Encenação
Tudo pronto para qualquer coisa que começaria assim que soasse um qualquer sinal – arma, fogo-de-artifício, beijo prolongado às escondidas da severidade do pai e do peso, muito concreto, da sua mão. Tudo pronto para qualquer coisa prestes a começar e de repente a evidência das palmas, de um pano a cair, ainda o corpo está nos suores frios do medo inicial, como é isto do tempo que come tão depressa que não se dá pela falta de coisa alguma, cão rafeiro de roda de um osso já sem carne, a fome é coisa que não escapa a quem a passa, o pano a cair e de repente percebe-se que há beijos que se devem encurtar, por segurança e por decoro, mas acima de tudo porque em pouco tempo, como é isto do tempo?, em pouco tempo tudo passa e foram mais os olhos fechados de um corpo embrenhado no outro do que abertos à procura de sinais.
Latidos
Indecente a pressão que a brancura aplica sobre os dedos, imprudente a rapidez com que os dedos aceitam que algo os apresse – não se escreve sobre coisa alguma, na verdade, e no entanto espalha-se pelo corpo um fervor que nos acalma, mão sobre as costas, mão em todo o lado, uma voz grave que nos diz está tudo bem, fazes o que deves, e de noite já se dorme mais calmamente, na firme certeza de que ao menos não se é branco, que ausência de cor, que ausência de forma, que não-Palavra. Assim se encontrava: esfomeado pelos restos colados aos ossos daquilo que apanhasse pelo caminho, cão desmazelado em busca de algo em forma de perfeito, esquecido de que, animalesco, macularia a brancura que o assustava a pressionava não com poesia mas com sujidade da rua que tem nos pés – patas.