Café Filosófico, tradução e niilismo

Na sequência de um post publicado aqui sobre sobre tradução, vitimização e ressentimento, realizei um café filosófico, na livraria Snob, como sempre, no último sábado. Relativamente ao que escrevi na Enfermaria 6, acrescentei algum do pensamento de Paul Ricœur sobre o tema da tradução, que além de consolidar o de George Steiner traz a novidade de uma hospitalidade linguística, de uma ética da tradução que facilite o encontro entre estrangeiros, na maior parte dos casos entre o autor e o leitor. Depois procurei aplicar este princípio ao actual conflito do Médio Oriente, tentando perceber se estamos perante um incomensurável absoluto, ou não.

Errata: cometi pelo menos dois erros infantis: comecei por situar a Antígona de Sófocles no século XV, depois mudo para o século V, quando, como todos sabem, eu inclusive, que é do século V a.C. Há mais lapsos, imprecisões e falta de profundidade analítica e hermenêutica, sou humano, demasiado humano (e tenho horror à falsa modéstia).

Vitimização, ressentimento e tradução

 

I

Nunca o Planeta foi tão humanamente ruidoso, porque somos imensos e porque não conseguimos ficar em silêncio a pensar e a imaginar antes de agir. Parece que o ser humano se compraz em gritar, não isto ou aquilo, mas contra quem quer que não partilhe a sua opinião. Na guerra que está em curso no Médio Oriente, claro, mas também nas eleições polacas, na invasão da Ucrânia pela Rússia, no choque entre os grandes blocos geopolíticos dos USA e da China, no sentimento anti-imigrantes europeu e no anti-europeu africano, a norte como a sul do deserto do Sáara, nas igrejas políticas dos extremos, esquerda e direita... Vivemos num paroxismo de ódio e raiva, numa vertigem de vingança. Chegamos, como Nietzsche temia, a num niilismo que se alimenta de dois sentimentos (mistura de instinto e de socialização): ressentimento e vitimização. Daí que a fúria, directa ou vicariante, se tenha sobreposto à razão (a parte boa da razão apolínea). Daí que os argumentos sejam escrutinados pela bitola da superioridade moral mais do que pela da coerência interna ou consistência pragmática.

Parece-me, pois, que devemos de traduzir de outra forma os nossos desejos e emoções, traduzir também as nossas palavras interiores, as que se seguem imediatamente aos impulsos mais básicos e que tantas vezes nos empurram para a crueldade, para uma falha grosseira de empatia ou uma empatia selectiva. Trata-se de nos interpretarmos para preservarmos a nossa humanidade e a humanidade do outro (essencial para a nossa).  Mais do que gritar convicções, devemos de traduzi-las, interpretá-las e compreendê-las, talvez para as anular, antes de as lançar ao vento, que tantas vezes as vira contra nós. E àqueles que julgam que os problemas da injustiça se resolvem através da crueldade, é preciso dizer-lhes que nenhuma liberdade ou emancipação se ganhou alguma vez através da ignomínia. Que devemos sempre conduzir-nos como guardiões da humanidade, de uma humanidade partilhada.

Reativemos, pois, o bom ceticismo, sem cair na indiferença. Sejamos capazes, por exemplo, de condenar energicamente os assassinatos perpetrados pelo Hamas (contra israelitas e palestinianos divergentes da sua causa), mas questionar também o contexto geopolítico que não permite uma paz estável entre israelitas e palestinianos (parto do princípio de que o Médio Oriente está cevado por um mal que é banal, seguindo a interpretação de Hannah Arendt). Uma crítica equidistante à procura de uma paz perpétua.

Que tem isto que ver com o mundo da tradução? Senão tudo, pelo menos muita coisa. Se entendermos a tradução como está postulada em Depois de Babel de George Steiner: «a tradução está, formal e pragmaticamente, implícita em todo o acto de comunicação, na emissão e na recepção de todos os modos de sentido, tanto no sentido semiótico mais amplo como nas trocas mais especificamente verbais. Compreender é decifrar. Entender uma significação é traduzir.»[1] Resta, pois, perceber como entende Steiner a tradução, concordar ou não com ele é outra questão. Será essa a finalidade das próximas duas páginas, apresentando desde já uma constatação: não há traduções literais, nem de obras nem de impulsos ou instintos, só através de várias e irredutíveis circunvoluções chegamos a produzir um sentido de chegada que nunca é idêntico ao sentido de partida, seja o pré-reflexivo dos instintos seja o da obra original.

