eu estava em casa um dia meio doente, cansado, muito trabalho, aquela correria e tudo mais. e era quase hora do almoço. friozão lá fora, resolvi: era dia de feijão com pimenta.
pus a panela de pressão com agua no fogo, adicionei temperos, sal e os grãos. e voltei pra sala pra continuar respondendo emails.
achei estranho a panela começar a “assobiar” rápido. mas tudo bem, eu estava concentrado. o tempo deve ter dado aqueles saltos de quando a gente se perde em pensamentos.
marquei mais ou menos os 10-15 minutos de assobio e voltei pra cozinha. daí a descorta. o respiro da panela não estava bem encaixado; não tinha mantido bem a pressão.
isso aborrece. e agora? ligo de novo pra cozinhar mais? abro pra ver? tive preguiça. ajeitei o respiro na posição certa e: fogo!
estava ali por uns segundos contemplando o vapor, a panela, a vida, o nada, quando a panela explodiu. BUM! e eu acho, sem certeza, que vi tudo acontecer em camera lenta. por um milésimo de segundo contemplei a beleza plástica daquela erupção de metal e comida.
não por muito tempo. a droga da tampa, uma parte dela, voou em direção a mim e se chocou como um tiro de canhão contra a minha testa. e é claro, foi aquela lambança de massa cinzenta e sangue por todo lado.
fiquei ali parado ainda contemplando a cena, com a mão na cabeça, o tampo aberto, o sangue escorrendo. pensei um instante no aborrecimento. sabe como é na europa. vem aquele monte de bombeiro e polícia, paramédico. ia dar aquela trabalheira.
como estava meio desmiolado, achei sinceramente que deveria pelo menos dar uma leve geral na bagunça, a começar pelo meu cérebro, que estava escorrido pelas paredes e chão junto com a comida.
não queria deixar as células se desoxigenarem. a imagem que me veio foi das células como peixinhos fora da água. eu tinha que juntar o quanto desse e por de volta no lugar.
a cabeça estava doendo pacas. parecia que ia explodir. quer dizer, você entendeu.
peguei uma travessa de porcelana que, olhando rapidamente, pareceu limpa. e foi, com cuidado pra não pisar em nada importante, procurando pelo menos os pedaços maiores.
eu já tinha vivido uma situação parecida na infância quando quebrei o copo favorito do meu pai, um copo do corinthians, da celebração oficial de sei lá o que. (nunca liguei pra futebol.) o copo caíra no chão, quebrou como a minha cabeça, e no chão ficaram pedaços de todos os tamanhos.
lembro como hoje dessa experiência absolutamente fatídica na minha vida.
copo quebrado, a merda estava feita, agora restava ver como resolver aquilo. e por anos volta e meia me pego desejando que a vida tivesse botão de rewind. sei lá, umas quatro chances, pra não complicar muito a vida do sujeito. cagou feito, rewind, e bola pra frente.
mas como no caso do copo do meu pai, a principio eu tive esperança. muita esperança. primeiro porque a maior parte do crânio tinha ficado no lugar e segundo porque encontrei o tampo principal, o pedaço de osso que cobria quase inteirinho o buraco.
mas daí é aquela coisa: fui juntando os pedaços de tripa com feijão, separando o que era meu na tijela, tentando pegar mesmo o menorzinho. e de perto olhando pro chão, ia encontrando fiapos que eu não sabia, pelo tamanho, identificar se era meu ou do feijão.
na verdade, apesar de estar naquele momento claramente vivendo um momento de negação, eu sabia lá dentro que aquilo tudo era uma besteira. - claro, eu pensava, que aquilo já era lixo. não tinha nada a costurar nem a emendar. fora a contaminação. mas você sabe como é a teimosia em situação de desespero. demora pra ficha cair.
nessa altura, eu já ouvia vozes do lado de fora da casa. gente que tinha escutado a explosão e estava querendo saber o que tinha sido. acho que vi alguém de raspão quando olhei de relance pela janelinha basculante na cozinha. mas o sangue nos olhos e a sensação de que era tudo verdade e que rewind não aconteceria só aumentaram o meu pânico.
a minha travessa estava um terço preenchida mas eu também já estava passando do estado de negação pra revolta. a massa cinzenta restante me dizia que aquilo era aquilo, mas ainda assim eu lutei.
os bombeiros tocaram na porta justo na hora que eu estava passando agua pra ver se tirava o resto do feijão pra dar o resultado da coleta pro medico, pra ele ver, ser testemunha de que eu tinha feito merda, mas que tentei me redimir.
