2024

Para fugir, mais por fastio do que por medo, dos ecuménicos votos de bom ano, trazemos aqui um pequeno texto do filósofo francês Vladimir Jankélévich sobre o futuro. Extraído (com o máximo cuidado) de L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux. A tradução é de Victor Gonçalves, que quis recordar que nenhum feitiço de Ano Novo, por mais apolíneo que seja, editará um bom futuro aos que alienam a sua liberdade (tornemo-nos, pois, aquilo que somos).

«O que é certo é que o futuro será, que um futuro acontecerá; mas o que será permanece envolto nas brumas da incerteza. Em todo o caso, o Ainda-não será mais tarde um Agora; em todo o caso, o futuro estará presente e será um Hoje, quer estejamos lá para o ver ou não; em todo o caso, o próximo Domingo aconteceria mesmo que não houvesse nenhum homem para lhe chamar Domingo - e isto em virtude da futurição [futurition] que inevitavelmente faz o futuro acontecer. Mas o que será esse futuro? “qualis” De que natureza? Será um dia de festa ou um dia de luto? Um dia de luz ou um dia de trevas? Tal é o enigma da esfinge chamada futuro. É a resposta à pergunta na qual é certa: “An futurum sit?” Haverá um futuro? Sim, haverá um futuro. Mas “quid sit futurum?” Com será ele? De que espécie, de que cor, de que estado de espírito? Qual será a sua luz e qual será o seu género?

Já não podemos responder a estas questões. Podemos responder à questão geral, a saber, que haverá um futuro [...]; mas não podemos dizer o que será; não podemos responder à questão circunstancial, aquela que questiona sobre as modalidades e segundo as categorias da interrogação; não podemos dizer o que será. Assim, a “futuridade” do futuro não é outra coisa senão a nossa temporalidade destinal [destinale], isto é, o nosso pesado destino encerrado pela morte. Mas as modalidades do futuro representam o reino do talvez, e apontam ao homem o horizonte exalante da esperança: o que será depende da nossa liberdade

O ethos do Ensaio

Michel de Montaigne, que com os seus Essais talvez tenha mudado a configuração do mundo, adverte o leitor, na edição de 1580 da sua Magnum Opus, de que nada mais fez, neste trabalho discursivo de uma década, do que se autorretratar («car c’eſt moy que ie peins»).

Será este o limite do género (haverá um género?) ensaístico? Viverá ele de uma subjetividade que, contra a universalidade cartesiana ou a finitude transcendental kantiana, assume a plena responsabilidade de se saber simultaneamente único, impreciso e interesseiro? Estarão as tentativas de explicação (é bem este o horizonte de sentido do ensaiar) dobradas, desde sempre, sobre a angústia de um sujeito que por mais que fale acerca do mundo só deseja conhecer-se a ele, talvez com uma pequena ajuda dos leitores? Conhecer-se ou conjurar-se, sobretudo agora que se reaviva a sombra de um pecado originário, finalmente transladado para dentro da história.

E quanto ao leitor — haverá, aliás, um leitor de ensaios, como se pensa haver, por exemplo, alguns de filosofia, outros de poesia e outros de legendas de filmes? —, será útil para a sua emancipação? Quando há uns meses alguém me disse: «agora só leio ensaios!», imaginei aquelas formas de embriaguez que avivam o Dom Quixote habitando nos limites da loucura pessoal. Hoje, creio compreender melhor a vontade bizarra de não voltar a tocar na ficção, no lírico ou num sistema de ideias codificado em conceitos. É porque no ensaio, como disse Montaigne, lemos o autor, o autor em funcionamento (e isto é mais do que uma «função autor»), mas lemos também tentativas de decifração de alguma da nossa coleção de enigmas. Tudo sem qualquer fatalismo epistemológico, porque somos humanos, demasiado humanos, mas igualmente porque tememos descobrir por detrás de um carpe diem um memento mori. Decidimo-nos pelo sonambulismo.

