CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.

Declínio do possível, café filosófico

Gilles Deleuze, antes de 1956, por michel tournier

No dia 18 de novembro houve mais um café filosófico na livraria Snob, em Lisboa. Deixo aqui o texto de apresentação e o áudio.

«No próximo Café Filosófico, mistura sustentável de conceitos e de postulados do quotidiano, falaremos sobre o possível, ou melhor, as categorias, filosóficas e não filosóficas, do possível. Se quisermos traduzir este último sintagma numa linguagem mais militante, talvez possamos escrever a seguinte pergunta: terá o mundo, agora totalmente fabricado por nós (Antropoceno), esgotado os possíveis, como quem esgota um qualquer recurso natural?

Evocaremos, e invocaremos, Gilles Deleuze, um filósofo do possível, porque trabalhou este conceito perspetivicamente, analisando-o, e usando-o, a partir de vários ângulos, acompanhado por Kierkegaard, Bergson, Nietzsche e, entre outros, Tournier. Inscrevendo-o na arte e na filosofia, mas também, sem gritar, na política. Daremos conta do filósofo do futuro nietzschiano, cuja obrigação é construir possíveis que intensifiquem a vida, o viver; bem como da intuição do autor, originada em parte na filologia, sobre como a vingança anula os possíveis que propõem um futuro sem ressentimento. Michel Foucault, num livro editado há pouco tempo em França, Le discours philosphique, também defende, ele que se interessou mais pelos sistemas das ideias e dos pensamentos, que a filosofia serve essencialmente para inaugurar o futuro.

Discutiremos igualmente as modalidades éticas que exigem uma responsabilidade pelo futuro, e com isso uma prudência na inauguração de possibilidades que, como na hybris grega (essa embriaguez desmedida, que autoriza, ou força, as maiores transgressões, como a de Édipo), seriam desafios demasiado pesados, ou simplesmente sopros estéreis, para as futuras gerações. Tanto mais difícil quanto a inflação narcísica atual (vivemos também no egoceno) forjou o quase conceito de síndroma de hybris, uma patologia que infeta cada vez mais pessoas, com muito ou pouco poder, bastando-lhes acreditar que, num determinado momento, são todo-poderosos.

Terminaremos com o estado da arte da utopia, desses não lugares onde cabem todos os possíveis.»

O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.

Amar os intelectuais

Jürgen Habermas, 2002

Cruzamos várias ideias ao longo do dia, por vezes numa tensão agónica, outras com um grande potencial de fusão, a fusão amorosa dos conceitos.

A meio da semana, li no último livro de João Barrento, Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis (espero fazer uma recensão em breve), um texto de 2007 sobre «As Palavras Aladas». Duas ideias: nunca tivemos, nem teremos, um Robert Musil, nem «uma sociedade moribunda, estagnada e viciada, com um fabuloso potencial de criação cultural, não radical, mas capaz de assimilar tradições e com elas dar grandes saltos em frente.» Como era o caso de Viena e dos seus judeus assimilados. Em Portugal, a cultura («todo o universo do simbólico e dos modos de “produzir sentido”») trivializou-se, «assiste-se a uma hostilização generalizada do pensar, a arte é vista como puro negócio, pelo menos para aqueles que a compram sem saber bem porquê». (Este «sem saber bem porquê» é delicioso). A segunda ideia, causa e consequência da primeira: estamos a perder a capacidade de escrita, e com isso esvai-se a «possibilidade de estruturar o pensamento e dar forma à imaginação.»

