista do teatro de Sófocles, The Heroic Temper: Studies in Sophoclean Tragedy, que é também um estudo do desenvolvimento da ideia de protagonista no teatro antigo. Knox nota a dada altura que em nenhum dos tragediógrafos os deuses são tão cruéis como em Sófocles. Penso que isto é muito verdade.

Oliver Taplin escreveu, na introdução à sua tradução do texto (publicada pela Oxford World Classics em 2015, Oedipus the King and Other Tragedies), que a peça é um castelo de cartas. É uma boa imagem. Rei Édipo é uma tragédia, em parte, sobre a instabilidade da sorte, sobre a vertigem do seu lado ascendente e da descida. Quando, primeiro em A Interpretação dos Sonhos e, em menor escala, em Totem e Tabu, Freud teoriza sobre Édipo, é sobre a profundidade do desejo humano, do seu papel na formação de uma personalidade, e também sobre a violência do subconsciente que ele está a falar. Na verdade, não acredito que haja uma audiência contemporânea que consiga ver Rei Édipo completamente fora da sombra da leitura de Freud. E a figura continua a ser relevante para lá desse momento na história da sua interpetração. Depois de Freud e Lacan, Deleuze e Guattari revisitariam Édipo (em o Anti-Édipo) à luz de um sistema capitalista, observando o quanto ele é problemático se visto, ao mesmo tempo, enquanto figura estrutural e imaginária.

A leitura que Freud faz de Sófocles foi bastante atacada por classicistas. Destas leituras talvez a mais influente seja a de Jean-Pierre Vernant (em “Édipo sem complexo,” um texto publicado em 1972 no livro Mythe et Tragédie em Grèce Ancienne), que ataca a argumentação de Freud a partir da ideia de que ela não é correcta do ponto de vista da psicologia histórica, mas sabemos hoje que Freud compreendia mais da cultura teatral ateniense do que aquilo que outrora se pensou. Vale a pena lembrar que o excerto de grego antigo que Freud traduz no exame de admissão à universidade é um excerto do Édipo de Sófocles.

De outro modo, aspectos biográficos não são irrelevantes para pensar o que Édipo significava para Sófocles e o que ele significava para Freud. Alguns classicistas que estudaram esta peça e que especulam que ela data da década de 30 do séc. V a.C. acreditam que, além da peste ser uma alusão à epidemia que dizima uma parte da população de Atenas nessa década, o quanto o texto está obcecado com a relação entre hereditariedade e o estatuto de Édipo enquanto rei de Tebas (o termo normalmente traduzido por rei é uma má tradução da palavra por que ele é nomeado no grego, tyrannos, que, ao contrário do outro termo para rei, basileus, pressupõe que ele não tinha herdado o trono por via hereditária, mas tyrannos não possuía para os gregos a ressonância negativa que tem hoje) reflecte um problema político da própria Atenas, o facto de que Péricles, o principal estadista ateniense da época clássica, perdera o único filho legítimo para a peste e adopta, na sequência, o filho ilegítimo que tinha com Aspásia, a sua amante estrangeira, para que ele se pudesse tornar cidadão da polis. Estudiosos de Freud, por outro lado, especulam que ele talvez nunca tivesse pensado no Édipo como um dos mitos arquetípicos do desejo e da perversão humanas se não tivesse um meio-irmão (filho de outra mãe) com uma idade extremamente próxima, como seria o caso de Édipo com Jocasta, da sua própria mãe.

Édipo é então uma peça sobre diferentes camadas de escuridão e por isso também sobre o que do passado regressa dessa escuridão, exige ser interrogado e resolvido porque, como nota o coro no início da tragédia, uma epidemia assola a cidade, enviada por Apolo por causa do homicídio do rei anterior, e é preciso encontrar o criminoso que sobre ela trouxe a maldição do deus. Certeza e auto-confiança, desorientação, paranoia, e finalmente o terror da catástrofe são o espectro de emoções que Édipo percorre à medida que a tragédia avança. De todas as personagens trágicas nenhuma demonstra tão perfeitamente como Édipo, no corpo e no caminho que o vimos percorrer, um fragmento de um outro verso de uma tragédia perdida de Ésquilo, aquele em que Aquiles diz que se sente como a águia que vê que a seta que o trespassa tem por adorno uma pena da própria asa.  É este, no fundo, o resumo mais eficaz do enredo da peça.

Aristóteles devia amar esta tragédia e considerava-a o exemplo mais perfeito de uma tragédia grega e isso talvez seja porque a sua progressão é tão lógica quanto um silogismo. O mesmo talvez não possa ser dito do sentimento que os atenienses contemporâneos de Sófocles experimentaram ao vê-la. Qualquer coisa nela os deve ter inquietado, e talvez irritado, profundamente. Sabemos que de todas as peças de Sófocles esta é a única que não vence o primeiro prémio no festival das Dionísias. O mito de Édipo estava, de outro modo, bem estabelecido no imaginário ateniense e helénico. Em 467 a.C. Ésquilo levara a cena uma trilogia cujo tema é o mito de Édipo (as tragédias que compunham essa trilogia eram Laio, Édipo e a única peça que se conservou, Sete contra Tebas, o epílogo era um drama satírico intitulado Esfinge) e antes disso havia um poema épico, Edipódia, dedicado a Édipo.