II

Regressei, por caminhos que se me impuseram mais do que escolhi, a Antígonas de George Steiner.[2] Costumo deixar um rasto no que leio, sobretudo quando são ensaios, porque receio perder as marcas de inteligência, interessa-me menos compor uma erudição, útil ou fútil. Foi, por isso, fácil encontrar o que julgava procurar (a leitura de Steiner sobre teoria da tragédia do jovem Friedrich Nietzsche) e surpreendente descobrir apontamentos sobre o problema da tradução que, entretanto, tinha esquecido (até porque a principal obra de Steiner acerca deste tema é Depois de Babel).

Há uns meses, em conversa com Marcos Foz, na livraria Snob, disse, acerca de uma tradução em concreto, que o tradutor quisera evidenciar uma mestria exagerada, que dessa forma já não sabia se leria o autor ou o tradutor, que preferia as traduções nas quais quase não se notava a presença do tradutor.

Na me recordo se Marcos Foz anuiu, creio que o enunciado não diluía a minha responsabilidade nem procurava argumentos que confirmassem ou infirmassem aquilo que dissera. Talvez por ter sido mais uma intuição do que uma reflexão. Uma daquelas boas fulgurações em que emerge, e nos submerge, um sentido que não esperávamos, verdade relâmpago.

Neste meu retorno (será eterno?) a Steiner, encontrei aquela mesma verdade envolta em argumentos (sempre mais sintéticos do que analíticos, neste pensador). E senti uma alegre-tristeza ao ver que não estava só (como o génio ou como o louco, talvez o génio-louco).[3] Será um pouco isto, creio, que se sentirá no mundo das ideias (não o de Platão, mas o imanente no qual vivem, com todos os esplendores e melancolias que se possam imaginar, os amigos dos conceitos e das metáforas). Plagiar involuntariamente dá-nos a medida da nossa comensurabilidade colectiva, de uma filogénese das ideias, dos limites, afinal estreitos, da genialidade. Genialidade que o romantismo oitocentista, obcecado pelo intempestivo e pelo sublime, compreendeu, talvez sem se aperceber da contradição, como dever de emancipação, fatalidade e liberdade (naquela época, os génios inventavam mundos investidos de um poder sobre-humano que verdadeiramente não lhes pertencia, emancipavam os homens impelidos por forças que se tinham apoderado deles. Faziam, assim, demasiadas rasantes à vertigem da loucura e não tinham coração para viver muitos anos, mas sabiam pairar sobre os abismos).

Hoje, não há génios, porque ninguém acredita neles (esquecemos a teologia das alturas rochosas), as nossas aventuras são modestas (porque indigentes, escrevemos manifestos sem dentes), apesar da bazófia do marketing. Um racionalismo plano, redondo e as vagas sucessivas do capitalismo (ui, afinal também sou anticapitalista) afogaram todas as possibilidades de grandeza (que seria sempre a de um semi-Ícaro, ou melhor, a de crentes em semi-Ícaros).

Fazemos, pois, pequenas coisas e vivemos muitos anos. Muitos anos com poucas ideias e seguros de vida caros. É talvez por isso que escolhemos um eterno retorno que rebaixa (em Nietzsche eleva, mesmo que abra as portas das trevas, não fica é a meio caminho, no banal e irrelevante confortáveis), não avançamos, preferimos os resíduos do passado que já conhecemos. Somos a civilização da ruminação. Queremos futuro, não o nego, mas já não aguentamos os abismos que vêm com ele. Desejamos amanhãs previsíveis, quando eles faltam regressamos ao passado (embora viciados numa ideia ingénua de progresso).