o bombeiro já estava olhando pelo basculante quando gesticulei pra ele que estava indo abrir a porta. mas na verdade eu ainda não tinha decidido se seria melhor colocar os restos da cabeça na geladeira ou de volta pelo buraco do crânio.
não ria de mim, seja razoável. além de estar com menos de 100% da capacidade mental - por razões que dispensam explicação - eu estava em choque e com adrenalina correndo nas veias. além do que, mesmo repensando no assunto, vejo que houve uma lucidez ou uma tentativa de, talvez. porque pela minha quase total falta de conhecimento na área médica, achava que a solução obvia, a geladeira, poderia não ser tão bom quanto proteger e transportar as partes no habitat natural delas, digamos assim. compreende?
mas antes de eu me decidir, bombeiros arrombaram a porta, o que, pra ser sincero, quase me fez derrubar a travessa no chao. já pensou? que merda. ter que catar aquilo, pedaços de porcelana cortante, os pés dos bombeiros agitados.
logo que me viram, tive a impressão que eles fizeram um grande esforço pra manter a calma. eu tinha consciência, apesar de ainda não ter me olhado no espelho, que a cena não era pra quem tinha estômago sensível.
as coisas daí correram rápido. (engraçado, isso, a vida não ter rewind mas ter fastforward.) foi isso que eu senti. quando me dei conta, a travessa foi tirada da minha mão e um enfermeiro bem forte me abraçou pelo lado do corpo para eu sair do apartamento.
por um instante quis gritar que eles tomassem cuidado de fechar a porta. é que temos duas gatas. elas são de casa, não podem sair porque se perdem. mas se eu estendi a mão pra falar alguma coisa, acho que logo mudaram de assunto.
aqueles quatro ou mais paramédicos, bombeiros, policiais, vizinhos mais adiante. o mundo estava rodando e em fastforward e as minhas lembranças daquela situação são meio caleidoscópicas, com cores e formas se misturando e se recompondo. bonito até.
a situação do bendito copo do corinthians voltou à minha mente - veja, então, como era funda a memória. naquela situação, sozinho em casa, tentei heroicamente juntar os fragmentos do objeto. havia um maiorzão, vários médios, e um monte de tamanhos variados, entre caquinho de vidro e pó. não haveria como. colar aquilo seria acionar um processo irreversível que se concluiria com uma fantástica surra de cinturão.
a minha “ideia genial”, então, foi usar os poderes da invisibilidade que estavam ao meu alcance e se traduziam em: dar sumiço daquilo e me fazer de desentendido. afinal, um troço que ficava guardado numa mala velha no guarda roupas. era um plano. mas, sabe-se lá como, ele descobriu; deve ter feito engenharia reversa com o meu raciocínio. pensando agora, deve ter sido.
o fato é que levei não uma surra, mas duas. pelo menos foi o que ele disse. porque pior do que quebrar era ter escondido. e por isso até mais do que pelo copo, o meu corpo precisava sofrer. (mas, se me permitem a rápida digressão, a dor maior daquela história não foi a surra, mas saber ter decepcionado ele. essa dor-vergonha ainda ronda sempre que alguma coisa a chama de volta ao palco das lembranças.)
e foi assim que o episódio terminou. me puseram sentado na ambulância (porque eu estava consciente e pra eu não perder mais sangue), e fui espetado com uma droga que da sensação física de abrir espaço agressivamente nas minhas veias, se tornou rapidamente uma gostosa paz etérea.
ouvi o barulho da rua e os ruídos do motor da ambulancia se tornarem um burburinho cada vez mais suave e eu me peguei sorrindo para o que pareciam ser fadas quase invisíveis flutuando suavemente ao meu redor.
tudo durou algum tempo impreciso, talvez não mais do que a distancia entre a minha casa e o fim da rua. flutuando como sementinhas voadoras de dente de leão, essas criaturas (?) foram gradualmente caindo como flocos de neve. e ao tocar o meu corpo, elas não rolavam pro chão, mas ficavam ali, presas à minha calça jeans.
adormeci olhando nos olhos do meu pai. não o de hoje, homem velho e amargo, mas aquele da minha infância, meu herói. eu quis pedir desculpas por ter aprontado de novo. mas a minha boca e lábios estavam dormentes. ficamos assim nos olhando e senti ainda mais paz, e que nada ia ficar bem ou mal porque não havia nada para melhorar ou piorar. tudo estava bem, tinha sempre sido bom e isso era tudo.