Ainda o frio

Não tenho estrutura lírica
para as casas frias de lisboa
quando os dias de inverno
pesam nas aves e elas caem
nas águas geladas do tejo  

Quentes só as imagens
no meu próprio corpo
sabor meu que nunca provei 

Donde virá este frio imenso
dizem que do ártico eu penso
que é o bafo saindo da boca
de seres tão gastos tão perdidos
colina acima colina abaixo

Gostava de ir à Grécia

Livaniana fica na Grécia
no árido das montanhas,
o caminho onírico dos nenúfares
enfrenta a terra quente, isolada
como um útero, o acelerador
de partículas sob a foice da lua.
Imagino os gregos de coroas
de estrelas em lugares
onde as abelhas conectam
com o pólen.
Correm mulheres
pelas veias do Verão,
a diástole do corpo verbo,
o azul nos olhos,
bocas em forma de ilha –
as estrias vermelhas
da história.
Escuto as ninfas gregas,
reparo as trajectórias, saltos
de vibração laranja,
explosão invisível
entre as pernas,
o pássaro de fogo.
Solto
voo
e desejo se confundem.
De novo a tragédia grega.

Tremo logo existo

Fazia tanto frio
naquele começo
de dois mil e vinte e um 

início que é quase uma memória
vista da varanda deste
presente onde estamos
sem saber suspensos 

ou sabemos
ou o mundo avança 

no carro mudas
de mudança 

o prazer esquecido
de haver rima
e nomes de no carro
se percorrer a estrada
de haver coisas no mundo
para além do humano 

o verde dos montes
o céu vasto azul
a vertigem
os enxames
os bandos
as alcateias 

o início do ano um peixe
voando nas águas
cristalinas junto ao pé
tão perto e já tão longe
brilhante dorso multicolor
unindo-se invisível
de novo ao cardume
ou em ato fundador

Mudez

Esqueceram-se de contar
que a liberdade continuaria o mesmo invento
num tempo em que amar nunca havia sido tão derrapante
e, sem aviso, ser gente poderia ser uma tortura pálida.
A saída seria a porta da ignorância
porque a tolerância
entre os gritos e as gargalhadas
dos loucos, dos líricos, dos cínicos, dos descrentes
explodiria na cabeça dos afectos.
Esqueceram-se de contar
que chegaria o dia em que apenas se escutavam
vozes soltas,
o último sol da Primavera,
todos os versos seriam enterrados,
a clausura como um cerco de sombras
ao redor do coração.
E seríamos perseguidos,
seguidos, influenciados, consumidos.
Os vampiros das coroas podres,
escravos do medo e do poder,
aniquilavam a história.
Não viveríamos mais hora a hora,
pulsaríamos iguais em cada tempo,
espelhos em repetição automática.
Esqueceram-se de contar
que abafariam o som de todas as canções,
o pássaro azul não voaria mais na gabardine do Cohen,
não subiríamos aos telhados dos vizinhos,
nada de assobios, nada de mãos dadas,
nada de árvores
à beira da fulgência desaparecida.
As árvores contraídas como línguas
que um dia lamberam rios.
Renovar e criar
deixaria de ser uma possibilidade.
Respirar
a chama erótica do corpo
seria o delírio de uma artéria selvática.
Esqueceram-se de contar
o que seria de nós
quando desaparecesse
o cheiro da noite,
quando não houvesse mais ninguém
que trincasse as flores silvestres.
A morte
tornar-se-ia ruga –
espasmo quente da serpente
debaixo da pedra.