No café filosófico, que pela sua natureza não se interessa muito por sistemas, procuraremos, essencialmente a partir de João Barrento e do seu «Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis», pensar acerca do ensaio, de porque e como ensaiamos. Pode ser para chegar a «verdades relâmpago» como esta de J. Barrento: «sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma». Ou, nas palavras de Maria Filomena Molder (uma superior ensaísta), «Escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?». Mas pode ser também para apanharmos um génio na sua nudez involuntária. Ou uma máquina pensante que se desvinculou da grande fábrica do positivismo lógico.

Veremos aonde nos levam a dialética e os ensaios.

CAMINHAR PARA DELFOS

Ruínas do Templo de apolo em Delfos

Há um poema datado de Maio de 1970 que Sophia incluiu em Dual onde se lê:  

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro 

Este poema é parte do ciclo que abre o livro e é dominado pela figura de Antínoo, isto é, pela estátua de Antínoo que ainda hoje se pode ver no museu de Delfos. Da primeira vez que vi a estátua de Antínoo em Delfos não pensei em Sophia, de todo. Acho, no entanto, em retrospectiva, que o que experimentei ao ver essa estátua talvez tenha mais a ver com o sentimento que o soldado inglês Norman Lewis descreveu, no livro Nápoles ’44, com mais simplicidade e menos metafísica do que Sophia ao avistar os três monumentais templos de Paestum, à data do seu desembarque, em 1944, com as tropas aliadas na baía de Nápoles. A meio da descrição do terror de desembarcar em Itália, debaixo de fogo inimigo, Norman Lewis diz o seguinte:

Norman Lewis

À medida que o sol começou a descer esplendidamente sobre o mar nas nossas costas caminhámos aleatoriamente por um bosque cheio de pássaros e, de súbito, demos por nós nos limites desse bosque. Olhámos e no espaço aberto diante dos nossos olhos havia uma cena de um encanto que não é deste mundo. À distância de alguns metros podíamos ver, alinhados, os três perfeitos templos de Paestum, cor-de-rosa e cintilando gloriosamente nos últimos raios de sol. Chegou como uma iluminação, uma das grandes experiências da vida.

