Dois cantos de "Arcano 13"


Patrícia Lino, Arcano 2

Patrícia Lino, Arcano 2

Poemas de Marcelo Ariel &  Guilherme Gontijo Flores
Desenhos de Patrícia Lino

Canto 8

 

Até as pedras largadas
talvez mudas
escaldadas sob o sol
junto das costas caladas
numa grandeza solene
trinam memórias do passado
ligadas à sina do meu povo. 

Até o pó sob os teus pés
responde mais amor
aos nossos passos do que aos teus
são as cinzas dos nossos ancestrais
e os nossos pés descalços sabem
seu toque simpático
porque o chão é rico
da vida desta raça. 

Os valentes morenos
e as mães carinhosas
e as jovens alegres
e as crianças pequenas
que aqui viveram e sorriram
de nomes hoje esquecidos
ainda amam estes ermos: 

seus refúgios profundos
no entardecer crescem de sombras
com a presença de espíritos.

Fala o chefe Seattle
numa língua transcrita
e traduzida
e ainda que traída
dali floram fermento e fogo
calcinando mentes
feito neve na língua
abrasa até os dentes
feito flecha estacada
crânio adentro
ainda aduba o mundo.
Esta é a fala de neve e brasa
de flecha e adubo
porque isso somos
até o fim do mundo.
 

E quando o último vermelho
morrer sobre a terra
e sua memória entre os brancos
virar um mito
estas costas vão fervilhar
com mortos invisíveis desta tribo. 

E quando os filhos dos teus filhos
se acharem sozinhos no campo
no armazém na loja
numa estrada ou no silêncio da mata
não estarão sozinhos:

nada na terra tem lugar
dedicado à solidão. 

À noite
quando as ruas das tuas cidades e aldeias
quedarem caladas
e acharem que estão desertas
vão se apinhar com a volta de hóspedes
que antes enchiam
e ainda amam
esta terra linda. 

O branco nunca estará sozinho
que seja justo
e lide bem com o meu povo:
os mortos não restam sem poder.

Patrícia Lino, Arcano 8

Patrícia Lino, Arcano 8

Canto 9

 

Após os oitenta tiros
retornará
o grão da voz
de Evaldo dos Santos Rosa
através do sabiá
cantando na beira do Rio. 

Tradução do canto
do pássaro:  

‘ Que o encantamento gere
encantamento.
Não celebro,
lamento que breves sejam
as sessões do amoroso
pensamento. 

A pressa em não-saber
trará a cegueira
das vozes
silenciadas antes
que sejam,
através da alma
esboçada
como a beleza
do copo de leite
em sua brancura
de metáfora
da morte
de uma estrela
distante. 

E então tudo será reencontrado.

Serão unidos os cantos lentos  dos céus
e para sempre refeitos
os silêncios  do mundo em ruínas
e o silêncio do canil Krishnamurti.  

Pelos quartos abandonados
uma revoada de pássaros irá dormir
e veremos o sol morrendo
mudo como um olho fechado
e feroz feito pedra afundando.’
~

DE KOONING

“Eu evito “acabá-la”. (…) E estou

sempre algures na pintura”

- De Kooning

                               I

Se De Kooning fosse português

teríamos apenas dois quadros e seis desenhos.

Portugal – essa entidade abstrata mistura de bom e ruim – teria

como bem sabemos amordaçado o seu pescoço até ao

último sufoco. Tê-lo-ia cedo pendurado na praça do

gozo e do desprezo. Seria apenas mais um entre vários suicidas!

Tê-lo-ia silenciosamente enterrado num qualquer

cemitério de província.

Mas cinquenta anos depois teria já feito as devidas homenagens.

Nasceriam assim penas e penas escritas em antologias elogiosas.

Iria pedir a todo e qualquer poeta de serviço poemas dignos de limpar o cu.

E aos prosadores (onde andam esses?) teria pedido longas narrativas

para encher o fosso daquilo que meteu

no lixo.

Recuperado o artista era agora possível estendê-lo como

uma pastilha elástica por todo o retângulo. E assim

a pequena exposição

seria

do Norte às várias ilhas

o acontecimento do ano.

seria uma máxima ao vento uma a dizer a todos

Somos um país culto!

 

Mais vale uma sardinha no prato do que um De Kooning na parede!

Dirão muitos. Ora aí começa exatamente o problema…

                                  II

De Kooning para minha alegria não era português! Uffa!

E assim este poema já é possível com várias pinturas.

Antes de mais é preciso dizer que ninguém me encomendou

este poema. Os poetas não comem. São umas putas sem boca.

Este poema também é preciso dizer não vai enquadrar nenhum

artigo numa qualquer página de jornal ele não consegue ser tão

mau por isso não é aceite. E além disso convém dizer que não

se destina a cair nas boas intenções de uma galeria moderna.

