“O mundo é das crianças, de vozes assassinas,”
- Yvette K. Centeno
Como sou um beto de letras e um privilegiado em tempo de pandemia, resolvi escrever estas pequenas notas. “Beto”? “Privilegiado?” Sim, estão a ler bem. Embora esteja sempre a ridicularizar os “betinhos de letras” (fechados nas suas bolhas), eu próprio acabo por não conseguir fugir a essa categoria, claro, isto visto de baixo. Se visto de cima sou um mero arruaceiro, um tipo sem qualquer educação ou “classe”. O “bom português” adora ver as coisas assim: uns por baixo, outros por cima; uns de nível, outros sem nível; o mesmo é dizer: Hierarquia, Ordem & Obediência. Santa Paciência! E como, bem sabemos, o “esforço” é apenas deles, brandam aos céus, como “vítimas”, os seus grandes esforços. O esforço, o trabalho duro, a luta é sempre deles, dos outros tudo não passa de um arranhão. Eu sou o privilegiado e eles são as vítimas do sistema que ajudam a manter. Dito assim, tudo soa àquilo que é, uma verdadeira piada.
Então, este privilegiado resolveu tirar uma hora e ler a revista Nervo #8. Este foi o primeiro número que comprei e li com atenção. A seu favor o baixo preço, o que é raro: 6,50 – o que estimula a compra. Outro aspeto muito interessante é a igualdade de género- cinco Homens e cinco mulheres – mesmo sem sabermos se, efetivamente, Leonor Sobral é ou não uma mulher, isto porque há a indicação de tratar-se de um pseudónimo. Outro aspeto muito positivo é a secção dedicada à tradução e a outros autores de outros espaços geográficos. Deste número, gostei particularmente dos poemas de Alexei Bueno, Jorge Roque (que me impressiona sempre) e Yvette K. Centeno. Sendo desta última, creio, o melhor poema deste número, o poema “Um Villon português”. E antes de voltar aqui, queria pegar no prefácio/introdução da revista: “Como sobrevive um poeta…” da autoria de Maria F. Roldão.
Ora, pegando na introdução ficamos a saber alguma coisa. Ficamos a saber que grande parte dos nossos poetas, de uma maneira ou de outra, exerceram uma profissão ligada ao ensino, à edição, a bibliotecas, etc… Um texto em que o tom de: “apesar das dificuldades”, foram desenvolvendo uma extraordinária poesia. Há algo nesse texto que não bate certo. É um texto que dizendo uma coisa, quer transparecer, exatamente, o seu oposto. O corolário do texto é o último parágrafo, na parte em que há a tentativa de “disfarçar a coisa”, corrigir aquilo que se transmitiu antes , ou seja, que para ser-se poeta é necessário exercer funções de editor, professor, bibliotecário… Nesse último parágrafo lemos: “A verdade é que o “ofício” de poeta é absolutamente transversal a todas as áreas profissionais e académicas e é possível encontrar um bom poeta [e a GRANDE DESCOBERTA:] em qualquer contexto socioprofissional”.
Aqui faço um parênteses: vou fazer a lista de gente com muito talento – os da minha geração - e os seus ricos trabalhos: Call Center; caixas do Continente e Pingo Doce; cafés, restaurantes e bares noturnos; explicações em centros de estudos; lojas de roupa; tabacarias e postos de turismo; desempregados e muitos recibos verdes, etc… E, claro, uma minoria a dar aulas e outra minoria (um ou dois) a trabalhar em algum jornal arranjado pelos pais. Perceberam a ideia? Posto isto, é preciso dizer que o texto não fala das dificuldades de Fernando Pessoa; dívidas da Luísa Neto Jorge; do “ódio” de Nava em ensinar, etc…
Algo não bate certo nesse texto porque é como se a “realidade estivesse a ser vista com uma lupa relativamente opaca”, um não ver bem a realidade. As intenções podem ter sido boas, mas o resultado é muito “ambíguo”. Lembra aqueles discursos de: “EU não sou racista, MAS não compreendo os PRETOS”. E, no fim do último parágrafo, a verdadeira estupidez: a indicação de que os grandes poetas do passado deveriam ter tudo à sua mão para produzirem “MAIS”, ou seja, um corte fundo entre as dificuldades da vida e a poesia, isto é, um corte entre Vida e Poesia. ISTO, SIM, seria muito mais produtivo, aponta o texto, teríamos muito mais poesia (a narrativa do Mais e Mais e Mais)… NADA MAIS RIDÍCULO, FALSO. Quem garante que teriam, tendo todas as boas condições aos seus pés, escrito o que escreveram? Quantos bons poemas não são escritos a sangue e a suor? Creio que é uma visão distorcida da realidade; é, parece-me, uma visão de “Bolha”, de alguém que escreve para as redomas lá de casa.