Quando subimos pela encosta das ruínas em Delfos vai-se ganhando uma perspectiva sobre o vale que, sempre achei, tem qualquer coisa a ver com o modo como a poesia funciona, ou pelo menos com o modo como ela para mim funciona. Há qualquer coisa de uma lenta revelação que confina com o reconhecimento de uma geografia muito particular, e, ao mesmo tempo, a alegria de a ter entendido, de ter sido, ainda que efemeramente, parte dela, recompensa suficiente mesmo quando isso nada tem que ver com promessas de felicidade. Os lugares dos dois santuários de Apolo na Grécia, Delos e Delfos, são, com Paestum, de todas as ruínas do mundo antigo em que estive, aquelas que mais amo. Apolo não é, no entanto, para mim, um deus benigno e reconheço nele qualquer coisa de uma força caótica e dionisíaca, é o deus que traz a cura, mas na Ilíada é também ele o responsável pela peste que castiga o exército grego no início do poema, porque é um seu sacerdote que Agamémnon ofende. Há depois o dom envenenado da profecia, com que ele aflige Cassandra, e a sua própria aflição violenta e desastrada, perante o terror de Dafne ao tentar fugir-lhe e de como quando ele lhe toca ela se transforma em loureiro, aquele momento que se vê agora imortalizado na estátua de Bernini em Galleria Borghese. O rosto de Apolo, tem, de resto, alcances inesperados. Da última vez que um homem pisou a lua, os americanos estamparam a efígie de Apolo Belvedere na insígnia da missão Apollo XVII, ao lado da águia americana e de alguns planetas, para significar a ambição humana de chegar a outros mundos. Há qualquer coisa na história do nascimento de Apolo, tal como contada no Hino Homérico a Apolo, que o coloca fora da escala humana. Sempre me pareceu o deus mais lírico e menos humano de todos, a começar pelo facto de que a terra não o quer. Leto erra de ilha em ilha, já afligida pelas dores do parto, e todas as ilhas se recusam a recebê-la, porque têm medo do deus mesmo antes de ele nascer. É, justamente, nesses termos que Delos se queixa a Leto, quando ela lhe implora que lhe permita dar à luz no seu solo. Delos, que se tornaria, por uma enorme extensão de tempo até à época romana, um dos santuários mais prósperos da antiguidade, invoca o terror que sente de que o deus a calque com os pés mal nasça e a lance para o fundo do mar, onde os polvos e os peixes fariam dela sua casa. Desesperada a deusa persuade a ilha, prometendo-lhe que Apolo teria para sempre ali o seu templo, e que isso garantiria a sua fama e a sua opulência entre as outras ilhas. O último argumento de Leto, o argumento com que ela convence Delos, é pragmático e bastante pouco lisonjeiro. A deusa recorda à ilha a pobreza aflitiva do seu solo, o quanto ela é inóspita e inabitável, o quanto ninguém a quer, o que continua a ser verdade hoje como no século VII ou VI a.C., quando este hino foi composto. Ainda hoje, quase nunca ninguém dorme em Delos. A ilha, com as suas ruínas que atravessam diferentes séculos, que vão do período em que Naxos floresceu como potência das Cíclades até quase à decadência do império romano, é de uma esterilidade austera, pontuada de promontórios e ervas daninhas que se estendem por um solo pedregoso. É também profundamente caminhável e é possível percorrê-la a pé num só dia, qualquer coisa nela faz pensar na beleza violenta de Apolo, torna lógico o pensamento de que, quase imediatamente depois de nascer, o deus parte de Delos para matar Píton e instituir o seu outro santuário, em Delfos, de onde as pessoas receberiam dele esse dom ambíguo e angustiante da profecia, que não pertence ao mundo de um entendimento aberto, essas frases que uma sibila proferia em delírio, sondando em quem a escutava a perfeita intersecção entre uma profunda angústia e uma esperança irracional. Por alguma coincidência difícil de explicar, o Hino Homérico a Apolo é o único texto homérico que encerra uma descrição vagamente física e biográfica da voz a que chamamos Homero. Pedindo a um grupo de raparigas que não se esqueçam de mencionar a quem por elas passasse quem era o melhor aedo que elas alguma vez tinham escutado, ele pede-lhes que elas digam que é ele, o cantor cego da ilha de Quios. É para mim um momento de uma intensa emoção, esse breve acidente do registo da voz muito remota de um poeta muito arcaico, que foi passando de sopro em sopro até chegar a nós. O motivo pelo qual eu amo os clássicos, penso, tem menos que ver com a sua eventual sabedoria, amo-os às vezes mais nos seus erros e nos seus acidentes, nas suas intricadas encruzilhadas cómicas, como aquelas que vêm narradas por exemplo no Hino Homérico a Hermes, nas trocas entre Apolo e esse outro deus, bem diferente dele e para mim mais benigno, o motivo por que amo os clássicos, dizia, tem qualquer coisa a ver com o espanto perante esse cuidado de tentar cuidar e preservar essa memória de mortos muito longínquos. Os gregos, que se preocupavam tanto com a memória, apreciaram isso. Esse cuidado é uma das poucas coisas que está entre nós e a história da destruição que parece em nós por vezes obscenamente natural de escrever. E, já agora, também esse amor cego da destruição vem dos gregos, basta pensar na trajectória de Aquiles.

Delos

O que me leva de novo a Delfos. Da última vez que lá estive, há cerca de duas semanas, observei como as temperaturas se têm mantido tão altas que as folhas das árvores de folha caduca mal chegaram a mudar de cor. De alguma forma, a angústia da terra sente-se, respira connosco até no ar em Delfos. Haveria a perguntar o que é que a relação dos gregos antigos com Apolo, para eles ao mesmo tempo o deus da poesia e da profecia, nos diz da nossa relação com a linguagem e com o modo como ela pode construir ou destruir o mundo. Muito haveria a dizer sobre isso, eu queria apenas acrescentar que, pensando sobre Delfos e sobre a dádiva mais ambígua de Apolo, a da profecia, essa voz interior que vinha, para os gregos, de um lugar anterior à inteligência, me ocorre que ela na verdade servia, ou parece-me que servia, para pelo menos tentar rejeitar o lado absurdo do mundo, fixar na escuridão desesperada do que ignoramos, a rota de um caminho, a sua visão mais ou menos desajeitada. E que isso talvez fosse uma tentativa de não acrescentar mais absurdo ao mundo.