Vou aqui dividir De Kooning em quatro partes essenciais

sobre as quais não vou dizer nada. Nada? Sim vou falar de

De Koonig sem falar dele. Assim vamos ter: períodos de mulheres

Desertos de 58 Carnes vivas de 60 a 70 e finalmente a belíssima

languidez dos 80.

                                     III

É preciso toda esta explicação para os meninos perceberem.

Lá está. É preciso um poema que explique aquilo que não era

suposto explicar um que diga: Senhor leitor coloque aqui o seu

pé depois a testa ali e vai em frente.

Pensando bem teria de recuar ainda mais: Quem é

afinal o De Kooning? Alguém pergunta. Bom querido leitor

vou fingir que não ouvi esta pergunta e vou continuar pode ser?

É que é cansativo ter de explicar o uso da palavra X

e Y em cada frase que se usa. Eu sei Eu sei este é

um discurso um tanto ou quanto irritante mas

tenho de ser irritante para ao chegarem ao fim

dizerem Ele tem razão! Mas se não o fizerem

não fico magoado

já estarei noutro poema

e este ser-me-á totalmente indiferente.

Não fico magoado porque lá no fundo

também conheço bem as linhas como que me coso.

                                    IV

Período das mulheres. Dona Olga ilustre defensora das

mulheres já veio a público dizer que alguns dos meus poemas

são um atentado aos bons costumes ao nome e trabalho das

mulheres. Caro Vítor Teves que tem a dizer sobre isso?

“Misógino é coisa que nunca fui. Toda a mulher

 tem o seu devido valor até mesmo a chata da

Dona Olga que passa a vida a policiar as palavras

e as intenções dos outros. Outro dia por usar a

palavra “Mulata” fui racista. Ora “Mulata” são

as bolachas açorianas da Moaçor. São uma delicia!

Hoje sou misógino na quinta fui racista e amanhã

serei homofóbico coisa que o meu namorado já me tem

vindo a dizer sempre que lhe digo que o arroz tem muito sal.

Sobre o período das mulheres pouco sei confesso!

Sobre o período de De Kooning das Mulheres gosto imenso.

A minha mulher preferida é a “Mulher V” aquela que traz

o Báton esborratado. Lembra-me a Barbara Stronger à saída

da discoteca às 07h da manhã toda bêbada e descabelada.

Era uma grande Mulher!

                                      V

Auto-estrada de Montauk. Muita coisa acontece nas auto-

-estadas dos Estados Unidos. Mas ali não há nenhum sangue na

longa planície deserta. O deserto imenso absoluto lindo. Nele não

portas para o rio apenas o

tédio de domingo à tarde.

O Longo longo tédio de

uma longa longa

estrada.

                                      VI

Carnes de 60. Um par de Accabonac. Como

se a carne deslizasse sozinha sem o suporte

dos ossos. Amores em espera vestidos de

pinceladas e massa cor-de-rosa.                         

                                    VII


A languidez. A plana e lenta pincelada desce pelas

curvas do teu ventre e a sensual linha sobe ao

teu lábio superior. No caminho

a paisagem diz ao corpo:

Juntos para sempre!

                 

                                   VIII

E chego ao ponto – aqui – a este – em que tenho de

reescrever tudo. Pois está visto ser poeta e pedagogo

dentro do mesmo poema não funciona

são águas que não se misturam.

Outro dia voltarei a De Kooning e claro

aí ninguém me vai perceber.

Olha que bom!

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Criação

Pierre Bonnard, Paraíso Terrestre, 1916-20

Pierre Bonnard, Paraíso Terrestre, 1916-20

vieram
em vários camiões
baldes e baldes
ao terceiro dia
ficaram sem azul
tantos céus
é o que dá
a seguir o verde
ao quarto dia
as folhagens
durante milénios
por terminar
ao quinto dia
amarelo e vermelho
o sublime
teve de ser
racionado
na conclusão do crepúsculo
o sexto dia foi
de acabamentos e limpeza
ao sétimo
os anjos descansaram
fizeram um piquenique
vieram as famílias
eles
ainda de fatos-de-macaco
um deles
o de sobretudo cinzento
(começava o outono dos homens)
ergueu-se sobre os campos
dedilhou triste
a rebeca que trazia

Anne Sexton, "Velha"

anne.jpg

tradução: Bruno M. Silva

Tenho medo de agulhas.
Estou farta de lençóis de borracha e tubos.
Estou farta de rostos que não conheço
e agora parece-me que a morte começa.
A morte começa como um sonho,
cheio de objectos e do riso da minha irmã.
Somos jovens e caminhamos
e colhemos mirtilos selvagens
a caminho de Damariscotta.
Oh Susan, ela disse,
manchaste o tua nova cinta.
Doce sabor –
a minha boca tão cheia
e o doce azul acabando-se
a caminho de Damariscotta.
O que estás a fazer? Oh, deixa-me em paz!
Não vês que sonho?
Num sonho nunca tens oitenta.