Mas voltar a Steiner não é bem a mesma coisa do que retornar ao conhecido. Com ele, no mínimo, ganhamos balanço para entrarmos com mais força e mais temeridade no desconhecido. Sem muito controlo mas com grande júbilo. E no máximo descobrimos que, afinal, não o tínhamos lido bem, regressamos a ele para descobrir o novo. Até porque, como é tantas vezes evidente, «A leitura nunca é estática. O sentido é sempre móvel.» (Steiner: Antigonas, 245)

Antes de citar a ideia que plagiei involuntariamente, há mais duas notas sobre a arte de levar de um lado para outro o pensamento e a sensibilidade, uma arte (uso o termo «arte» para realçar que não há um método exemplar para o processo de tradução) fundamental para o espírito: «Sem a tradução, as nossas iniciativas de espírito e forma rapidamente se perderiam num regresso à inércia.» (Idem, 246) Primeira nota, «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (Idem, 247) Segunda nota, as traduções são «produtos de uma densa herança histórica. Chegam muito depois. Estejam ou não explicitamente conscientes do facto, a acumulação das edições, exegeses, encenações e leituras críticas anteriores age[m] sobre a maneira que é a da sua compreensão.» (Idem, 250-51)

Agora, a ideia plagiada. Steiner começa por dizer que «A grande maioria das traduções são más. São imprecisas, frouxas, redundantes, estilística e conceptualmente deficientes, e complacentes com o erro.» (Idem, 247) Mas o pior está nas traduções maiores, nas palavras de Steiner: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem, 248) No segundo prefácio a Depois de Babel (1992) inserirá isto no campo mais vasto da «transfiguração», uma «questão moral» decisiva: «em que o peso e a irradiação intrínsecas da tradução eclipsam os da origem». (p. 20)

Assim, o tradutor — de si, do mundo e de livros — trai e recria. A linguagem traduz sempre imperfeitamente, mas é desta imperfeição, e só dela, que emerge o humano.

[1] Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa; Relógio D’Água, 2002 [1975, 1992, 1998], p. 16.
[2] Antígonas. A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água 1995 [1984].
[3] Acabo de surpreender, no The Guardian, Killian Fox a dizer «I hate Reading books where you find your own opinion confirmed.» A propósito, imagine-se, de um Antigone’s Parallax, livro da filósofa eslovena Alenka Zuancic.

mil pesetas

Para a Jillian Saucier 

1.

mil pesetas
mil pesetas espanholas
qualquer coisa
como seis euros hoje 

2.

o dinheiro é a coisa mais suja do mundo
digo-te eu enquanto atravessamos
aquele parque onde a primavera
parece estar sempre
prestes a começar 

o dinheiro é a coisa
mais limpa do mundo
dizes tu
e lava tudo 

não, é sujo, insisto eu
mesmo ao manusear uma moeda
sabes que ficaste com as mãos sujas
e sempre que uma te cai nas mãos
trocaste por ela qualquer coisa sem preço 

mas pode ser reconhecimento dizes tu
mas pode ser um reconhecimento continuo eu 

mas como reconhecimento
é a coisa mais fria do mundo
a minha primeira moeda
de cem escudos
e a tua primeira nota de um dólar
talvez tenham sido a nossa
primeira lição
em egoísmo e medo de viver 

é belo o dinheiro, dizes tu
faz o mundo girar 

é feio, respondo eu
como fim
e muitas vezes como meio

3.

natalia ginzburg tinha razão
é preciso ensinar as crianças
a ter desprezo pelo dinheiro
ganhá-lo para o gastar
gastá-lo como coisa
muito subserviente
a uma arte de viver 

4.

uma nota de mil pesetas espanholas
com a cara de benito pérez galdós
datada de 1979
impressa em madrid
na misteriosa caixa de dinheiro estrangeiro
da minha mãe
entre algumas libras inglesas
e moedas de um país do leste da europa
difícil de identificar
naquela casa pequeníssima
com um jardim obsessivamente cultivado
onde às vezes as árvores de fruto falhavam
misteriosamente
dionisicamente
dando ou não frutos
consoante assim o entendiam
onde tantas vezes não havia
dinheiro para comer  

e onde ela foi vertiginosamente adoecendo
até ser uma mulher que já não viajava
que acreditava que o mundo
era um lugar que não valia a pena visitar
o sítio onde um filho primogénito talvez
nascido por volta desse ano de 1979
repousa para sempre sem lápide
entre as austeras campas de tijolo
caiado de branco
dos avós e dos tios-avós 

mas também o sítio onde não sei como
três filhas não morreram de fome
e talvez não tenham enlouquecido 

o dinheiro diante da pobreza
devia mesmo ser
como a poesia diante da morte, jillian 

5.

mil pesetas espanholas da década de ‘80
são muito melhores do que mil pesetas espanholas
da década de ‘90 

digo isto apenas
porque acho a cara de benito pérez galdós
que está impressa numa
bastante mais tolerável do que a cara
de hernán cortés na outra 