Entretanto, o El País traz hoje um artigo sobre Jürgen Habermas («Jürgen Habermas: el gran pensador y su assalto a la cumbre de la filosofia». É laudatório (como escrever de outra forma sobre Habermas? Creio que nem Sloterdijk consegue, agora, fazê-lo, quando se é demasiado grande as críticas só surgem post-mortem) e informativo (Habermas está a escrever Auch eine Geschichte der Philosophie, Também uma História da Filosofia, e sai agora o primeiro tomo em tradução castelhana)[1]. Para o articulista, Habermas é um filósofo alimentado pelo intelectual, pela sua veia polemista e por estar pronto a debater qualquer assunto. Como Michel Foucault, é um pensador do «agora», capaz não apenas de discutir o que é visível (a guerra na Ucrânia, por exemplo) como o que abana o mundo mas é relativamente invisível, o passado nazi da Alemanha, o seu próprio inclusive. Tudo saído da crença de que uma boa ética do discurso (da discussão, que almeje uma intersubjetividade assente na procura da verdade) permite um entendimento mútuo. Crença entretanto dinamitada pela proliferação de fake news e a reativação, nostálgica e utópica, dos regimes políticos autoritários.

Mas o que mais me interessa, é a ideia de que a Alemanha ama os seus intelectuais (percebo o risco e a inexatidão de dizer que um país, ou melhor, uma cultura ama os seus filhos), Habermas talvez em primeiro lugar, mas também Peter Sloterdijk, Rüdiger Safranski, Wolfram Eilemberger ou Byung-Chul Han. Como os franceses amaram Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Michel Foucault ou Albert Camus. E este amor, forma extrema de emulação, estrutura pensamentos e dá forma à iamginação. Não vejo, aliás, outra maneira de educar um povo, educá-lo para o profundo e para o subtil, sem ser através das ideias produzidas nas alturas onde vivem os maiores (bem sei que reverbero o pensamento da genialidade de Friedrich Nietzsche e de algum Romantismo, mas ou é isso ou é uma educação de massas assente nas pequenas narrativas, repetitivas e imprecisas, muito mais preocupadas em manipular do que em informar, que os meios de comunicação dominantes atiram para cima de todos quantos se baixam, ou, a terceira via que mais me entristece, uma escola que simplificou tanto os conteúdos, que se viciou tanto no banal, que se tornou intelectualmente tão pobre que ninguém que tenha lido um livro quer ser professor, votada ao imperativo acrítico de certificar em massa, usando todos os truques possíveis para alcançar o «sucesso educativo»).

A Alemanha ama os intelectuais e nós não amamos. Temos, aliás, logo à partida, preconceitos bem afiados contra eles. O pior de todos, porque é injusto e entrava tudo, é julgar que não conhecerem a realidade. São seres da metafísica, são seres na metafísica, são seres pela metafísica, diz-se à boca cheia. É verdade que o seu discurso difere do do quotidiano, assim deve ser. Mas eles pensam e falam, escrevem, sobre a realidade, ou melhor, as realidades. Usando mais recursos linguísticos do que é habitual, um encadeamento contínuo de proposições (contra a fragmentação vigente), por vezes socorrendo-se de criações conceptuais, citando muitos dos que antes deles pensaram da mesma forma, usando mais adversativas do que a moda do «discurso assertivo» recomenda… Mas eles pensam as realidades, o agora, multiforme, que resulta e condiciona as nossas ações, o agora que conduz grande parte do que pensamos e da forma como pensamos. Eles são, em boa verdade, muito mais realistas do que os não intelectuais.

Amemo-los, pois, por eles e por nós. Por um país e uma cultura que quer retomar um processo de emancipação individual sem cair no individualismo. Pela alegria insubstituível de descobrirmos um conceito que irá esclarecer uma parcela do quarto escuro que nos impede de dizer, «caramba, isto é mesmo belo!». Amemos João Barrento, José Gil, Maria Filomena Molder, Eduardo Lourenço (que continua vivo), Eduardo Prado Coelho (idem), amemos António Guerreiro (eu, com reservas), Viriato Soromenho Marques, Gonçalo M. Tavares, Pedro Mexia… Amemos todos aqueles que ensaiam pensar e lançam faíscas que iluminam o mundo. Aqueles que sabem sair de órbita sem se perderem e trazem as revoluções (no duplo sentido, cosmológico e político) que permitem «dar saltos em frente».

