Vejo o fim da humanidade e/ é às dezoito e quarenta e nove

Vejo o fim da humanidade e
é às dezoito e quarenta e nove
numa praia em Rodes

Não sei quanto tempo mais
vai durar a bateria
O fim é o de tudo
As três raparigas têm tempo
e rede ainda 
para postar uma última foto
crendo nos ocasos comidos
pela morte do tempo

No que vejo e em mim 
não há talvez já
sombra de humanidade

Um fio puído de verão
um vortíce denso de esfinges
talvez nos sobreviva
e o mar desse azul
mais do que a tua íris
a que compará-la?
que dizer dos que vão morrer

e plantada como uma campa 
no meio desse mar 
(como se pôde esquecer 
tão facilmente os náufragos?)
a prancha corroída italiana 
donde as crianças 
ainda vivas
no abismo futuro 
ou talvez não 
saltam

Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

Dois poema de "Um dia serei humano" de João Vilhena

no fundo da lata busco o prazo
dois do três de dois mil e quatro
tu entras e sais do televisor
como uma notícia vista
em todos os canais
e ris-te da minha precisão
que diferença faz
um dia a menos um dia a mais

na taça já pouco resta da fruta enlatada
no sofá o teu corpo quase morto
é o eco da imagem retida na foto

é difícil tirar os mortos dos vivos
as sombras não têm prazo
nelas está o arrepio dos astros


O dia revelou-se pouco a pouco
sem nunca se mostrar inteiramente
Esticas os lençóis a noite
é uma memória que a tua mão alisa
……………………………………….
Nada se abre a estas horas nem eu nem tu
nem a padaria do lado ser a peça inútil
que resta dum armário montado à pressa
ou dum jogo abandonado de criança
…………………………………………
Isto vem tudo melhor e claramente explicado
numa página exata quem sabe a 44
de um livro talvez por mim em tempos lido

Visões de troia

i

Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo

A pele da Europa revisitada das alturas

i

A superfície do mar vista do avião
parece a tua pele ampliada à lupa 

não minto se digo que desta altitude
está seco ao meu olhar o corpo do Atlântico  

como chora um corpo líquido
senão cuspindo pedras conchas
corpos para quem foram inúteis
as tábuas que também dão à costa 

ii

a abóbada da europa abate-se
sobre os mares e oceano
e sobre as espáduas do Atlas
enfraquecido agora pelos aromas das flores
que em terra se abrem atrozes 

não sobra quase espaço
entre a terra e o mar
e os corpos não param
de dar à costa devolvidos
por terem defeito
ou não agradarem aos compradores
(escolher a opção que melhor se aplica) 

tudo se repete e a cada novo rapto
se soma mais uma gota de violência