Um mapa da cidade

 Thom Gunn

Tradução de Tatiana Faia

 

Estou no cimo de uma colina e vejo
abaixo de mim um luminoso país onde revejo
que nele pelas duas tem o marinheiro ébrio de tecer;
a pausa transiente, o seu marinheiro desaparecer.  

Reparo, ao descer o olhar pela colina
em braços pousados numa janela de esquina;
E na teia de escadas de incêndio segundo as normas;
Move-se o possível, as cinzentas formas. 

Aí agarro a cidade, completa;
E cada forma de luz repleta
É minha, ou corresponde a minha,
Aquela intermitente aquela outra firme brilha. 

Este mapa é território do meu deleite.
Entre os limites, noite após noite,
Observo o avanço da doença que traz a morte,
Reconheço o meu amor da sorte. 

Vejo nas luzes recorrentes
Possibilidade sem limites,
O apinhado, estropiado e inacabado!
Por nada quereria esse risco mitigado.   


A MAP OF THE CITY

I stand upon a hill and see
A luminous country under me,
Through which at two the drunk sailor must weave;
The transient's pause, the sailor's leave.

I notice, looking down the hill,
Arms braced upon a window sill;
And on the web of fire escapes
Move the potential, the grey shapes.

I hold the city here, complete;
And every shape defined by light
Is mine, or corresponds to mine,
Some flickering or some steady shine.

This map is ground of my delight.
Between the limits, night by night,
I watch a malady's advance,
I recognize my love of chance.

By the recurrent lights I see
Endless potentiality,
The crowded, broken, and unfinished!
I would not have the risk diminished.

3 Fragmentos de Safo

45

ἆς θελετ᾿ ὔμμες

enquanto desejares

47

Ἔρος δ᾿ ἐτίναξέ μοι
φρένας, ὠς ἄνεμος κὰτ ὄρος δρύσιν ἐμπέτων.

E o amor varreu o meu
coração, como o vento na montanha desce sobre os carvalhos.

50

μὲν γὰρ κάλος ὄσσον ἴδην πέλεται ⟨καλος⟩,
ὀ δὲ κἄγαθος αὔτικα καὶ κάλος ἔσσεται.

é pois apenas belo de ver aquele que é <belo>
enquanto aquele que é bom de imediato será também belo

Ésquilo, Agamémnon, 123-246

A minha tradução do Agamémnon de Ésquilo sairá com a edição de amanhã do jornal Público. Deixo aqui um dos meus passos preferidos. Tem lugar no párodo (o canto de entrada do Coro); o Coro, um grupo de anciãos, tenta interpretar um sinal que parece anunciar que o exército e o rei Agamémnon regressam triunfantes da guerra. Mas um temor incerto fá-los recordar um episódio que teve lugar dez anos antes, aquando a partida do exército, em que o rei sacrificou a própria filha para apaziguar a cólera de um deus e permitir que a experdição militar possa partir.
O párodo do Agamémnon é a secção lírica mais extensa que nos chegou da tragédia antiga. É também uma das mais belas.


CORO (Cantando e dançando)

Então, o prudente profeta do exército, vendo os dois, distintos em temperamento,
os dois belicosos Atridas, reconheceu nas devoradoras de lebres
os comandantes supremos do exército e assim falou, interpretando o prodígio:   
“Com o tempo esta expedição tomará a cidade de Príamo
e todos os numerosos
rebanhos das gentes[1] acumulados diante das muralhas o Destino saqueará
pela força.
Mas que ressentimento algum vindo dos deuses
obscureça com um golpe antecipado o grande freio de Tróia
pelo exército em formação. Em sua compaixão é aborrecida a casta Ártemis
pelos cães alados de seu pai
que a pobre lebre, antes que desse à luz a sua prole, sacrificaram.[2]
Ela abomina o festim das águias.”
Um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

epod.
“Tão graciosa é Hécate[3]
para com o orvalho indefeso dos feros leões
e para com as crias de leite
de todos os animais selvagens tão amável,
por isso pede que os prodígios se realizem,
a visão favorável, porém reprovável, †das aves†.
Mas suplico ao Péan[4] que acorre aos agudos lamentos
que contra os Dânaos nenhuns ventos adversos, retendo por longo tempo as naus em terra,
ela prepare, precipitando assim um outro sacrifício, sem música e sem festim,            
artífice de discórdias nado e criado na família,
que não teme homem algum[5] – pois permanece pronta a reerguer-se uma temível
e enganadora governanta, a Cólera que não esquece, vingadora dos filhos.”  
Estas palavras Calcas
proferiu, acompanhadas com a promessa de grandes bens,
quando leu no presságio das aves à partida o que estava destinado para a casa real.
Em consonância
um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

estr. 2
Zeus, seja ele quem for, se por este nome
lhe é caro ser chamado,
por este nome o invoco.
Com nada o posso igualar,
tudo pesando,
senão com o próprio Zeus, se do pensamento esta vã angústia                                   
é necessário realmente expulsar.