Old

I'm afraid of needles.
I'm tired of rubber sheets and tubes.
I'm tired of faces that I don't know
and now I think that death is starting.
Death starts like a dream,
full of objects and my sister's laughter.
We are young and we are walking
and picking wild blueberries
all the way to Damariscotta.
Oh Susan, she cried,
you've stained your new waist.
Sweet taste –
my mouth so full
and the sweet blue running out
all the way to Damariscotta.
What are you doing? Oh, Leave me alone!
Can't you see I'm dreaming?
In a dream you are never eighty.

ESTA PUTA NÃO MORRE e outros poemas

     ESTA PUTA NÃO MORRE

Depois de vinte e cinco anos a me

promover nesta esbelta revista de ouro

aqui estou eu de barriga à mostra

neste largo porto pronto para negar que

me tenha aproveitado em momento

algum dos seus serviços. Ela perdeu o

cabelo não traz já as tetas tesas que

me prometeram as musas no meu

encontro no NorteShopping entre a

compra das bolachas marias e a velha

cerveja preta. Esta não é a puta que eu

desejava por isso venho aqui registar

o meu desagrado por tão velhas tetas.

 E sentado o velho aedo na cadeira de

palha azul um jovem de vinte e seis

entristecia os lábios e sorria à velha

puta. Deu-lhe mesa cama lavada e

todo o cuidado que tão bem merecia.

Encheu-a de beijos vestiu-a era vê-la

dia para dia cada vez mais velha mais

feia perdendo a pele do rico nariz os

lábios cada vez mais secos a voz cada

vez mais pobre. E a velha nunca mais

morria. Essa puta nunca mais morre!

diziam os que passavam na triste rua.

E o aedo perdendo forças protegia-a

dia após dia chuva atrás de chuva e

ela a velha puta cada vez mais feia

cada vez mais velha. E quando faltou

forças ao já velho aedo a puta abriu

as pernas e lá estava a mais bela flor.

Morto o aedo a puta cobriu-lhe de

flores e fez do seu túmulo fonte de

pedra para corvos lagartos e larvas.

Sobre o musgo o velho nome da feia

puta que nunca morria: Poesia. Sim

esta puta tão feia nunca mais morre!

O NOVO VELHO DO RESTELO

No passado é que era. Toda aquela

glória todo aquele poder aquele sabor

de frenéticas imagens que nos roíam

as mãos dentro dos pés. Dos louros

corpos flamejantes de metáforas dentro

de metáforas que nos desequilibravam

o fio da espinha dorsal e nos atiravam

para o chão feito charcos em pleno

verão. No passado é que era no tempo

em que eu ia à praia com o meu caderno

de fita azul e o livrinho poético brilhava

entre os dedos. Sempre entre os dedos.

No passado é que era. E hoje o mundo

está perdido totalmente perdido pois as

metáforas mirabolantes as ejaculações

precoces já não nos ferem os olhos a

dentição mais fina da pele as melodias

encantadoras e extasiantes de ser jovem.

No passado é que era. Porque a poesia

já não canta não encanta o encantamento

da vida (da jovem vida) que eu tinha em

tempos. Amanhã à mesma hora aqui no

banco e quero-te ereto como manequim

sobre belos poemas de amor e morte.

No passado é que era. No tempo em que

o tempo era sangue e a pressa aqui não

estava toda apressada dizendo o quão

lento sou o quão lento vejo e o quão

velho estou. E é aqui fechado neste frio

poço onde o tempo parou por momentos

que me sinto finalmente no trono de rico

opressor. No passado é que era porque

a poesia estava viva e hoje está morta. O

pão não tem sabor e esses meus dentes

podres já não seguram o vivo sabor das

maças. E é aos olhos que o sal faz mais

falta perderam o sabor de controlar a

melancolia e sonham a juventude perdida

e nada tem mais sabor tudo sem odor.

No passado é que era meus amigos. 

SOTAQUES DO NORTE

Do Norte para o Norte

dos lhes em i

para os vês pelos bês

E eu ia à ia

verão a verão

e visitava Balongo

de longe a longe

“Os frios do norte

corroem a língua

trazem ao poema

ferros enferrujados”

disse Dona Olga

E eu defendendo as

vivas falas fico (por

momentos) sem saber

se termino a frase que

lhe envio com caraios

ou com caragos

Melhor será enviar-lhe

em caixa aquilo que

mais tem falta: Coiões

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Giorgione - “A velha”, c. 1508.