Da mesma forma que continuo sem poder dizer se o mundo é sagrado e tem um centro, e se esse centro será Delfos – talvez o mundo tenha vários centros, de que Delfos seja apenas um – posso, no entanto, confirmar que o complexo arqueológico continua a conter uma próspera família de gato cinzentos, de alucinantes olhos amarelos, da qual se distinguem claramente pelo menos três gerações. Porque são gatos de Delfos, pode deles ser dito, com a aprovação do deus, que há neles qualquer coisa de sibilino, oracular. Essa qualquer coisa de sibilino e oracular pode, ou não, apontar para alguns versos que Sophia escreveu, de resto num livro preocupado com as relações entre nomes e coisas, O nome das coisas, em que num poema intitulado “A forma justa” encontramos os seguintes versos. São talvez os meus versos favoritos de Sophia:

Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

sacerdotes de apolo em delfos, séc. XXI d.C.

Como alimentar uma guerra

Victor Gonçalves, traduz um artigo publicado no jornal Le Monde do historiador russo Sergei Chernyshev (cf. pequena nota no final). Interessa-lhe reverberar essa perspectiva porque, à semelhança de Svetlana Aleksievitch no magnífico O Fim do Homem Soviético, Chernyshev mostra uma realidade que escapa à maioria dos analistas: a de como o «verdadeiro povo russo», provinciano e conservador, patriota e pobre, sem mundo e com uma noção arcaica de heroísmo alimenta de bom grado uma guerra meio idiota, assimétrica e injusta (jurídica e moralmente). Alimenta-a nas urnas e com soldados, dos bons: acríticos e capazes de se sacrificarem pela Heimat. Os filhos desses combatentes honram e admiram os pais. Não estamos, pois, próximos do fim da agressão russa à Ucrânia, a ideia de que se combatem nazis e o Ocidente por inteiro permanecerá durante muitos anos nos cérebros confinados a horizontes minúsculos dos camponeses e dos habitantes das pequenas cidades da Rússia provinciana. Um maná para Putin e seus companheiros de fortuna.

«Os meus pais viveram durante vinte anos no “sector privado” de uma grande cidade. É o que os russos chamam a um bairro onde existem casas individuais ou pequenos bairros sociais. É um canto de vida rural integrado no tecido das grandes cidades. Não há estradas alcatroadas nem redes de esgotos (embora todos tenham instalações sanitárias); o telefone e o gás chegaram há cerca de quinze anos.

Ter gás significa que, no inverno, já não é preciso carregar carvão em baldes do barracão para o fogão duas ou mesmo três vezes por dia. O gás continua a ser um luxo, não está disponível em todo o lado. Há cerca de dez anos, começaram a aparecer carros estrangeiros diante das vedações. Nos últimos cinco anos, nada mudou.

Este verão, depois de um fim de semana, fui buscar o meu filho a casa dos meus pais. “Vem antes das 10 horas”, disse-me a minha mãe. Cheguei às 10 em ponto. Às 11, estava a ser organizado um funeral numa rua próxima, no “sector privado”. Às 11 horas, chega o sobrinho do “dirigente” do bairro. Ele é uma pessoa respeitada, uma espécie de chefe. O seu sobrinho, que morreu durante a “operação militar especial”, deve ser tratado com dignidade; as pessoas devem vir honrar a sua memória.

Mobilizado na primavera, combateu durante seis meses, depois voltou de licença e partiu novamente. No próprio dia em que chegou à Ucrânia, esteve debaixo de fogo. Só regressaria a casa num caixão de zinco com uma pequena janela selada. Eis porque tive de ir buscar o meu filho às 10 horas: a minha mãe sabe que não vejo com bons olhos a sua participação nesta comemoração.

Na rua dos meus pais, há outro “herói de guerra”: um ex-soldado Wagner, antes um criminoso empedernido, que vive com os pais. Desde que me lembro, ele esteve sempre na prisão, por pequenos furtos ou atos de vandalismo. Saía e, passados alguns meses, voltava a beber e a roubar e acabava de novo atrás das grades. Se, durante esses meses de liberdade, desaparecesse alguma coisa de um jardim ou de uma casa do bairro, ele era o primeiro a ser suspeito. Hoje, tem uma medalha e um carro novo. Levou os pais a passar férias junto ao mar. Eles ter-se-ão enchido de lágrimas de orgulho.