ant. 2
Daquele que outrora era grande[6],
transbordante de uma audácia capaz de tudo desafiar,
não se dirá sequer que foi.
E o que se lhe seguiu[7]
logo partiu ao encontrar o vencedor que o derrubou três vezes[8].
Mas aquele que de coração despojado o hino vitorioso de Zeus cantar
alcançará a suma sageza;                                                                                             

estr. 3
pois é Zeus que os mortais na senda do conhecimento
guia, que a aprendizagem por meio do sofrimento
estabeleceu como lei absoluta.
Goteja sobre o coração em lugar do sono
a mágoa que memora a dor. E, ainda que indesejada,
a sabedoria virá.
Onde é a graça dos deuses,
violentamente sentados no augusto assento do timoneiro?

 
ant. 3
E então o mais velho dos comandantes[9]
das naus dos Aqueus,
não recriminando adivinho algum,
conspirou com a sorte que o feria,
enquanto a demora devorava as provisões
e oprimia a multidão aqueia,
acampada defronte de Cálcis[10],
nas costas de Áulis, onde a rebentação ruge continuamente;

estr. 4
os ventos que do Estrímon[11] sopravam
um tédio nefasto, a fome, a má ancoragem,
o desvario dos homens, não poupando naus nem amarras,
tornavam a espera duplamente longa,
com o desgaste consumindo
a flor dos Argivos; e quando um outro
remédio mais pesado
do que a amarga tempestade o adivinho proferiu
aos primeiros do exército,
declarando Ártemis responsável, então, batendo com os ceptros
no solo, os Atridas
não contiveram as lágrimas,

ant. 4
e o mais velho dos chefes ergueu a voz para falar:  
“Sorte pesada é não obedecer,
pesada também se esquartejar a minha filha, jóia do meu lar,
manchando as mãos paternas
na corrente do sangue de uma donzela imolada
junto ao altar. Qual destas está isenta de mal?
Como me hei-de eu tornar um desertor das naus
falhando para com a aliança?
Pois o sacrifício
que acalme os ventos à custa do sangue de uma virgem desejam
com desejo extremo, mas proíbe-o
a Justiça. Oxalá tudo corra pelo melhor!”

estr. 5
Mas quando a si ajustou o jugo da necessidade,
do espírito soprando um vento de mudança ímpio,
impuro, sacrílego, então
mudou o curso do pensamento para a maior das audácias –
pois torna audazes os mortais a de vergonhosos conselhos,
a miserável demência, princípio da desgraça. E assim ousou
tornar-se o sacrificador
da filha como auxílio
para uma guerra vingadora de uma mulher
e sacrifício preliminar[12] à partida das naus.

ant. 5
Das súplicas e apelos ao pai
não fizeram caso, nem da virginal idade,
os juízes enamorados pela guerra.
Aos servos o pai, depois da prece, ordenou
que, como uma cabra, sobre o altar,
a que as vestes do pai com todo o coração abraçava, inclinada para a frente
a erguessem,
e que a bela proa da boca
selassem como vigia
contra alguma palavra de maldição para a casa

estr. 6
por meio da força de um freio e da violência emudecedora.
Quando já o seu vestido tingido de açafrão[13] pendia para o solo,
de seus olhos lançava ainda a cada um dos sacrificadores um dardo
piedoso, destacando-se como numa pintura, desejando
chamá-los pelo nome, pois outrora muitas vezes
nos hospitaleiros banquetes de seu pai
havia para eles cantado, a virgem que com voz pura a libação
terceira[14] do pai
amado com um péan[15] amoravelmente honrava.

[1] Expressão ambígua: significa ao mesmo tempo “rebanhos que pertencem ao povo” (o passado mítico em que a tragédia é projectada não conhecia ainda a cunhagem de moeda, por isso os rebanhos representam a riqueza da cidade), mas também “rebanhos de gente”, “rebanhos constituídos por gente”.

[2] Verso ambíguo. Em grego pode também significar: “que a sua própria filha, infeliz e cheia de medo, diante do exército sacrificaram.”

[3] Hécate era originalmente uma divindade infernal, mas como divindade tutelar dos partos e protectora dos recém-nascidos era por vezes confundida com Ártemis.

[4] “O que cura”: epíteto de Apolo, cuja intervenção é aqui implorada também na condição de irmão de Ártemis.