6.

não sei como se expressava
a soma de mil pesetas espanholas
naqueles dias do final de agosto de 1936
em granada
isto é não sei que notas ou moedas
seriam necessárias para perfazer essa quantia
que no valor relativo de hoje
seria qualquer coisa
como quinze mil euros 

mas tenho a certeza
que isabel roldán
prima de federico garcía-lorca
e que angela cordobilla
a empregada na casa
de manuel fernandéz-montesinos
(cunhado de lorca
executado poucos dias antes dele)
que levou a lorca comida e roupa
todos os dias
enquanto ele esteve preso
no governo civil
se lembrariam 

porque é a soma que ambas recordam
com uma raiva indignada
vir pedida como doação
para a causa nacionalista na carta
que o pai de lorca recebeu
das mãos de um guarda
em calle de san antón
lavrada na letra do filho
que se despede dele com amor 

ian gibson
biógrafo de lorca
especula que quase sem dúvida
foi esta a última coisa
que lorca escreveu neste mundo 

e isabel roldán recorda
como não teve coragem
de dizer ao pai
para não doar aquele dinheiro
porque ela sabia
mas ele ainda não
que aqueles homens
que agora lhe extorquiam doações
três ou quatro dias antes
tinham levado o filho
um pouco para fora da cidade
e entre as oliveiras
em fuente grande
tinham sido eles
quem o tinha assassinado

Oxford, 30 de Julho de 2023

Crítica Cultural

Usarei a enunciação «crítico da cultura» devido à incapacidade (impossibilidade?) de encontrar outro sintagma para definir aqueles que formal ou informalmente diagnosticam, avaliam e propõem uma cura para a cultura (aqui sinónimo de cultura erudita). Seguindo Friedrich Nietzsche, o crítico da cultura será um médico da cultura.

A produção e circulação de informação tem-se deslocado da imprensa, rádio e televisão, com trabalhadores por «conta de outrem», para uma pletórica produção de conteúdos transmitidos, por vezes ao acaso (sem um público-alvo definido), nas redes sociais. Multiplicaram-se, pois, os críticos da cultura, muitos deles com uma produção descontínua, efémera e até única. Mas a disseminação dos críticos e das críticas, num caos que parece criar uma pan-estimulação avassaladora, capaz de sufocar qualquer leitor que arrisque ceder ao apelo deste abismo (vertigem do scrolling), acaba por ser organizada em bolhas. Os grupos de «amigos», «seguidores» e «leitores» selecionam, com critérios que não cabem num pequeno catálogo, os «seus» críticos, que seguem de forma mais ou menos intensa. Há seguidores fanáticos, outros indiferentes, outros escrutinadores, alguns, poucos, por óbvia contradição nos termos e nas atitudes, críticos. Tudo dentro da lógica agónica que compõe uma parcela essencial das redes sociais digitais: os conteúdos devem gerar atração ou aversão, nunca indiferença, e devem fazê-lo em torno de no máximo dez preconceitos.

E o que faz esta legião de críticos da cultura (nos restos de uma pós-modernidade que se quer mais performativa do que explicativa)? Fundamentalmente duas coisas: 1- enaltece e engrandece qualquer acontecimento (cinema, teatro, literatura…) no qual participe, à semelhança de um dos síndromas de férias mais recorrentes: não se diz mal do que experienciamos, pois isso iria desvalorizar-nos; 2- desconsidera quase tudo o que se faz fora do seu círculo existencial, a partir de critérios que não se dão ao trabalho de desocultar, a linguagem é muitas vezes de combate físico e os ataques são sobretudo ad hominem. Estão sedentos do infortúnio dos outros. Esta maledicência seria irrelevante se a imprensa de «referência», a rádio ou a televisão públicas, sobretudo o Canal 2, contrabalançassem este histrionismo, espontaneamente maldoso ou bondoso, com documentos, em vários suportes, que descrevessem e avaliassem, com o devido rigor, atividades e produtos da cultura erudita. Não é o caso, salvo honrosas excepções (Ípsilon, Nada Será como Dante, revista Electra, Pedro Mexia no Expresso, por vezes o Jornal de Letras… esqueço-me certamente de algumas, mas não serão muitas), temos uma incipiente crítica cultural efectiva, talvez também porque a nossa cultura é pouco vibrante e lhe falta um público.