No imaginário moderno a peça é tabu durante bastantes séculos. Datará do Renascimento a ideia, talvez mal concebida, de que ela é sobre hamartia, um erro trágico, o que tende a enfatizar a responsabilidade moral e a hybris de Édipo, mas o que ele tenta fazer ao sair de Corinto é evitar aquilo que conhece do seu destino, com o conhecimento do futuro que lhe é dado por Apolo, o que leva Jean-Pierre Vernant a dizer, contra Freud, e talvez não inteiramente em erro, que Édipo não sofre do complexo de Édipo. Rei Édipo, nesse sentido, é uma peça em grande parte sobre a impossibilidade de controlar o destino, sobre o papel da sorte na possibilidade de viver uma vida bem-vivida. Talvez Aristóteles esteja de facto certo sobre a peça ser sobre catarse, sobre a passagem através do fogo de uma destruição irreparável para a sua terrível aceitação, e também sobre aquilo que o amigo que foi comigo ver a peça, o classicista (e ao contrário de mim de facto especialista em teatro antigo) Roberto Morales Salazar, descreveu como a necessidade de ir ao teatro para chorar.

É só nas duas últimas décadas do século XIX que a peça se torna popular, ao ser repetidamente representada em Paris pelo brilhante actor Jean Mounet-Sully, recordado por Stravinsky pela sua atenção maníaca a pormenores historicizantes. É decisivamente alicerçada no imaginário do modernismo inglês por volta de 1912, quando Max Reinhardt a encena em Convent Garden em Londres a partir de uma tradução do lendário classicista australiano Gilbert Murray, professor de grego em Oxford. É, no entanto, outra encenação de Édipo feita por Reinhardt, um pouco mais cedo em Berlim, a partir de uma versão de Hugo von Hoffmannstahl, em 1910 (na versão que sabemos que Freud viu, embora especulemos que terá também visto a de Sully), com cenário e coro monumentais, que mudam a história do teatro no Modernismo, e também a história da relação deste período com a tragédia grega. A escolha de actor principal, talvez demasiado jovem para representar o papel à data, Alexander Moissi, parece ter criado uma inesperada intensidade dramática. A figura de Édipo foi mais tarde revisitada por T.S. Eliot, Cocteau e André Gide, entre outros.

O desconforto que o Édipo de Sófocles nos causa é inversamente proporcional ao conforto causado pela progressão perfeita do seu edifício lógico: vemos com toda a ironia a catástrofe desenrolar-se à nossa frente, mas enquanto audiência estamos confortáveis porque está a fazer todo o sentido. Isto é muito grego. Mas ver Édipo é observar um cenário teatral a ser lentamente desmontado diante dos nossos olhos, o teatro da vida de um homem: Édipo, alguém capaz de uma violência sem limite, de matar um rei por uma ofensa numa encruzilhada, mas também o mesmo homem que fugira de casa em Corinto para evitar a profecia escutada em Delfos, que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. A peça começa com o que está à superfície, com um rei preocupado diante dos seus cidadãos, com uma história anterior de investigador bem sucedido (é afinal Édipo quem decifra o enigma da esfinge) e que agora tem de descobrir quem é o assassino do rei anterior, e camada sob camada vemos Édipo afundar-se até se converter noutra pessoa, vemo-lo mudar e mudar de novo com a presença de Jocasta e de Creonte, até chegarmos àquela cena em que ele sugere que o único escravo que testemunhou o homicídio de Laio seja torturado (a maior parte dos estudiosos da peça notam o quanto isto é aberrante, em toda a tragédia grega, tanto quanto me lembro, há apenas outra cena em que um escravo quase é torturado, no Orestes de Eurípides, pelo imaturo e desesperado Orestes).

Achei que havia na encenação de Simos Kakalas algumas intuições óptimas e algumas decisões difíceis de explicar. Por exemplo, o facto de que todo o elenco da peça está vestido de negro e de modo sóbrio comunica de um modo inteligente a atmosfera de antecipação assustada e de luto que caracteriza a psicologia do coro. E a entrada do coro em cena talvez tenha sido uma das melhores entradas de um coro trágico em cena que observei em muito tempo. Um a um os actores vestidos de negro foram entrando em palco, segurando cada um a sua máscara. Simples e belo. Por outro lado, as máscaras pareceram-me uma má escolha por mais do que um motivo, a começar pelo motivo prático do enorme desconforto que devem ter causado aos actores num calor de 40 graus. Kakalas comentou esta decisão dizendo que queria que as máscaras fossem todas iguais, e que todos os actores as usassem (incluindo creio que em certos pontos Creonte e Édipo que se juntam ao coro), para dar a noção de que todos no fundo são iguais dentro da hierarquia da peça, isto é, dentro do que ela significa, que nem um rei está a salvo de um golpe particularmente cruel do destino. Esta linha argumentativa a mim parece-me talvez ingénua. Uma grande parte da tensão que sustenta a peça é o facto de que Édipo é um autocrata há um longo tempo no poder e, como se vai ver na atitude que ele adopta perante o coro e sobretudo perante Creonte, o irmão de Jocasta de quem ele desconfia porque o vê como um rival, é o representante de uma sociedade extremamente hierarquizada, e alguém que não é inteiramente imune à paranoia que o desejo de se manter no poder normalmente inspira em quem está habituado a ter o controlo.