Do outro lado da rua, há uma mulher que trabalhava como condutora de elétrico — o que talvez explique o facto de ser conhecida pelos seus palavrões. No último ano e meio, diz que o genro tem pensado cada vez mais em alistar-se. Afinal, os empréstimos não se pagam sozinhos. Um outro vizinho morreu por causa dos seus empréstimos. Afundou-se no álcool, o coração falhou e, antes da primavera, toda a rua veio enterrá-lo também.

Vivi nesta rua durante dez anos. Os meus pais ainda lá vivem. É aqui que têm a sua banya [“banho de vapor”], a sua garagem, a sua horta — não como “esses apartamentos como os vossos, onde se vive uns em cima dos outros”. Quanto aos veteranos Wagner do bairro... A questão hoje é: onde é que eles não estão? Penso nesta rua sempre que vejo um daqueles debates clássicos do YouTube entre emigrantes “liberais” que explicam que, sob a pressão insuportável das sanções, não vai demorar muito até que a população compreenda que o “regime de Putin” lhes tirou tudo. As pessoas compreenderão e, esperemos, revoltar-se-ão. Talvez não se revoltem, mas pelo menos sabotarão o regime. Ou algo do género.

Álcool e prostitutas sem limites

Ludmila Petranovskaya, uma psicóloga de renome, tentou recentemente fazer uma lista de todas as perdas sofridas pelo povo russo, para mostrar que “nem todos os russos beneficiam com esta guerra”. A sua lista inclui: o colapso da moeda e dos valores mobiliários; o encerramento global das fronteiras aos turistas russos; o fim das oportunidades de estudo no estrangeiro para os jovens; a restrição dos direitos e liberdades civis; a degradação da educação e da cultura; a separação das famílias devido à emigração, etc. Depois de ler esta lista, agradeci mais uma vez ao destino por não ter nascido em Moscovo e por ainda não ter perdido todo o contacto com a realidade.

Porque se considerarmos que dois terços da população russa são “o povo russo”, então “o povo russo” não perdeu nada disso. Pela boa razão de que nunca o teve. A última vez que o cidadão comum teve dólares nas mãos foi em 1997, e não passou de uma curiosidade. Nunca foram ao teatro e nunca se aperceberam de que os maiores realizadores tinham abandonado a Rússia, deixando-os também sem nada.

Os seus filhos frequentam a mesma escola que eles próprios frequentaram. Por vezes, com a mesma professora, que tem agora mais de 70 anos. Nunca lhes ocorreu que a educação pode ser dada sem gritos, ou que não seja proibido andar no relvado. E se as suas famílias foram “separadas”, foi apenas pela prisão, mobilização ou contratos de serviço militar. Nunca partiram para a Geórgia ou o Cazaquistão — porque nenhum dos seus pais foi mais longe do que a sua própria cidade.

Os preços subiram nas lojas. Mas quem é que está a contar com as lojas? As pessoas têm batatas e frascos de pepinos nas suas caves para todo o inverno. De uma maneira ou de outra, havemos de aguentar. Por isso, no final, as pessoas não perderam nada. Porque não têm nada de especial a perder. Mas o que é que ganharam? Bem, ganharam muito. E, antes de mais, muito dinheiro. Na cidade natal da minha mulher (não tão grande como a nossa, mas muito mais industrial), um homem voltou para casa [dos combates] com 3 milhões de rublos [30 595 euros] que ele e os amigos delapidaram em dez dias, 300 000 rublos por dia cada um, em álcool ilimitado e prostitutas: isto é que é boa vida!

Muito dinheiro sem grande esforço

Os que têm família regressam e vão passar férias à beira-mar, compram apartamentos e trocam de carro. Além disso, têm a sensação de fazer parte de algo grande. Tal como os nossos avós lutaram contra o fascismo, nós estamos a lutar contra o nazismo na Ucrânia (e onde quer que ele se encontre). Ao mesmo tempo, estamos a lutar contra os gays, os judeus, todo o Ocidente, os maçons, todo o mundo.

