Escrever, após o horror,
talvez mantenha um homem vivo –
mas qual o poema das noites brancas
entrevistas pelas cortinas da sala?
Diante da janela, o perfil de uma palmeira
em pétrea imobilidade, uma criança chora,
descerro a cortina, pressinto o luar
para lá do prédio defronte, no gramado
a relva judiada, a persistência dos grilos,
a sutil, a misteriosa incorporação
de tudo a um cristal já trincado.
Tenho a ternura. Mantenho-a.
Sou o mesmo das garapas na praça.
O mesmo que não recusa esmolas.
O mesmo das buscas dos gatos da avó
pelos telhados da casa eterna,
pisando com cuidado, sentindo ranger
a telha fria sobre os meus pés
no instante em que alguém lá embaixo morre.
O mesmo que temia a porta fechada
no fundo de um corredor catacumba
(a mãe alquebrada e eu Pietá
de um poema desesperado, caminhando por entre
miasmas de cigarros e culpas irremíveis).
O mesmo dos poemas que floresciam
ainda quando não havia um tema,
ainda quando sequer existiam poemas.
O mesmo. Mas até quando
ou ainda no esquife serei o de agora?
Carrego a ternura como um vaso de flores
trazido dos lugares da infância
(a terra apodrecida, as raízes mal cheirosas).
Digo a ternura com um hálito de palavras mortas
mas não importa – tenho-a aqui,
sinto-a embotando os meus olhos com a visão
de uma centena de negros acorrentados,
zune-me aos ouvidos como um festim
de vidas destroçadas; demônio
dos silêncios pacientes e furiosos;
aneurisma que me sangra o nariz e os versos;
gangrena que me amputa a mão esquerda
(também sou gauche, mas sem anjos tortos
a me anunciar um fado diferente daquele
que cai sobre tantos irmãos destros):
pesa-me, enfim, como se fosse cansaço o poema revela-se cascalho
do caminho íngreme, os passos somam-se
aos ecos da tarde, prolongados cantos de pássaros
roucos, há terrenos baldios
e mesmo casas desabitadas, à espera
de um homem e seu método.
Pálido poema das noites brancas
apenas entrevistas por rendas rasgadas:
és tão lívido, faltam-te riquezas
mas o que sei? Há quem fale do sol:
a mim, parece mais a moeda de centavos
esquecidas nos bolsos de alguma calça:
paga-me uma garapa nas tardes de sábado
ou é a esmola que oferto a um esfomeado
com a ridícula certeza de ser bom.