Édipo, não é, definitivamente, igual a toda a gente. E o seu infortúnio também não o torna igual aos outros, o segredo que explica a sua origem é um golpe particularmente cruel, poucas tragédias são tão cruéis para com a sua personagem principal quanto o enredo de Rei Édipo o é para Édipo. Não me parece que Édipo seja então uma peça cujo objectivo do seu imaginário moral seja o da humildade para fins de igualdade social perante a catástrofe, não sei de resto o que pode vir dessa ideia que não me pareça mesquinho ou opressor. Esta noção parece-me correr o risco de obscurecer o facto de que apesar de tudo é Édipo quem vê, e escolhe ver, a verdade que o destrói e que há nele a lucidez de tentar chegar a essa verdade, ainda que isto aconteça a partir de um lugar de poder e privilégio, o seu triunfo, a verdade que ele acaba por descobrir, é também a sua destruição. (Sófocles é o grande tragediógrafo das conquistas amargas.) Esta noção parece-me ainda reduzir Édipo de outra forma, a sua identidade não se circunscreve inteiramente ao golpe que o destrói e sabemos que isso é particularmente verdade para Sófocles, que regressaria à figura de Édipo na sua última obra-prima, o estranhíssimo Édipo em Colono, uma peça sobre um Édipo zangado que amaldiçoa Tebas e vem morrer à aldeia (subúrbio) de Atenas de onde o próprio Sófocles era oriundo. A polis ateniense, talvez disfarçada de Tebas para os propósitos de Sófocles, por outro lado era, como em certo sentido o é a sociedade ocidental em que vivemos, um lugar profundamente desigual, em nenhuma parte isso é tão visível nesta peça quanto na angústia do coro. Parece-me uma oportunidade desperdiçada mascarar – literalmente – isso.

As máscaras, que supostamente trariam igualdade porque são todas iguais, por outro lado, como comentava o amigo que viu comigo a peça, desumanizam o coro, que é talvez um dos coros mais humanos de toda a tragédia clássica: é um coro devastado por uma doença que paira sobre a cidade, que carrega consigo uma memória da história anterior de Tebas, que está preocupado com a sobrevivência da comunidade a que pertence e que em muitos sentidos é mais inteligente do que Édipo. É uma comunidade com vários rostos, com múltiplas vozes. O facto de que Kakalas resolveu que os seus autores não iam usar microfone no espaço do anfiteatro sabotou ainda mais o coro, o material das máscaras tornava difícil de ouvi-los e sabemos que não era esse o caso com o material de que eram feitas as máscaras na antiguidade, que ajudavam a amplificar o som. Mas cada encenador tem de resolver o que fazer com o seu coro e os coros da tragédia grega são normalmente difíceis de resolver. Podem ser uma enorme vantagem ou uma enorme desvantagem.

Por outro lado, agradou-me o actor que fazia de Édipo (Yannis Stankoglou), é difícil comunicar e sustentar a tensão entre segurança e poder absolutos e melancolia auto-destrutiva através da qual o tirano de Tebas acaba por entender, na difícil relação entre hereditariedade e identidade, o peso que a história da sua origem e o seu passado têm sobre o seu presente.

Desagradou-me, sem possibilidade de redenção, a escolha da actriz que fazia de Jocasta. Começou no facto de ela ter exactamente a mesma idade do actor que fazia de Édipo (também não me convence a opção mais tradicional de optar por uma actriz conspicuamente muito mais velha do que Édipo, segundo o que sugere a cronologia do mito haveria talvez uns quinze anos de diferença entre ambos), mas uma Jocasta que parece obviamente mais nova do que o filho é um problema que pode facilmente afundar toda uma produção desta tragédia (e teve para mim, sem dúvida, em certas cenas, um efeito cómico). Numa boa encenação de Édipo o centro da força dramática da tragédia repousa sobre Jocasta, a primeira grande onda de choque e terror que atinge a audiência chega através dela. Ela é mais velha e mais inteligente do que Édipo, ela entende muito antes o que ele não pode entender e ao contrário dele é incapaz de sobreviver à verdade que é colocada diante de si.

Tendo dito tudo isto, tinha-me esquecido da beleza de certos momentos do texto do Sófocles. Isto é particularmente verdade dos passos corais que se seguem às últimas saídas de Édipo de cena. Para mim continua a ser sempre um privilégio que não é bem deste mundo poder ver uma tragédia grega em Epidauro.

 

Oxford, 8-10 de Setembro de 2023

Rei Édipo, Encenação de Simos Kakalas, Festival de Teatro de Atenas e Epidauro, 2023