Não me querendo alongar no «falta um público», creio que não temos críticos, a exercer realmente essa tarefa sem os códigos demasiado fenomenológicos (mesmo quando parecem só gostar de hermenêutica) da Universidade, que além de observar e catalogar quisessem também avaliar aquilo que se faz a partir de um patamar que os colocasse ao nível e acima da obra. Ao «nível» para compreender as suas linhas de força próprias. «Acima» para enquadrar a obra no ecossistema de que actualmente faz parte e projetar, com as justas temeridade e ousadia, como visionários, as forças que emergirão no seu ciclo de vida (dependendo tanto de si como dos leitores, de hoje e de amanhã). Bem longe, portanto, de ou fazer um retrato ditirâmbico, ou queimá-la numa fogueira da santa inquisição do gosto subjectivo (redes sociais). Mas evite-se também o rigor mortis (Universidade).

Tal não significa que o mundo da cultura seja o mundo das delícias. O culto ascético da perfeição indispõe os criadores para a fraternidade ou sequer a tolerância do outro, mais azarado ou mais genial. Não há, com as excepções que tantas vezes destroem a beleza dos imperativos categóricos, trabalho colaborativo na cultura erudita, mesmo quando é necessário colaborar para apresentar um produto final (por exemplo, no teatro, ou na música sinfónica). Mesmo se é verdade que a «ansiedade da influência», como a entende Harold Bloom, nos revela que ainda que os criadores desejem ser um «Adão logo pela manhã», «Não pode haver escrita forte, canónica, fora do processo de influência literária.» (O Cânone Ocidental, Temas e Debates, 2012, 20). Certo, mas isto é um processo de apropriação cultural (uso o termo fora do movimento de hipersensibilidade Woke), uma apropriação oportunista, parasitária muitas vezes. E não um processo de colaboração criadora.

Bem sei que Bloom, como qualquer um que se atreva a fazer um cânone artístico, teve uma boa dose de incriminações, que hoje não está sequer no campo do «talvez seja recomendável». Mas ele é um modelo de crítico da cultura. O que fez para a literatura, o estudo denso e profundo de 26 escritores (incluindo Fernando Pessoa, relembre-se), serve de modelo (sendo que um modelo não se imita, inspira-nos) para outras áreas. Não são 26 escritores isolados, apesar de serem únicos, mas que se influenciaram (Shakespeare é a grande fonte, «escreveu a melhor prosa e a melhor poesia da tradição ocidental», idem, 23), muitas vezes agonicamente, de forma que cada um atingisse as suas máximas individualidade e grandeza. Cito-o novamente: «As nossas instituições condenam a competição tanto na literatura como na vida, mas o estético e o agonístico são uma única coisa, como nos é dito por todos os antigos gregos e por Burckhardt e Nietzsche, que recuperaram esta verdade.» (idem, 18). Tentemos fazer um pouco aquilo que ele fez, à nossa medida, a partir dos nossos possíveis (por vezes tão acanhados). 

É verdade que há um conjunto de críticos portugueses que cumprem perfeitamente uma parte do trabalho de Harold Bloom, mas de uma forma ou de outra estão demasiado condicionados por funções e estilos académicos, fazendo avaliações neutras, esgotando-se nas descrições (por mais interessantes que sejam). À medida que o mundo da crítica foi sendo preenchido pelos professores universitários as críticas afastaram-se da vida. Os bisturis analíticos apresentam a cultura, naturalmente orgânica, como pouco vivível para os espectadores. Ainda assim, quero citar alguns, e nem todos cabem na figura do curandeiro desastrado por excesso de diagnóstico: António Guerreiro, Augusto M. Seabra, Eduardo Coelho, Eduardo Lourenço, Jacinto Prado Coelho, João Bénard da Costa, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Jorge de Sena, Jorge Leitão Ramos, José Augusto França, Lauro António, Vasco Câmara… [Acrescento sugerido por Tatiana Faia: Agustina Bess-Luís, Rosa Maria Martelo e Maria Irene Ramalho]. [Acrescento meu: José Gil, Diogo Ramada Curto].