 

[1] Deixo-vos a nota de Nicolas Weill para o Le Monde, aquando da saída do segundo tomo em tradução francesa: «Nos últimos vinte anos, Jürgen Habermas tem dedicado os seus escritos a explorar os “conteúdos de verdade” que, na sua opinião, são veiculados pelas relações de fusão ou tensão entre fé e razão. Daí a exploração empreendida em Uma História da Filosofia, cujo primeiro tomo foi publicado em 2021, e eis agora o segundo. Depois de ter centrado o seu estudo na Idade Axial (cerca de 800-200 a. C.) — período em que o sagrado confluiu simultaneamente com a moral em várias partes do mundo (de que os Dez Mandamentos são a ilustração mais marcante) — e de se ter interessado pelo pensamento medieval, o filósofo analisa, neste novo volume, a rutura que, de Martin Luther aos “jovens hegelianos”, Ludwig Feuerbach, Karl Marx e o dinamarquês Soren Kierkegaard, levou à constituição de um “direito da razão” moderna.»

O silêncio de João da Ega e o cão de Cesariny, ou sobre como a literatura portuguesa me arruinou a vida

Para os amigos muito amados:
C., na tristeza da sua grande paixão, para que
não se esqueça de segurar a beleza.

E para o Pedro, que nunca escreveria
este texto porque ama demasiado Ricardo Reis.

André Kertész, universidade de Long Island, Nova Iorque, 1963

A tristeza, o modo como ela funciona, é transparente e simples, cru como uma cor básica, como branco ou negro, ou como pornografia. Não admite nuance, é uma forma muito particular (e talvez mecânica) de monotonia. A tristeza eu aprendi-a na escola, nas aulas de literatura portuguesa. Já era, é certo, minha e já estava ao meu redor, mas a literatura portuguesa tornou-a visível e inescapável com a leitura de Os Maias de Eça de Queirós. Vinha no currículo, vinha nos excertos escolhidos a dedo nos manuais, e era obrigatória, começava no princípio do 12o ano com Antero de Quental e não parava até nos livrarmos de Ricardo Reis. Não foi com a tragédia grega que aprendi a tristeza. Não há tristeza como fim em si próprio na tragédia grega e, já agora, importa clarificar que, tanto quanto eu o entendo, também não há destino, no sentido em que ele não é pré-determinado e no sentido em que as personagens da tragédia são responsáveis pelas suas escolhas. Não foi com os gregos que aprendi a tristeza. Aliás, desaprendi-a, porque para eles a tristeza é uma necessidade, anankê, que existe como a fome, pede resposta e desenlace, ela pode destruir o mundo, mas, na economia da épica e da tragédia, ela resolve-se ao tocar as suas consequências. Há uma crença nos gestos, no que pode ser feito, que no fundo anula o determinismo. Os gregos vivem o seu destino, com a sua responsabilidade, não são vítimas dele. Por isso, os gregos ensinaram-me, se não como curar a tristeza, pelo menos como me defender dela. A sua extraordinária individualidade, mal resolvida ao longo de todo o período arcaico, que é uma corrente de energia partilhada por uma sucessão de vozes muito fundas, sem tempo histórico porque são mitologia, e profundamente habitáveis (que é no fundo o que a poesia é), de todo o período clássico, por boa parte da comédia nova, essa individualidade que é nitidamente reinventada no período helenístico, até chegarmos ao último dos poetas de Alexandria, que para mim é o romano Catulo, nascido em Verona algures entre 87 e 84 a.C., às suas líricas feitas de auto-paródia, desespero erótico e lucidez, de profunda desconfiança da mediocridade que o rodeava e que no fundo começava por ele, não é forma nenhuma de tristeza para mim. Não é. De Catulo é a errância e o desassossego precursor dos poetas beatnik americanos, que não se confunde de modo nenhum com a tristeza cósmica e atmosférica daquele ajudante de guarda-livros que muitos séculos mais tarde viria a cantar de tristeza, mesmo quando essa tristeza era nele paródia, na cidade de Lisboa. A tristeza de Catulo não é a de Bernardo Soares. Bernardo Soares, no fundo, é discípulo não de Homero, o poeta que ele diz, cerca de 23 de Março de 1930, que gostaria de ser ao luar, mas de Carlos Eduardo da Maia.

