[Cheiro a maldade no ar como se]

Cheiro a maldade no ar como se
fosse um outro gás tão real
como a hipótese de ser eu a
fazer as coisas malvadas deste lugar

- Não pode ser no avesso o odor
fruste dos sebastianistas que
vão caindo nas valas da cidade?

Mas como poderia tal estar numa
mistura com a própria maldade
com a presença incolor de uma praga
pesada e escancaradamente humana?

Essa confusão vem do ardil
que sempre preparaste ao sonho
ao novo sol que acorda trazendo a
pureza de um perfume fresco e brando
que limpe toda a cúpula da cidade

Subsisto-me nesta possibilidade
nova da linha que termina o céu
ainda que me entupa sempre as
narinas o infausto tempo presente

[a Ricardo Reis]

a Ricardo Reis

 Mestre

quando a guerra terminar
farei um abrigo de rosas brancas
e lá nos encontraremos
e olharemos o futuro
 em que juntos traremos o rio nos olhos

e conforme dizias
deixaremos que o dia passe leve
e sem pesar
entregando a agonia aos deuses
nossos cuidadores incautos

e ausentes de qualquer enleio
falaremos do exílio na pátria
que não no Olimpo
e soltaremos cada hora
roubada ao nosso momento

quando o dia acabar
e o abrigo de rosas secar
cada um de nós partirá
tranquilo
para o seu jardim indefeso

porque

as nossas mãos continuarão vazias
e os nossos sonhos

esses

estarão guardados no intervalo do tempo

[Vocês pensam que é fácil esta merda?]

Vocês pensam que é fácil esta merda?

há muitas pessoas como esta neste 
bairro muitos homens como este
o casaco verde ruço trepa pelas 
costas quando o resto do corpo se
recolhe sobre a mesa para poisar
o copo servido de vinho tinto
ralha mais alguma coisa sem jeito 
uma frase trivial e desbotada
ainda um som qualquer que vai
sem esperar grande conversa mais 
como um ronco em que adivinho:
vejam saí de casa abri a porta e
desci mesmo aquelas escadas
tirou a boina acendeu um cigarro
a que vida estarei assistindo?
a soleira do café deste bairro 
parece-me um palco digno como os 
que têm os teatros de Lisboa mas falta 
à cadeira malfeita onde me equilibro 
a pompa dos assentos forrados 
daquele vaidoso veludo vermelho 
a que vida estarei assistindo e 
quanto tempo ainda durará?