Tradução literal

Terminei há pouco a tradução de O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche, um livro que coloca imensos problemas de tradução, porque é de Nietzsche, porque é em alemão (uma língua e uma cultura mais afastada da nossa do que, por exemplo, a francesa, inglesa ou espanhola) e porque é de 1872. Por isso, faz sentido pensar com vocês sobre se é possível, e desejável, desenvolver uma metodologia que tornasse as traduções menos dependentes do talento e das convicções individuais do tradutor. Algo, aliás, que talvez esteja contido na sugestão, que se tornou quase lei, de traduzir literalmente. Por outro lado, nalguns aspectos, parece que desaprendi uma certa arte de traduzir que tinha como designo pessoal quando escrevi em 2014 um texto para a Enfermaria 6 sobre o traduttore traditore.

Neste mini-ensaio, em parte presente na nova tradução de O Nascimento da Tragédia, direi por que razão julgo que as traduções não podem ser literais. Sendo, pois, sempre mais o resultado de um gesto artístico do que metodológico.

Guio-me metodologicamente pelo princípio, um pouco a contrapelo de uma nova escolástica, de que se a preocupação com a literalidade do que traduzimos está no início da nossa ação, ela não estará, contudo, no fim. Isto é, devemos pretender fazer uma tradução literal, sabendo, porém, que é impossível levá-la a cabo. Fundamental e incontornavelmente porque passamos significados e sentidos de uma língua e, igualmente importante, de uma cultura para outra. Podemos aplicar à tradução aquilo que Pierre Hadot diz do filosofar: «filosofamos sempre no interior de um jogo de linguagem, ou seja, para retomar a expressão de Wittgenstein, no seio de uma atitude e de uma forma de vida que doam sentido ao nosso discurso».[1] Por isso, como referem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e John Austin (1911-60), com terminologias diferentes, o significado é dado pelo uso. Sabemos, assim, o quão difícil é traduzir, e nunca literalmente, palavras (e muito mais do que isso, algumas são autênticas visões do mundo) como «Dasein», «garde-fou», «underdog, ou sencillo (bem sei, «simples», mas…).

Não nos esqueçamos que o termo latino translatio tinha originalmente o significado de «transporte», ou de «transferência de dinheiro entre bancos», mas também de «enxerto botânico», ou «desenvolvimento de um campo metafórico». Será isto que leva Umberto Eco (1932-2016), em Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione[2] (Dizer Quase a Mesma Coisa) à ideia de negociação, como se faz no uso quotidiano da língua.

Desde modo, talvez George Steiner (1929-2020) não tenha razão ao defender, em After Babel (Depois de Babel), que a boa tradução escreve na língua de chegada aquilo que o autor teria dito se a falasse.[3] Prefiro, sem minar a inteligibilidade, levar o leitor ao texto original, como defendia Schleiermacher,[4]  em vez de o autor à cultura e à língua de chegada, Por outro lado, recupero de Jean-Paul Sartre, mitigando um pouco a posição de Schleiermacher, a ideia de que as línguas não são códigos abstratos, elas devem ser subjetivadas: «[S]aber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua, tal como a definem os dicionários e as gramáticas académicas: é fazê-la nossa através das deformações e seleção regionais, profissionais e familiares.»[5]

Talvez por isso, Jacques Derrida, em O Monolinguismo do Outro, diga que «Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível[6] Fernanda Bernardo, a nossa principal tradutora de Derrida, sintetiza o problema da tradução como um desafio permanente, «um compromisso possível, mas também sempre irremediavelmente imperfeito entre dois idiomas […] partidários que somos de traduções fidelíssimas na sua inevitável infidelidade».[7] Permito-me subscrever aquilo que diz esta filósofa.

[1] Exercices spirituels et philosophie antique. (Paris: Albin Michel, 2002), 368.
[2] Milão: Bompiani, 2003.
[3] Cf. Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução. Trad. Miguel Serras Pereira (Lisboa: Relógio D’Água, 2002), 376–77.
[4] Cf. Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. Trad. notas e apresentação de José Miranda Justo (Porto: Elementos do Sudoeste, 2003).
[5] O Ser e o Nada. Trad., prefácio e notas de Victor Gonçalves (Lisboa: Edições 70 1022 [1943]), p. 614.
[6] Citado por Fernanda Bernardo, «Nota sobre a Edição e Tradução Portuguesa», in Jacques Derrida, Vadios (Coimbra: Palimage, 2009), p. 13.
[7] Idem, pp. 13‑14, 17.