Terceira Margem

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Poesia de Portugal e do Brasil

Editado por
Francisca Camelo
Bruno M. Silva
J. Carlos Teixeira
Vítor Teves

Prefácio de Pedro Eiras

 Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2019, 174 pp.

Capa de Gustavo Domingues

14€

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Para revelar o sabor das coisas, para saber o que já se sabia, não há regras, há apenas escritas, procuras, experiências e encontros, a muitas vozes e a muitas mãos – por exemplo, vinte e duas mãos de poetas e poetisas, entre Portugal e o Brasil, vozes que descrevem, revelam, diagnosticam as avarias na máquina do mundo, vozes que se enervam, ironizam, por vezes escondem a dor numa fuga em frente, vozes ríspidas, oníricas, ternas e lentas e velozes ao mesmo tempo, vozes imprevisíveis, que coincidem num mesmo presente e o multiplicam por outros tantos tempos, vozes, idiomas.

Pedro Eiras, “Como se revela o sabor das coisas”

 

EU E MINHA PRIMA MÍOPE

 -me salve
-você conhece aquele poema que descreve um casal dormindo?
-e que começa falando das partes do corpo que estão em contato
-"o queixo dela nas costas dele" -"o ombro dele no cotovelo dela"
-"o calcanhar dela na coxa dele"
-de uma forma que até um determinado ponto poderia ser tanto a descrição de uma briga
-como de uma transa entre contorcionistas
-mas no final dá pra perceber que é só um casal dormindo de conchinha
-e apesar do início do poema passar uma sensação de desconforto físico
-ele termina com algo parecido com
-"pelo menos assim parece/que eles estão indo na mesma direção"
-nossa, eu consigo quase reescrever o poema na cabeça
-mas não tenho idéia de quem seja
-de qual é o título
-se o autor é brasileiro ou não
-nem de onde o li pela primeira vez
-estou há duas horas no google tentando achar e nada

Las muertes chiquitas - Mireia Sallarès (2009)

tratando de castigar demônios    
e afogar bruxas    
já muita poesia foi desperdiçada.    
"não a sua", eu  sei,    
mas estão feitas as contas:    
da tarde de hoje só se pode levar, além    
da culpa (pérola,    
parte mais preciosa da alma)    
esse pouco de espuma que brilha    
no interior de um copo.    
cada paisagem por que passamos é  também o local    
de pelo menos um crime. aqui,    
onde morrem os cães    
mas não a raiva.    

SUSIE AND THE MERMAN

Os gregos antigos e os nativos americanos não sabiam, mas deram o mesmo nome à Ursa Maior.    
(Desculpe se te dou notícias velhas)    
A constelação sequer parece com um urso, parece?    
Não, não parece.    
Não deveríamos acreditar tanto nesse tipo de milagre.    
Aos franceses parecia uma caçarola, aos nórdicos a carruagem de Odin, aos egípcios um    
carro de boi.    
(E o que mais você viu na vida foram milagres)    
Qual a diferença?    
Bom, a mim parece um joystick com fio.    
Posso configurá-lo:  

-Prima Dubhe para fazê-la girar sobre o próprio eixo.    
-Prima Merak para fazê-la adormecer.    
-Prima Megrez para fazê-la redistribuir a temperatura.    
-Prima Alioth para fazê-la recordar conversas antigas.    
-Prima Benetnasch para fazê-la trocar de anéis.    
-Prima Phecda para para trazê-la para perto se estiver longe e para longe se estiver perto.    
-Prima Mizar para fazê-la despertar em duas tentativas.        
-Prima Alcor para fazê-la respirar mais devagar.    

(Desculpe se não lhe dou notícia alguma)    
Não há o que se fazer com elas - mas o que mesmo você pretendia fazer com uma notícia?    
Eu já não me chateio mais com esse tipo de coisa.    
Agora peço ao carteiro que deixe sempre a minha correspondência no café ao lado.    
Digo-te uma frase que ouvi: "Não há duas pessoas no mundo que comam da mesma
maneira".    
Digo-te uma coisa que lembro: o ritmo de um número de telefone.    
E que os cavalos marinhos também não se lembram de  seus próprios nomes se eles tiverem
mais de três sílabas.