Conto de Natal

quando a sereia estava prestes
a iniciar o seu canto
Ulisses disse
                        espera
não te enfadam
as águas geladas?
ofereço-te uma cama quente
peixe com fartura
a oportunidade
de ver o mundo
e a sereia hesitou

na sua gaiola
ela cantava um canto
cada vez mais desesperado
Ulisses exigia aos ouvisses
que pagassem adiantado
antes de serem
levados à loucura
e com cera nos ouvidos
contava o lucro

mas animais selvagens
não duram em cativeiro
a sereia
deixou de comer
o seu canto
cada vez mais estridente
fazia tremer
os madeiros do lenho
enchia de medo
o coração dos homens
e o líder
cedeu por fim
aos princípios
de boa liderança
e teve a coragem
de dar a ordem
para que outros
tratassem do assunto

enlutados os navegadores
prosseguiram a sua viagem
aportaram no Dubai
e lá passaram o Natal
num hotel de cinco estrelas
dissipando o dinheiro
que tinham feito com a sereia
em excessos
de toda a espécie

Fim

Todos esses ténues irmãos

Todos esses ténues irmãos procuram

uma fina brecha no espaço do tempo   e eu digo

o tempo não é como o xaile que vias pousado

ou se fores como eu jamais viste   pousado

na cadeira antiga   e repara   disse pousado

porque pausado seria ainda uma expressão

que nos traria de volta   concentra-te   concentra-te

agora nessa cadeira   e imagina-a sólida

à imagem do teu irmão sentado   como quem

assenta ladrilho   ou assentou   num dia solene

em que se anunciava qualquer compromisso

à fachada de uma coisa qualquer   imagina

essa mesma cadeira coleccionada pelo teu sorriso

isto é   pela ténue brecha que todos os irmãos

nas vésperas de serem condenados sabem abrir

ao céu ou à imortalidade da renúncia   e sabes

nem todos nós conservamos a morte de joelhos

prostrados ou indolentes à espera que se faça dia

desenhando na curva desse xaile a que certa vez

deste o rosto da tua avó   a adivinhação

dos pássaros   nem todos nós deixaram de crer

que quando os antigos falavam do seu voo

isto é   das aves que voam   estavam a falar

dos homens   pouca gente sabe   que atrás

de cada suspensão eras tu que murmuravas   a asa

do tamanho de toda a mais pequena partícula

poucos sabem que não eram os antigos que desenhavam

templos no céu eram os pássaros já que previam

que o tempo se corrompia e desafinava

em pequenos ecos de véspera   ou melhor dito

em laudas tais que os benditos   os certos

eram os que escolhiam passar   como tu

como tua aliás   irmã   ténue irmã

que de alguma forma aprendeste a poluir

com a pontualidade que só os grandes deuses

têm    a pontualidade dessa cadeira onde

dizem   certo tempo se escondiam os ombros

da mãe da tua mãe   onde hoje uma geração

que se esqueceu de se agasalhar se lembra ainda

de uma fina ou quase ténue ruptura   alguns diriam

doce   em que nos conhecemos   isto é

uma ruptura qualquer em que sulcámos

o Elevador do Lavra e nos encostámos

ao assento da madeira   e dentro do amarelo

como só os eléctricos sabem ser   soam

todas as vésperas   ou todos os hinos

que reconhecemos apesar da matéria

tu sabes a que me refiro

àquela brecha   àquela sombra   em que constatámos

para grande incredulidade dos pássaros

e de outras formas de expressão náutica

que todas as vozes que jamais soaram

têm a definição de uma cadeira

ou do colo que a tua avó por vezes

te oferecia   outras te recusava.

haverá cantoria hoje

haverá cantoria hoje
a delegação Sul Coreana
gastou milhares de libras
num sistema de karaoke
de alta cilindrada
todos os reservatórios de lágrimas
se irão esvaziar
quando o grande homem cantar
Always
dos Bon Jovi
aquilo não é carne para o meu dente
disse a Lena
e depois apaixonou-se
por um bêbado que lhe batia
e se vestia de pedinte
quando ia ao médico
para renovar
o atestado de loucura
a sua voz era impecável
quando cantava o fado

domado o intento há ainda
que resolver a questão do canto
a perversa natureza
que nos impele

Tratoria da Ubaldo

depois de subirmos as escadas da torre
alcançarmos a árvore no cimo
atravessámos a piazza vazia
e parámos para comer e descansar
na Tratoria da Ubaldo
onde um pirata cortês
nos conduziu à nossa mesa
e trouxe
uma garrafa
de Vino di Cazzo

di dove sei?
o louco local
di dove sei?
o seu corpo septuagenário
tremia de alegria
Portogallo!
Portogallo!
e cantou para nós
incitando-nos
a que acompanhássemos com palmas
a dança que
em nossa honra
fazia

Sobre o terramoto, à distância

Marija Dejanović
Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

Metade do edifício colapsou
Aquelas paredes que deram asma ao meu irmão 

A outra metade foi de onde
há vinte anos
um vizinho atirou o cão
e um par de anos mais tarde, a si próprio também 

Nos corredores
brinquei com Barbies
e cuspi aguarelas
para pintar a porta do quintal
quando ficava sozinha em casa

Ainda acredito
que não merecíamos os castigos
que se abateram sobre nós

Nas entranhas sinto o pássaro que voa sobre
as casas arruinadas
as traves fendidas
o pranto das bicicletas e as costas curvadas das pessoas

Atravessam em pijamas e chinelos
um mal estar que partilham
como que passando por águas profundas

Lendo
um amigo de infância escrever
que alguém devia finalmente deitar abaixo aquele velho
edifício
porque os seus tijolos caem no telhado da sua casa
sempre que a terra estremece
alguma coisa dentro de mim cai como um tijolo
e fica em silêncio