[5] Expressão ambígua: ao mesmo tempo “que não teme homem algum” ou “que não respeita homem algum”, i.e., que desrespeita a vida humana, e “que não teme o marido”.

[6] Úrano.

[7] Cronos, filho de Úrano, que venceu e depôs o pai.

[8] A imagem reporta à luta do pancrácio, onde o lutador que por três vezes derrubasse o adversário vencia o combate. O vencedor é Zeus, filho de Cronos.

[9] Agamémnon.

[10] A expedição grega reuniu-se em Áulis, na costa da Beócia. Diante de Áulis, do outro lado do Euripo, ficava a cidade de Cálcis.

[11] Rio da Trácia.

[12] Ver nota 8. Talvez se trate de uma alusão à variante do mito segundo a qual Ifigénia foi convocada a Áulis sob o pretexto de ser desposada por Aquiles (como na Ifigénia em Áulis de Eurípides).

[13] O vestido tingido de açafrão simbolizava uma transição bem-sucedida da infância para a idade núbil; o facto de Ifigénia o usar pode ser uma outra alusão ao pretexto por meio do qual foi trazida até Áulis.

[14] A terceira libação dos banquetes era em honra de Zeus Sôtêr (Salvador), tratava-se de um ritual com o fim de afastar os males e atrair prosperidade.

[15] Em geral, o péan era um hino em louvor de um deus olímpico (normalmente Apolo).

Safo, fragmento 4

Tradução de Tatiana Faia

4.

] coração
] inteiramente
] eu posso,
]
] seria para mim
] acender-se em resposta
o be]lo rosto
]
] quando tocou
]


]θ̣ε θῦμον
]μι πάμπαν
]δύναμαι,
]
]ας κεν ἦ μοι
]ς̣ ἀντιλάμπην
]λ̣ον πρόσωπον
]
    ]γ̣χροΐσθεις
           ]’[ . . ]ρος̣

Texto Grego: Eva-Maria Voigt (ed.), Sappho et Alcaeus, Fragmenta (Athenaeum - Polak & Van Gennep, Amsterdam, 1971)

Canal I: Um poema de Katerina Iliopoulou

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

A voz de Katerina Iliopoulou é uma das mais importantes da poesia grega actual, tanto pelo seu trabalho poético em si, quanto pela sua crença na arte como expressão de um momento colectivo, que pode ser idiossincraticamente partilhado por vários num mesmo espaço, como sucede na revista de que é a editora responsável, Farmáko (FRMK): Uma revista para a investigação do fenómeno poético. Farmáko quer dizer remédio. A sua é uma poesia preocupada com a reinterpretação de mitos e lugares e com o que é artesanal, expande-se para incluir animais, memórias de gestos artísticos perfeitamente anónimos (como aquele que é recordado no poema que aqui publicamos) e, sobretudo, parece-me ser comprometida com a ideia, como se lê num dos seus livros, de que a poesia é uma estratégia para viver porque o mundo não é uma obra acabada, é um espaço para onde dirigimos o nosso olhar interrogativo e, no qual, a partir desse olhar, escrevemos e somos escritos, gestos que acrescentam qualquer coisa que vai para lá da realidade, que por si não basta. Talvez seja por isso que os poemas de Katerina Iliopoulou parecem por vezes crónicas atentas e tensas de pequenas metamorfoses (a do mergulho de um pequeno nadador, ou a que se sofre ao atravessar um campo) e talvez por isso os achemos tão necessários. É uma grande alegria para nós poder partilhar alguns poemas seus na Enfermaria 6. O seu perfil está disponível aqui.

Tatiana Faia



CANAL I

Aprisionados no antes e no depois
deitamos olhares furtivos ao espelho
nele o nosso rosto endurecido e marcado
Em frente a estrada,
o rosto imaculado da juventude.
Aqui, juntos, no mesmo corpo.
Não se foi embora
não é um caminho que possas tomar,
nem um novelo que se desfie até ao fim
ai de nós, não
É uma concha que se contrói internamente
sem que se consiga ver a saída
sem que se descortine uma direcção
Um desígnio desconhecido
insaciável
E a viagem não é chegar mas descoser.
Desfaçamos pois as costuras.
A minha avó descoseu
um fato de homem inteiro
numa só noite
e voltou a cosê-lo do princípio
do avesso
Duplicava assim a sua vida
do avesso
O percurso tem duas direcções
cada momento
múltiplo cada momento
para a frente e para trás
e do início, várias vezes a mesma estrada.
Não era artimanha mas mestria.
Porque sem o conhecimento de um artesão tudo se perde duas vezes.
Como presente e como memória.
Deixa o tempo fluir
A provação é a passagem
Que encontres modo de passar até pela casa dum botão
Não se trata de avançares mas de aconteceres.