A minha tristeza, então, quando é em mim irresolúvel, quando está comigo e é inexplicável, é sem dúvida produto de a ter lido nos bancos da escola enquanto lia Os Maias, sublinhada por Bernardo Soares e confirmada como inescapável modo de existir, não de viver, naquela cena final de um romance publicado pouco menos de um século mais tarde que o romance de Eça, Os Cus de Judas de António Lobo Antunes, naquela visita do narrador às tias que, olhando o sobrinho, regressado da guerra colonial, lhe dizem que nem ela chegou para fazer dele um homem. Aquelas tias são as tias de todos nós, e são, no fundo, uma variação sobre a conclusão fundamental a que chega João da Ega naquela única cena que era fundamental aprendermos para a papaguearmos sombriamente no exame nacional, esse ritual de passagem que nos permitira entrar na faculdade e começar a nossa vida adulta. Cumprimos esse ritual com aquela sentença de Ega em que ele conclui “falhámos a vida, menino,” antes de ele e Carlos da Maia, de seguida, quase de certeza, perderem o americano. Mas não se confundem com as parcas, aquelas tias de António Lobo Antunes, não podem cortar o fio vital da vida, elas existem para confirmar e prolongar a tristeza. E é tristeza porque essa concretização do percurso do narrador de Os Cus de Judas se torna explícita, naquela cena, como determinismo, não por ser tristeza, mas porque deriva dessa cena final de Os Maias, pertence à mesma tradição.

A tristeza, que não é o mesmo que depressão, pode ter uma função vital que tem a ver com empatia, é talvez aquela coisa que no Soneto V faz Garcilaso de La Vega dizer com uma lucidez alucinada de uma forma de não aceitar a pena que é litigação, maneira de combate, mi alma os ha cortado a su medida. Não é por nada que Madrid tem uma Plaza Mayor e nós um Terreiro do Paço, uma dá exactamente para aquilo que a rodeia e o outro para o amplo vazio. A tristeza talvez contenha na lucidez que lhe é própria o mecanismo da sua própria rejeição, mas apenas quando nenhum destes dois elementos é um vício absurdo, um indestrutível remorso que não poupa nem perdoa nada nem ninguém. A condição da tristeza de Carlos Eduardo da Maia pode até confundir-se com a de Édipo, mas não é a de Édipo. Édipo, segundo Sófocles, não foge para Paris, não passa as suas manhãs cheio de tédio e tristeza a conduzir pelo Bois: cega-se, vai para Colono, morre entre os atenienses a amaldiçoar os tebanos, e Creonte também não é nenhum Eusebiozinho, no fundo, uma figura central para entender o tipo de tristeza que está em causa em Eça.

Na escola, li Os Maias de cabo a rabo sem que ninguém tivesse tido em momento nenhum a decência, a gentileza e a lucidez de pronunciar a palavra tristeza. Aliás, essa tristeza é persistente, é em tristeza que acaba a cega paixão que une Pedro e Maria Monforte, é de tristeza que morre Afonso da Maia, e é uma pesada tristeza a companheira de fuga de Carlos Eduardo. É companheira de fuga, não é vista como forma de resposta. E isso é porque a tristeza, em Os Maias, é cobarde. Não era de Eça a tristeza, também, mas ele materializou-a e canonizou-a quase como génese da nossa modernidade toda, não apenas da literária, na mistura de misoginia e cobardia moral que é a trajectória, pré-determinada, dos homens da família Maia, e que já vinha de trás, começa em As Folhas Caídas, é uma misoginia do olhar, mulher enquanto paisagem e queda. Criticou-a, e bem, acho, Paola d’Agostino na sua reescrita inquieta de Os Maias a partir da perspectiva de Tancredo e Maria Monforte, em Tancredi, o Napolitano, no extraordinário relance de um olhar, mais do que italiano, napolitano (a partir do contexto do ressurgimento italiano) sobre a Lisboa e a intriga do romance de Eça. E Eça até pode ter aprendido o que havia a saber sobre determinismo com Zola e com Flaubert, com Madame Bovary, até porque é mais ou menos a trajectória de Flaubert aquela que Eça imita, no percurso que vai de Bovary/Maria Eduarda a Salammbô/ Gonçalo Mendes Ramires, e certo é que Os Maias podem ser uma crítica a esse determinismo, mas reiteram-no, a voz de Ega, quando dissonante, não convence, é a voz de um sofista. Aliás, o seu carácter e o de Carlos Eduardo da Maia emergem em estado bruto numa das últimas frases que Carlos pronuncia “Sobretudo, não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.” Ao que o narrador acrescenta “Ega, em suma, concordava.”

