Dois poemas

INSTRUÇÕES DE EMBARQUE

 

Encenar sem cuidado lágrimas falsas, alarmes de crocodilo, mãos espalmadas e patas no precipício (histórias de pescador dormir).

 

Falar com voz engasgada em nome de, em vão, das coisas enferrujadas, das cartas de gaveta, maracujá-passa, das malas vazias, esteiras cortadas, e do nome sem dono.

 

Disparar roleta-russa: embargar o nome do poeta ao contrário, em cor etérea, cantar violino no telhado esverdeado ao largo azul da zona desconforto que estoura o silêncio com passagens estreitas sem contorno.

 

Agarrar as sombras de um navio em Dakar.

Seguir os passos do avião e abraçar sua sombra que aporta no meio do Não.

Empurrar ao rio qualquer sorte de ocaso e cravar no ar frases

 

sem A, sem Z, sem V, sem T, sem C.

 

 

Amarrar no pé da consciência três dias e deixá-los passar fome.  Esvaziá-los das coisas sonho bom. Estragar os vinte, apodrecer os trinta e matar os quarenta.

 

E depois perder (sim, perder)

as contas: prontas

a paciência: sem licença

a cabeça: onde esteja

 

Mas por favor não,

ouse deixar nada

acompanhado pelo abraço-audácio

que nenhuma mão sabe dar.

 

 

 

PAUSA HEROICA

 

Comentam as estrelas

das cinzas das borboletas

o gene

e

a

p

o

e

i

r

a

Clarissa Comin, dois textos

vestíbulo para uma anti-prosa 

 

Tenho o demo dentro de mim e assim floresce a grande prosa.  

Caminho cabeça baixa, fuçando os vãos daquela tarde – inverno de 2003 – o chão de bancos rosados, ao lado da casa assaltada pelos policiais, beijos e anões; chegam os informes sobre uma mancha escura grudada nua num canto invisível, crime inafiançável! Meus leões disfarçam para não voarem tuas veias abaixo, para poderem adubar e raptar o diesel e o carvão, para devorarem na porta o disco, bolacha-canção, e deixar só verocidade.  

Isso foi ontem, segredos encontrados numa caverna. 

Deixei-me enganar pela toalha dobrada em A4, se querendo livro, salpicada de letrinhas corante-86.  

Não sou Champollion.  

Sou estraga-prazeres: proparoxítona terminada em ó 

 

nebulosa nº 3 

 

apontar os mesmos defeitos usando o dedo do meio esquerdo porque a última vez que estive aqui era essa mesma ponte agarrada a uma coisa cheiro de casa mal amarrada à cara clara exalando coisas amargas e perguntava de onde vinha o gastro amor imaginário de onde vinha esse fantasma engarrafado há milhas que me lia daí de onde vinha aquela água pesada levando ao mesmo tempo para longe esse medo tolo de deixar sentir também tinha aquilo do aumento impreciso das taxas cambiais e do cultivo de feromônios em campos fechados regados com água mineral livre de metais nodosos e eu pegava o caderno amassado mentia que estava tudo pago percorrendo imagens looping and roll de uma noite cinema em que o dedo roçou a ponta do cabelo alheio o brilho do passo estreito forçando a barra pra caber num espaço exíguo 50 x 50cm bom seria ter senso ser meu do-it-yourself atacar quimeras chamar umas fadas vestidas de tapetes numa ilha etérea etc etc mas o povo é viciado em dar corda para boi dormir espantam inimigos pra depois sentir-lhes falta acostumei-me com o desalinho da falta de tempo visto-me de pinho e escovo sapatos cabelos dentes com uma mão só mas agora não tinha mais isso sobraram relicários de gravatas camisas botas mal passadas sangrando a céu aberto uma perna enfiada de qualquer jeito ocupa a reta entre dois pés um não e um quadrado mágico só você sabe montar no entanto saberia você dizer por quê começou a chover esse cheiro de ontem de letra posta de molho sem fermento no fim eu só peço uma coisa no fim se pudesse dizer algo à toa à deriva último respiro antes de fechar a página seria ver a fonte nascer uma família inteira para nos dizer. 

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