O AGUARELISTA DE PONTA DELGADA

"Vladimir: Ontem à noite, era [a árvore] negra e esquelética!

Hoje está coberta de folhas.

Estragão: De folhas?

Vladimir: E só numa noite!

Estragão: Devemos estar na Primavera.

Vladimir: Mas só numa noite."

- À espera de Godot - Beckett (1952)

O AGUARELISTA DE PONTA DELGADA

Sonhei

com este fácil poema de

amor entre o telemóvel e a almofada.

Trazia cedo o aroma do humor

algumas pequenas línguas de rato

mas eu resolvi deixar a morte para o fundo

do penico velho debaixo da cama da Lamarim.

E assim transcrevi o poema.

Dizem que perto das terras do enxofre

as flores amplificam os sentidos 

dos que veem ao passo que os de lá longe

cegam de amargura por não virem no

esbelto catálogo da China.

Trazem os da ilha as mãos de alcatifas 

e entre os dedos

desenham

toda a espécie de bichos raros

milhafres cagarros cobras de lisboa que

surgem na Cova da Moura

e nos mais altos cargos da dor de coto.

E coitados

dai-lhes senhor o sal para os olhos

e mais pigmenta para a língua

(alguma para o cu)

mas lá está o sonho não trazia ferros nem espetos

do inferno. Cruz credo!

E eu no meu pincel

de mão para mão dizia mil coisas 

dançava na mais perplexa rapidez 

tão rápida que não viam a mão anunciando

o raio que lhes fodia.

E a pétala que caía caía

rápida como convém à mais

bela aguarela

rápida linha seca

como se Deus viesse trazer a Turner

a vírgula que lhe faltava no 

plano do vale do diabo

dizia "Pois é".

E o podre homem sorria

pois a cada cobra o seu devido veneno.

E sobre a mesa pintava e

as flores escondiam-lhe o rosto 

o seu segundo Eu

não sei bem qual

dizia à puta da vida 

Vomita!

Vomita novas fitas esterco e 

rápidas linhas

rápidas cores

para que os olhos da negrura

se incham outra vez em devastada mordidela.

E a longa e

velha cidade trazia

em embrulho de prata

o último Grande Segredo da Literatura Portuguesa

(outro cognome)

que no fundo 

imaginem

era afinal 

um aguarelista das terras do enxofre

da cidade de ponta fina.

E eu que sonhei este poema

queria torná-lo diferente elogioso das lides domésticas

da arte de sempre dizer em papel o mesmo. 

Mas em maldição cá estou eu rasgando

as veias do meu pulso

e afastando-me das lides das

velhas capelinhas.

Nomeou-me a liberdade.

Nomeou-me o sonho 

em vassalagem e

eu de joelhos sentindo a espada

que me condecorava o rosto ao título de

Aguarelista do Atlântico. Mas o sonho pouco

sabe de arte e não tem razão.

Pois esse grau tem de ser entregue a

outro de melhor

nome

um que traga o devido sobrenome de

ilha. E o

Poeta e artista de seu 

velho nome 

este 

está feliz

encontrou um idiota

a entregar-lhe um digno

título.

um nobre título

coisa que nunca teve.

Que sorte!

Mas é amanhã é 

amanhã meus senhores que haverá poesia.

Hoje temos apenas pinceladas escorrendo

(tinta ou veneno?)

pelo papel e o 

grande nome da

grande cidade 

que não é a 

minha por inteira

a minha verdadeira

acena de mansinho imitando

Isabel II.

E assim 

resta-me desejar ao

Lautréamont regurgitado

que traga às veias de plástico a raiva ou a poesia

viva

que 

lhe 

falta.

E foi a baba que lhe caiu da boca

(velho bulldog)

raiva e dor de coto que fez este

poema.

Vítor Teves

(Enquanto limava as unhas… )

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Vítor Teves - série sem título, I-X, 2018.

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Vítor Teves - diversas aguarelas, 2018 (A5).

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Vítor Teves - Sem título, 2020.

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Vítor Teves - Sem título, 2020.

Nota 1: Teves pinta com aguarela, acrílico, óleo, tinta-da-china, café, feltro, ferrugem…

Nota 2: Tomara Teves ser um verdadeiro aguarelista, um como Delacroix, Turner ou Klee.

Nota 3: “O nosso dever falar” - Cesariny