É a concordância de Ega, claro, o que aqui me perturba. Então e o estômago, de que, segundo ele próprio na página anterior, tudo depende? Mas como assim, João da Ega? O que aconteceu a não ter apetites? Não o estômago que espera jantar o paiozinho que Carlos Eduardo da Maia queria muito ver cozinhado para o jantar no dia daquele encontro com Ega e sobre o qual vai murmurando inanidades enquanto os dois amigos procuram uma tipoia, Carlos afinal sem apetites e receoso de contrariedades, mas morto de fome. Não é o estômago de Carlos Eduardo que aqui me importa. Esse demonstra simplesmente o que já sabíamos, que a vida é demasiado longa para ser trágica, que a fome e a humanidade têm um elo irracional chamado sobrevivência, e que essa é, muitas vezes, o lado indómito da natureza que se perpetua e se recicla enquanto ruína – mas em Os Maias essa reciclagem não é reinvenção, é convalescença, um pretexto para sancionar a akrasia em que ambos caíram e que pelo menos Carlos Eduardo confunde, hipócrita e cobardemente, a meu ver, com uma estoica ataraxia. O fatalismo muçulmano que ele diz ser a solução para o romantismo do qual nem ele nem Ega conseguem escapar, sendo que ambos reconhecem que os que se dirigem apenas pela razão não vivem, é justamente uma variação viciada dessa busca de racionalidade, desse modelo inatingível que não conseguem deixar para trás e que vai contra a sua natureza. Sabe alguma coisa sobre isso João da Ega, mas ele não diz a Carlos Eduardo da Maia o que era preciso dizer ao intuir isso, e torna-se então um mau amigo, com uma má consciência. Porque Ega não é Carlos Eduardo da Maia, não é o homem quebrado que não regressa de um erro trágico que o destrói, Ega vê, como Carlos não pode ver, aquilo que não diz a Carlos. Quando Carlos nota que vivera apenas dois anos no Ramalhete mas parecia ter lá “metida a vida inteira,” Ega chega explicitamente à conclusão que isso assim parecia a Carlos porque era o momento da sua vida em que ele tinha vivido com paixão. E este é um pensamento por onde, com um pouco mais de distância, com um pouco menos de sentimento romântico trágico, perpassaria uma necessária intuição dionisíaca, pela qual talvez ambos pudessem escapar tanto a um sentimentalismo romântico como a uma excessiva racionalidade: um impulso dionisíaco que é necessário, vital e que na verdade é até uma alegria que aqueles dois amigos em certo sentido partilham na capacidade que ainda têm de se encontrar. Mas é um pensamento que não sai da boca de Ega. E permanece não dito, como quase tudo em redor de Carlos depois de se revelar quem é Maria Eduarda, incluindo a degradação do seu carácter, e torna-se anátema, mancha moral que, de resto, já vinha de trás, do carácter de Pedro.

