são as mãos; é mais fácil; não é assim que se desconstrói

 

são as mãos—
as mãos, os dedos
este emaranhado
de linhas

são as mãos
que cravam
buracos
como touros
e seus chifres
no tórax
de um toureiro
espanhol

são as mãos
que moldam
derretem
geram
outros incêndios

são as mãos—

balançando as folhas
como uma brisa
da montanha

são as mãos
           de safo


é mais fácil
ter facas à mão
do que frutas
o açúcar
que se oferece
frente ao gume

é mais fácil
se manter à
cozinha do
que à cama
por causa
do fogo
das facas
como diz
o poema
               I sharpened knives
               All night.
               To welcome you
               In the brilliance of their blade,

é mais fácil
aos que correm
com facas
construir uma
casa
em meio de
chamas


não é assim que se desconstrói
uma casa começa-se sempre
por objetos afiados

e onde os guardamos

    gavetas armários armários
    dentro de outros armários

começa-se pelas facas
tesouras
vidros with sharp
edges
uma casa começa
sempre
pela cozinha

não é assim
que se constrói
uma casa
dizem
é pela base
e pelas colunas

a cozinha sempre
vem depois
das colunas das janelas
e por vezes
dos quartos

os objetos cortantes
devemos guardar
debaixo de travesseiros
não em gavetas
distantes 

devemos dormir
na cozinha onde
há facas fogo e fica
fácil escapar &
destruir tudo aquilo
que chamam
              casa

Verbo transitivo direto; XII; Terceiro dia de equinócio; Estação; Dos gatos

 

 

VERBO TRANSITIVO DIRETO

Como dançam os cavalos
estendo o corpo à direita feito colar rasgo o dia
reunindo trêmulos espaços

eu estendo em vertical o meu braço
o cotovelo,
o antebraço,
o pulso e os dedos no ar
como quem busca e atira uma flecha.

 

 

XII

Caminho pelas ruas pedindo licença por ser mulher
Caminho pela casa da mãe pedindo licença por ser triste
Caminho entre os amigos pedindo licença por ser criança
Caminho entre os amores pedindo desculpa por ser simples
E no arrebol, quando o coração em claroescuro desdobra e acelera em trottoir
Coloco meu casaco ocre, busco
na noite
pés pra caminhar.

 

 

TERCEIRO DIA DE EQUINÓCIO

A guerra dentro e fora, e ainda assim
é preciso
abrir o cabelo
vestir as mesas
encontrar os papéis, rasgar os papéis, escrever os papéis, e depois
(encontrar os papéis, rasgar os papéis, escrever os papéis, e depois)

tatear com
o cu
o espaço.
Sentar os olhos de Kenna sobre o umbigo insone,
acariciar os mapas geográficos e acordar a voz das rochas.
Dançar na saliva das plantas,
cavar os silêncios,
comer os encontros,
chorar como o mar abraça as conchas.
Farejar memória e caminhar esquecimento.
Um cavalo de fogo lambe os buracos no meu dorso. Nada espera.

 

 

ESTAÇÃO

Cuidado: veículos
Para a sua segurança este veículo possui dispositivo que só permite a sua movimentação de portas fechadas
Atenção: mudança de linha
Acesso não permitido
Mind the gap

(Não são as palavras se formando aqui e agora que constroem o espaço. Mesmo que os teus olhos, a tua boca, o teu nariz, os teus ouvidos, as tuas mãos sobre esse meu corpo, fossem meus olhos, minha boca, meu nariz, meus ouvidos, minhas mãos. É o espaço. Upu que mora entre o meu umbigo e o meu sexo, que forma as palavras - estado democrático de direito - passos em busca da Terra sem Mal.)

Deixe a esquerda livre
1 - Puxe a alavanca
2 - Empurre a janela

 

 

DOS GATOS

Teu nome
na minha boca
carrega a mesma dor
dos gatos que cruzam agora no telhado.

 

Para o homem isolado no fundo do ego

 

Oferece agora uma hipótese
para sua solidão exacerbada
baseada na natureza
uma possível solução também
à deriva não te deixarei
embora mereças
há uma baleia no fundo do mar
fadada ao isolamento
por estar desafinada – 52 hertz –
na vocalização de seu som
releia
nada? não adianta ajustar o tom
querendo conquistar 52 hearts
apenas pare com suas cantadas

Tutano; Alucinação; Aurora; Quando quase...

