Las muertes chiquitas - Mireia Sallarès (2009)

tratando de castigar demônios    
e afogar bruxas    
já muita poesia foi desperdiçada.    
"não a sua", eu  sei,    
mas estão feitas as contas:    
da tarde de hoje só se pode levar, além    
da culpa (pérola,    
parte mais preciosa da alma)    
esse pouco de espuma que brilha    
no interior de um copo.    
cada paisagem por que passamos é  também o local    
de pelo menos um crime. aqui,    
onde morrem os cães    
mas não a raiva.    

Escrever, após o horror

Escrever, após o horror, 
talvez mantenha um homem vivo – 
mas qual o poema das noites brancas 
entrevistas pelas cortinas da sala? 
Diante da janela, o perfil de uma palmeira 
em pétrea imobilidade, uma criança chora, 
descerro a cortina, pressinto o luar 
para lá do prédio defronte, no gramado 
a relva judiada, a persistência dos grilos, 
a sutil, a misteriosa incorporação 
de tudo a um cristal já trincado. 
 
Tenho a ternura. Mantenho-a. 
Sou o mesmo das garapas na praça. 
O mesmo que não recusa esmolas. 
O mesmo das buscas dos gatos da avó 
pelos telhados da casa eterna, 
pisando com cuidado, sentindo ranger 
a telha fria sobre os meus pés 
no instante em que alguém lá embaixo morre. 
O mesmo que temia a porta fechada 
no fundo de um corredor catacumba 
(a mãe alquebrada e eu Pietá 
de um poema desesperado, caminhando por entre 
miasmas de cigarros e culpas irremíveis). 
O mesmo dos poemas que floresciam 
ainda quando não havia um tema, 
ainda quando sequer existiam poemas. 
O mesmo. Mas até quando 
ou ainda no esquife serei o de agora? 
 
 Carrego a ternura como um vaso de flores 
trazido dos lugares da infância 
(a terra apodrecida, as raízes mal cheirosas). 
Digo a ternura com um hálito de palavras mortas 
mas não importa – tenho-a aqui, 
sinto-a embotando os meus olhos com a visão 
de uma centena de negros acorrentados, 
zune-me aos ouvidos como um festim 
de vidas destroçadas; demônio 
dos silêncios pacientes e furiosos; 
aneurisma que me sangra o nariz e os versos; 
gangrena que me amputa a mão esquerda 
(também sou gauche, mas sem anjos tortos 
a me anunciar um fado diferente daquele 
que cai sobre tantos irmãos destros): 
 
pesa-me, enfim, como se fosse cansaço o poema revela-se cascalho 
do caminho íngreme, os passos somam-se 
aos ecos da tarde, prolongados cantos de pássaros 
roucos, há terrenos baldios 
e mesmo casas desabitadas, à espera 
de um homem e seu método. 
 
Pálido poema das noites brancas 
apenas entrevistas por rendas rasgadas: 
és tão lívido, faltam-te riquezas 
mas o que sei? Há quem fale do sol: 
a mim, parece mais a moeda de centavos 
esquecidas nos bolsos de alguma calça: 
paga-me uma garapa nas tardes de sábado 
ou é a esmola que oferto a um esfomeado 
com a ridícula certeza de ser bom.

 

SUSIE AND THE MERMAN

Os gregos antigos e os nativos americanos não sabiam, mas deram o mesmo nome à Ursa Maior.    
(Desculpe se te dou notícias velhas)    
A constelação sequer parece com um urso, parece?    
Não, não parece.    
Não deveríamos acreditar tanto nesse tipo de milagre.    
Aos franceses parecia uma caçarola, aos nórdicos a carruagem de Odin, aos egípcios um    
carro de boi.    
(E o que mais você viu na vida foram milagres)    
Qual a diferença?    
Bom, a mim parece um joystick com fio.    
Posso configurá-lo:  

-Prima Dubhe para fazê-la girar sobre o próprio eixo.    
-Prima Merak para fazê-la adormecer.    
-Prima Megrez para fazê-la redistribuir a temperatura.    
-Prima Alioth para fazê-la recordar conversas antigas.    
-Prima Benetnasch para fazê-la trocar de anéis.    
-Prima Phecda para para trazê-la para perto se estiver longe e para longe se estiver perto.    
-Prima Mizar para fazê-la despertar em duas tentativas.        
-Prima Alcor para fazê-la respirar mais devagar.    

(Desculpe se não lhe dou notícia alguma)    
Não há o que se fazer com elas - mas o que mesmo você pretendia fazer com uma notícia?    
Eu já não me chateio mais com esse tipo de coisa.    
Agora peço ao carteiro que deixe sempre a minha correspondência no café ao lado.    
Digo-te uma frase que ouvi: "Não há duas pessoas no mundo que comam da mesma
maneira".    
Digo-te uma coisa que lembro: o ritmo de um número de telefone.    
E que os cavalos marinhos também não se lembram de  seus próprios nomes se eles tiverem
mais de três sílabas.    

Dois poemas de Ernesto von Artixzffski

 Ernesto von Artixzffski, aka Sergio Maciel

Sobre minha casa arde a chama da possibilidade.
O jardim é incerto
e meu cão azul, sem razão, dorme ao pé da porta.
Tudo acontece aqui.
Meu quarto e minha sala estão no mundo.
Sou feliz e a flor da morte curva-se no canto do quintal. 

*

As sombras ainda giram,
na grama,
em torno das pedras.
O tempo não nos pertence mais.
O amor repousa sobre o fogo dos dias.
Quem era de acordar já caminha
— agora, tudo é sono.