E regressa, essa concordância, repetida numa acéfala tonalidade horaciana, em Ricardo Reis naqueles versos escritos, cerca de 1930, que em nada se confundem com o mundo de Horácio, com a música torrencial e generosa (não é uma raridade em Horácio, pertence ao mundo dos amigos, dos lupanares, mau grado a sua misoginia, do amor, do seu entendimento de Roma, da atração e repulsa que ele sente pelos aristocratas com quem se dá, é visível até na graxa medíocre que ele dá a Mecenas) do seu carpe diem, não se confunde, também, já agora com o mundo de Álvaro de Campos: “Quer pouco: terás tudo./Quer nada: serás livre.” São versos para preparar a morte, estes de Ricardo Reis, que pedem que se viva sem paixão, com uma enorme indiferença mesmo em relação àquilo que se possa amar, e, por isso, com uma enorme cobardia. É uma frase para aristocratas aborrecidos, que como sucede normalmente com aristocratas, acham que vivem sem qualquer privilégio, porque se esquecem deles, acham que não os têm porque sempre foram seus. É um mundo insustentável esse, no qual, no fundo, talvez se exista, mas onde não vive ninguém.

Para mim, ao escrever estes versos, importa dizê-lo, Ricardo Reis, vive não naquela pensão junto ao Tejo onde José Saramago o imaginou de regresso do Brasil, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas na casa das tias na Rua Barata Salgueiro, em Os Cus de Judas. Ao pronunciar estes versos sei que ele está, sem dúvida, lá escondido, atrás da consola império de coxas tortas, onde repousam também as molduras dos defuntos generais portugueses.

É ao estômago em causa nessa cena que quero chegar, pois é também estômago o que está em causa no encontro do narrador com as tias em Os cus de Judas, na tal casa da Rua Barata Salgueiro, que é já jazigo e não casa, a que o narrador regressa depois de regressado da guerra. Vale a pena reproduzir aqui na íntegra o que se lê nessa cena: 

Instintivamente coloquei-me na atitude hirta e séria que se oferece aos fotógrafos de feira, examinando-nos por detrás das grossas lentes impiedosas das máquinas de tripé, ou em sentido, como quando cadete, em Mafra, perante o mau humor autoritário e crônico do capitão, a franzir-se de botas afastadas numa arrogância agourenta. Cheirava a cânfora, a naftalina e a mijo de siamês, e apeteceu-me veementemente sair dali para a Rua Alexandre Herculano, onde, pelo menos, se visionava, no alto, um bocadinho turvo de céu. Uma bengala de bambu formou um arabesco desdenhoso no ar saturado da sala, aproximou-se do meu peito, enterrou-se-me como um florete na camisa, e uma voz fraca, amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua:
— Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.
 E os retratos dos generais defuntos nas consolas aprovaram com feroz acordo a evidência desta desgraça.
 Não, não, siga sempre em frente, vire na primeira à direita, na segunda à direita a seguir, e como quem não quer a coisa está na Praceta do Areeiro. A salvo. Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros, lavar os copos, dar um arranjo à sala, olhar o rio. Talvez volte para a cama desfeito, puxe os lençóis para cima e feche os olhos. Nunca se sabe, não é? Mas pode bem acontecer que a tia Teresa me visite.

Esta praça do Areeiro, no fundo, é análoga, mas bem diferente de outra. Está unida, é irmã da praça onde se demorou o outro grande discípulo europeu de Louis-Ferdinand Céline e do seu Voyage au bout de la nuit, o Patrick Modiano de outra trilogia sobre uma guerra (a Segunda Guerra), La Place de L’Étoile. Quase exactamente contemporâneos (Lobo Antunes e Modiano, não os seus protagonistas), o narrador de Lobo Antunes, tal como o de La Place de L´Étoile, Raphael Schlemilovitch, é perseguido pela memória da guerra, mas Raphael Schemilovitch, que é vítima e agressor ao mesmo tempo, ao contrário do narrador de Lobo Antunes, sabe que não há complacência a ter com o modelo, sabe que nada no anti-semitismo de Louis-Ferdinand Céline se pode confundir com literatura e tem de ser visceral e violentamente parodiado, a partir de dentro. O interior do narrador de Os Cus de Judas é, no entanto, aquele que continuará perpetuamente a poder ser visitado por aquela tia Teresa que sabe, heteronormativamente pelo menos, o que é ser um homem, e sabe que nada fará dele um homem. E o que é um homem, o que é, afinal, uma pessoa? Não explode, o narrador de Lobo Antunes. Não responde a quem, ao contrário dele, na verdade não viu e não entende o que eram os homens, essa interminável geração de homens quebrados que desfilam por toda a trilogia de O conhecimento do Inferno, que em nada se parecem com os generais que estão nas fotografias. Mas não são as parcas, estas tias, são a velha autoridade bafienta de um outro ídolo, mais opressivo, que mais tarde, demasiado tarde, fora de romances, cairia finalmente da sua cadeira.

