Anunciação

Eu estava aqui
eu estava exatamente aqui

E te digo
te digo inúmeras vezes que
Eu estava aqui
exatamente

E a música da Tulipa Ruiz com o Jeneci
começa a tocar

mais uma vez
por inúmeras vezes
te digo.


2.

E se eu fosse um retrato?
Um quadro na parede a te observar?

Se eu observasse teu corpo permanecer
e teus olhos em mim

Tu fingirias um movimento
abririas a boca e (...)

 

3.

já é um novo carnaval
já é um novo eco
e novas gerações


4.

Tu buscas o impossível pretérito
e permeias todos os mares.

 

5.

Pregam-me na parede
com pregos sinestésicos:

Eu sou o delta que
carrega calamares

Mar adentro.

 

6.

Ó ilhas perenes
e seres fusiformes

Organismos metamórficos
que penetram e
fecundam
o tal tempo híbrido

Sejam vós os espias
a desfrutar do sal desta terra
e a dominar as máquinas
deste universo
Sejam vós a desmaiar os sentidos
e em suspensão
amalgamar vossas raízes
para que reverberem
o céu ensaístico que
amanhece as ruas oportunas.


7.

De dentro das entranhas carnavalescas
as árvores abanam suas fuças;

Daqui a 2 ou 3 éons
as pedras aprenderão a falar
e não haverá ser que
reproduza os diálogos desta
que será uma língua arcaica-oral.


8.

Eu masturbo minha existência
e descubro sozinho que quando
uma porta é atravessada
ela deixa de existir.

 

9.

Mas, me diga

o que é o infinito quando comparado a nós?

Epítome

Ela tem a idade das flores
e o vermelho dos dias
e o azul dos ventos

e todas as esquinas param
quando eu a vejo.

Nunca reconheci as distâncias
entre os tempos, nem fui ao mar
depois que minha consciência
se firmou sem as rodinhas;

Mas tenho praticado com afinco
a observação dos postes e suas luzes,
do amor das árvores com os fios de energia,
da luxúria de cada janela e da interminável
solidão das construções no horizonte
da cidade.

Tenho corrido com esses pés de pato
através deste lamaçal que é o agora.

Num instante, ainda a chegar,
a abrangência das portas assumirá
um caráter mítico
e tudo que tenho dito fará sentido
– e, então, será esquecido.

 

[ver perfil de Victor Prado]

“a melodia do olho”

nicholas ray fazendo a barba com barbeador elétrico
na cama com a bunda de fora
na limousine vestido de paletó e gravata
nicholas ray tossindo no silêncio da noite
nicholas ray calado no cinema durante dez anos
nicholas ray morrendo de câncer
e fumando diante das câmeras
nicholas ray o sujeito que escreveu
experimentar a morte sem morrer
me parecia um objetivo natural

nicholas ray cujas imagens
da errância revelam por um instante
à razão de 24 fotogramas por segundo
quantos passos em chamas uma existência
caminha ao longo de uma vida
nicholas ray fazendo da ordem
"go ahead, cut"
suas últimas palavras
o gesto poético derradeiro
de quem sempre doou ao mundo
a melodia incerta e certeira
de seu único olho nicholas ray
um homem que sempre filmou
à altura da vida
e que se deixou filmar
à altura da morte

Apreço pelo passado

E isso é história: a sombra retorna,
sussurra seu nome em bocas futuras (...)

Dirceu Villa

 

apreço pelo passado:
se é caro o que é querido
quem aprecia é o mesmo
que sabe o preço de algo. 

contemos em
nossos pés
um cúmulo
infindável
de passos.

mas pelo que
barganharemos
nossos mortos?

            que consciência
            se entranharia
            na anônima

            ascendência
            de nossos
            ossos? 

‘quem somos?’:
medula a pergunta
com a qual
sonhamos
              a pergunta real,
              a pergunta impossível:

‘depois de tudo,
com quem, afinal,
nós vamos?’

nós somos

A grande verdade sobre todos nós é que todos
nós somos alguém que não somos:
a dolorosa vítima de ontem ou talvez,
com menos alarde e sem qualquer ênfase,
o secreto algoz do amanhã.
Somos todos nós algo que já existia
em qualquer manhã de sangue e horror
antes de nosso nascimento e sob o luar
somos todos o amor renovado apesar
dos mananciais da loucura e do ódio.
Nós somos todos porque tantas vezes
é preciso dar nomes aos aos cordeiros
e então somos todos Heitor
forte, sem os calcanhares de Aquiles
e ainda podemos ser todos Quixote
ou – e quem pode dizer o contrário? -
talvez sejamos todos Rocinante a pastar
a grama verde enquanto no céu
os abutres volteiam e a má sorte
se consuma: aquelas nuvens tão
brandas, amontoados de espuma
que, quando muito, traziam uma vaga
melancolia, mal o sabíamos,
era a neblina que nos cercava,
tripulantes caducos de um navio
que ancora num porto devastado
e ainda antes de dizermos “tarde demais”
murmuramos – como que diante
do espelho – todos nós somos
o outro e ao mesmo tempo
não somos e nesse ser ou não ser
talvez alguém minta: A grande verdade
é que todos nós somos Hamlet
embora muitos não sejam príncipes
e tantos outros sejam os assassinos
do rei – o que importa? O que talvez
defina o herdeiro do trono roubado
é uma certeza que todos nós temos: existe
algo de podre infestando os ares
como a lembrança de um pesadelo
que nos sobressalta sem nos despertar,
que nos leva a um sonambulismo
tão eloquente, a ânsia de gritar
“nós somos” porque, não fosse assim,
o que seríamos nós
além do mais negro silêncio?