A geração mais velha regozija-se com o regresso dos pioneiros, com o treino militar nas escolas, com os uniformes escolares e, de um modo geral, com tudo o que marcou a sua juventude. Já não era sem tempo. Os jovens de hoje iam dar-se mal! Por isso, há muito a ganhar, e tudo isto é feito com muito pouco esforço, muitas vezes sem sequer ter de sair do sofá.

Então, o que é que podemos oferecer a estas pessoas que, graças à guerra, ficaram ricas, enobrecidas aos seus olhos, como reis? Filmes sobre os palácios de funcionários corruptos? Mas as pessoas já sabem há muito tempo, desde os anos 90, que estão a ser roubadas. Nada de novo. Discussões sobre o facto de os que ficaram serem culpados dos crimes do regime? Debates sobre a democracia e os direitos humanos? Relatos trágicos sobre a prisão de Evguenia Berkovitch [encenadora detida em maio] ou de Grigory Melkonyants [codiretor do grupo independente de observação eleitoral Golos]?

Mas quem são exatamente estas pessoas? Ninguém falou delas na televisão ou na Internet. Esta torrente de dinheiro — que, mesmo depois de anos de trabalho, nunca ninguém teria ganho —, associada a um tal sentimento de grandeza, é um cocktail explosivo. É porque as pessoas se recusam a compreender isto que ainda se surpreendem com o facto de, nas últimas eleições, a maioria dos habitantes das zonas rurais (e não das grandes cidades) ter votado em governadores nomeados pelo Kremlin e pelo “partido do poder”, apesar de terem sido eles a suportar o custo da mobilização.

Adesão sincera

Foi este cocktail explosivo que levou as avós às urnas — com vestidos comprados há vinte anos — para votarem no regime. A sua adesão é sincera: o regime, acreditam, está a preparar-se para construir um grande país, livre dos seus inimigos, claro. Nas nossas conversas de intelectuais que esperam que o pesadelo acabe em breve, esquecemo-nos disto: as centenas de milhares de homens e mulheres que já participaram na guerra atual e no processo de “reconstrução dos novos territórios” têm milhões de filhos.

E esses milhões de filhos estão convencidos de que os seus pais e mães estão a fazer um ato heroico. Acreditam sinceramente nisso porque não conseguem conceber que os seus pais sejam monstros. Estes milhões de crianças usam todos gravatas tricolores no dia 1 de setembro, o primeiro dia de escola, veem os mesmos programas na televisão, ouvem as histórias dos seus pais sobre os ukropy (termo pejorativo para designar os ucranianos) e atravessam, com ou sem os seus pais, as ruínas de Marioupol quando vão de férias à Crimeia.

Para que o arrependimento público após a guerra seja possível, teremos de esperar que estas crianças cresçam e tenham os seus próprios filhos, e que lhes seja explicado — a estas crianças que ainda não nasceram — que os seus avós cometeram atos indignos. É mais fácil ouvir falar de avós do que de pais. O arrependimento interno, e não apenas o arrependimento público, começou na Alemanha nos anos 70, precisamente quando os filhos dos filhos dos nazis se tornaram adultos.

Só, pois, no final da década de 2040 é que será possível falar das perdas que a sociedade russa sofreu efetivamente em consequência da guerra em curso. Nessa altura, pelo menos algumas pessoas estarão a ouvir. Nessa altura, aliás, os professores cujas carreiras começaram sob Brejnev terão finalmente deixado de exercer a sua profissão. Entretanto, o povo vive talvez o melhor momento das suas vidas. Claro que alguns deles regressam regularmente da guerra em caixões de zinco. Mas, pelo menos, toda a rua está lá para assistir aos funerais. E é isso que faz renascer os valores tradicionais.

Sergei Chernyshev, historiador, vive em Novosibirsk (Sibéria Ocidental), onde fundou várias instituições de ensino que continua a gerir apesar das pressões das autoridades. Tal como muitos opositores e ONG, é classificado por Moscovo como “agente estrangeiro”. Uma versão longa do seu texto foi publicada pela primeira vez em russo no site Sibir.Realii, a secção da Sibéria da Radio Liberty, um meio de comunicação financiado pelo Congresso dos EUA.»

CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.