Onde há gente? Álvaro de Campos começa a conseguir chegar lá naquele “Poema em linha recta,” que principia com aquele verso absolutamente essencial, talvez património imaterial da humanidade em que diz “Nunca conheci quem tivesse levado porrada.” Este “Poema em Linha Recta,” desconfio eu, tem na sua sequência lógica, um certo poema daquele que mais parodiou Pessoa, Cesariny, aquele poema que começa com o verso “falta por aqui uma grande razão” e que continua: “uma razão/ que não seja só uma palavra/ ou um coração/ ou um meneio de cabeças após o regozijo/ ou um risco na mão/ ou um cão/ ou um braço para a história/ da imaginação” até chegar ao centro, que são aqueles versos: “faltas tu faltas tu/ falta que te completem/ ou destruam.”

Há uns anos, ao escrever sobre uma antologia de poemas de Mário Cesariny que retira o seu título deste poema, Uma Grande Razão, Gustavo Rubim notava:

Por muito que se queira reduzi-lo a filho, talvez dilecto, da famosa desenvoltura retórica de Álvaro de Campos, Cesariny inscreve na língua um acontecimento que nem Campos faria prever. A «grande razão» em falta é bem a marca de pertença ao mesmo mundo da modernidade onde as palavras dizem sobretudo o sentido que não encontram mas há, em Cesariny, uma torção afirmativa que liberta o poema da incessante glosa do confronto com o nada.

Talvez seja a partir desse poema de Álvaro de Campos que se explica porque é que eu acho que é em alguns poetas da segunda geração do modernismo e pós-modernistas que se dissipa o silêncio de João da Ega: entre outros, Sophia, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Herberto Helder, que seria o poeta que viria a escrever, dionisiacamente:

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão? 

Em “Intercidades,” um poema de 2010 que se tem conservado ao longo das sucessivas reescritas de Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato escreveu: “eu fumo um cigarro entre duas paragens/ leio o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes...” É, em certo sentido, um poema sobre a busca e a nostalgia de um outro tempo, tempo “para sermos barcos à noite,” um modo de resistir ao silêncio condescendente e cúmplice da akrasia, à tristeza, àquilo que nos mata enquanto estamos vivos enfim. E a resposta ao silêncio de João da Ega é essa, não é outra. É a grande razão de Cesariny e a casa, o cão, os salões de um seu outro poema, “Julião os amadores,” cujo sentimento e paisagem emocional acaba por ser bastante análogo ao que se encontra no poema de Margarida Vale de Gato. Se a poesia é o lugar onde a linguagem vai para se estranhar a ela própria, como tão claramente se vê, enquanto projecto poético, por exemplo na poesia de outros poetas da geração de Margarida Vale de Gato, Rita Taborda Duarte, discípula ela de O’Neill e Luíza Neto Jorge, ou de Miguel-Manso, mais próximo de Cesariny e Ruy Belo, entre outros, o que está em causa parece-me ser justamente a formulação de Gustavo Rubim, na torção que ele identifica, “as palavras dizem o sentido que não encontram.” A primeira resposta à tristeza enquanto medo de viver, de amar, de arriscar, talvez seja mesmo a liberdade dionisíaca desse encontro estranho com algumas palavras que nos libertem dela.   

Londres, Luton,
26 de Outubro/
Lisboa, Algés
29 de Outubro de 2023