Tutano

hoje
tudo parece claro:
a casa que me legaste, 
de alicerces
pouco profundos
e paredes frágeis,
não podia ser reparada.
do cálcio dos meus ossos
-em vão-
então
preparei a argamassa
que não se deixava fixar
aos tijolos:
escorria pela sarjeta
em direção ao oceano,
moldando peixes de pedra.
da tua face
igualmente
quase nada restou.
as poucas fotografias que eu trazia
lentamente foram se
apagando
roídas pelas traças
e pelo tempo.
do tutano
-então-
em vão
extraí a goma
com a qual ambicionei repará-las,
ignorando o fato
de se esfarelarem
ao toque.
tive de me contentar
então,
desde sempre,
com tentar conter
teu pó 
entre meus dedos
-em vão.    

 

 

Alucinação

Antes
Houve um céu azul.
Hoje,
Sobre nossas cabeças,
Só uma massa
                  Sonolenta e cinza.
Que se torna negra
À medida que encontra as águas
                               Adormecidas.
Por onde navagueiam
Sonâmbulas vitórias-régias
De sacolas de supermercado
E jacarés
De dentes enferrujados.

Por cima delas salta um índio
                                        Nu.
Tensionando seu arco,
Persegue um animal impossível.
Alucinado,
Em meio à selva
De malocas de compensado e zinco.

Aurora

Eu
sou a puta,
a travesti,
sou o michê
numa esquina mal iluminada,
perdida na noite dos tempos
[perfume barato, calçados gastos, esperando].

De dia
sou o menino
pra quem os vidros dos carros se fecham
[barriga roncando, dente cariado, esperando].

Aquela que quebra o silêncio da madrugada
ao ser golpeada pelo marido
[olho roxo, roupas rasgadas, esperando].

Sangramos
um riacho de águas turvas
que contamina o solo e que leva até o céu.

A terra é vermelha nos dias de chuva,
e a Aurora [com seus dedos de rosa] espeta as nuvens, 
esperando livrar-se do abscesso. 

 

 

Quando quase
tudo já nos foi tirado
inclusive o alento de poder enlouquecer,
e a limpidez da consciência transforma
o corpo numa condenação –
as têmporas ardem
acinzentando o cabelo
com chumbo
incandescente
da cabeça
– como que decapitada –
toda misericórdia
converte-se em desperdício, e
apenas uma cândida coragem ainda
sustenta os punhos em riste – 
porque a loucura
tomou as ruas,
e o que numa
primeira visão
pôde parecer um festim
era o riso de desespero das
hordas a devastar
suas próprias
cidades. 

húbris

“The basic human need to be watched
was once satisfied by god
[...]
The autopsy report read: 
the insides were beautiful”
(In: “Ison”, Sevdaliza, 2017)


e se há uma tradução errada no mínimo na ponta de cada dedo
na quase involuntariedade de um dom de línguas
no ler ou empunhar tais dizeres certos sentidos aproximados
katana adaga machete ou leitura de palmas
imagina por exemplo as eficácias necessárias ou diferentes
pra abrir caixas de presentes e pra abrir caixas torácicas
na tradução escolhida vai já um punhado de territórios desunificados
um utensílio que provesse todos esses chamamentos
e sem problemas um coração partido em dois
por exemplo
a um legista podia talvez ser algo e poder-se-ia dizer 

olha aqui se pra um não interessa tem cá pra outro esse significado
há agora empíricas uma parte pra cada lado

que grande talher não é mesmo mas que grandiosidade pode ter
o talher que parte as coisas em pedaços de bocado do tipo
um pra mim outro pra mim ou um pra você outro pra você

que grande talher não é mesmo
uma língua que provesse ela mesma e todos os nomes de lâmina

fusão viva das coisas mortas

e se ficamos sós nas sentenças aproximadas
empilhando possibilidades de não saber do que se fala
esperando estar certa ou errada aquela ou tipo essa
quando o ultimo leitor morrer deus deixará de existir ou de armar-nos
mas não rasgamos nem perímetros como mais essa imagem
aqui sem eficácia daquele cometa que pensou ser ícaro
mas nem deixamos em paz a espada
nem sabemos se procuramos o mal ou o bem estar
nos dias ou nos séculos e não há problema nisso
e se há uma pauta pós metonímica
o esventramento a sua mão essa fala
pela qual me percorro e nos conheço adentro