É claro que o texto se concentra no passado, é preciso dizê-lo, mas traz em si o “tom que não devia trazer”, o tom que sugere que a BOA poesia, essa, só pode ser feita por alguém que exerce profissões próximas do ensino ou da edição (A retórica dos iluminados!). Quanta poesia escrita, hoje, por ilustres editores, professores universitários, bibliotecários não merecem já o caixote do lixo? Um texto introdutório com esse teor, em 2020, é uma espécie de piada de mau gosto, parece-me, pela simples razão que anuncia a toda uma nova geração a seguinte mensagem: “Se queres ser poeta, cria a tua revista, dá aulas ou vai trabalhar para alguma biblioteca”, caso contrário não és Poeta. Pode facilitar, mas não é “condição para”. Se assim fosse teríamos um poeta em casa escola e biblioteca do país.
Esse texto confunde duas coisas distintas: Profissão e Educação; posso ter um trabalho banal, simples e ter a maior das educações. O que tenho visto mais ao meu redor é gente cheia de talento e com ótima educação em trabalhos simples. Aliás, tendo em conta o sistema atual é muito provável que o bom poeta seja aquele que trabalha no café da esquina, aquele que se “NEGA” a compactuar com o sistema oco e podre. A título de exemplo, lembremo-nos do filme “Paterson” (Jim Jarmuch, 2016): o poeta, o bom poeta, é este homem do autocarro, um homem num trabalho normal, simples e sujeito aos problemas do quotidiano –o cão que rasga todos os seus poemas e, mesmo assim, continua a escrever. Como alguém já escreveu: “A poesia está na rua!”. Não nas redomas cheias de pó lá de casa.
Voltemos ao poema de Yvete Centeno. Só me apetece dizer que é uma pérola, um belíssimo poema. Não fiquei indiferente, pelo contrário, tocou-me. Conhecia o seu nome, mas nunca a li com atenção, talvez, confesso, por algum preconceito meu. Mas alguém que coloca na sua nota biográfica a frase - “É casada, tem quatros filhos e 15 netos” antes da sua formação académica, merece atenção. O poema fala do choque de gerações e do ser-se esquecido. Embora compreenda e entenda o que o poeta/sujeito poético quer dizer, é preciso dizer que talvez não seja bem verdade. Talvez ainda haja gente nova que queira descobrir a sua poesia. Eu quero.
Ao ler o seu poema, lembrei-me de todas aquelas mulheres artistas com 80 anos, ou muito mais anos, que só são descobertas no fim da vida, lembrei-me desse universo feminino e esquecido. Yvete Centeno não é propriamente uma mulher esquecida de muitos, mas, ao mesmo tempo, é-o porque há toda uma jovem geração, a minha, que não a conhece, pelo menos enquanto poeta. Talvez seja tempo de ir à procura da sua poesia, de a ler com atenção, de a redescobrir ou descobrir, de a valorizar. É um percurso que me interessa fazer depois de ter lido aquele poema – “Um Villon Português”. Acho-o muito bonito e só apetece dizer-lhe, a essa senhora, mulher já na casa dos 80, que talvez não fique totalmente esquecida. E que talvez sejam os “vilões”, deste banal filme, os primeiros a reconhecer e a anunciar que ela “não está a mais na imagem”, os primeiros a anunciar que ela deve ser parte integrante da “Imagem”, desta teia que a Poesia Portuguesa.
Mesmo não gostando da introdução, por achar distorcida – uma bolha disforme - recomendo a leitura da revista. Traz bons poemas e há que valorizar uma nova corrente de boas revistas de poesia que por aí andam, assim como o esforço de quem as faz. Depois de mim não é o Dilúvio, mas, sim, a Mudança – “aquela que eu já não entendo porque o meu tempo passou”. Esta é a minha mensagem para os mais velhos, aqueles que tanto se atormentam com o que produzem as camadas mais jovens. A poesia, meus bons senhores, vence sempre e, entre tanta porcaria, talvez haja ainda boa poesia, aquela que os nossos olhos viciados não veem. Hoje trouxe a Nervo 8, talvez, quando tiver mais privilégios, traga outras. Andam por aí inúmeras revistas que devemos ler. Para finalizar, destaco, ainda, os poemas de Carlos Alberto Machado, Maria Teresa Horta e Frederico Pedreira.
Vítor Teves
Um privilegiado desde 1983…