Mais nenhuma foto

Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais. 

Margaret Atwood
Tradução de Maria Sousa

Encenação, Latidos

Encenação 

Tudo pronto para qualquer coisa que começaria assim que soasse um qualquer sinal – arma, fogo-de-artifício, beijo prolongado às escondidas da severidade do pai e do peso, muito concreto, da sua mão. Tudo pronto para qualquer coisa prestes a começar e de repente a evidência das palmas, de um pano a cair, ainda o corpo está nos suores frios do medo inicial, como é isto do tempo que come tão depressa que não se dá pela falta de coisa alguma, cão rafeiro de roda de um osso já sem carne, a fome é coisa que não escapa a quem a passa, o pano a cair e de repente percebe-se que há beijos que se devem encurtar, por segurança e por decoro, mas acima de tudo porque em pouco tempo, como é isto do tempo?, em pouco tempo tudo passa e foram mais os olhos fechados de um corpo embrenhado no outro do que abertos à procura de sinais. 

 

Latidos 

Indecente a pressão que a brancura aplica sobre os dedos, imprudente a rapidez com que os dedos aceitam que algo os apresse – não se escreve sobre coisa alguma, na verdade, e no entanto espalha-se pelo corpo um fervor que nos acalma, mão sobre as costas, mão em todo o lado, uma voz grave que nos diz está tudo bem, fazes o que deves, e de noite já se dorme mais calmamente, na firme certeza de que ao menos não se é branco, que ausência de cor, que ausência de forma, que não-Palavra. Assim se encontrava: esfomeado pelos restos colados aos ossos daquilo que apanhasse pelo caminho, cão desmazelado em busca de algo em forma de perfeito, esquecido de que, animalesco, macularia a brancura que o assustava a pressionava não com poesia mas com sujidade da rua que tem nos pés – patas.